quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Folha de S. Paulo – Há forte risco de crise climática já em 2040, aponta relatório da ONU

MEIO AMBIENTE E ENERGIA



Coral Davenport
Incheon (Coreia do Sul)

Um importante relatório do painel científico da ONU sobre a mudança do clima traça um panorama muito mais severo sobre as consequências imediatas da mudança no clima do que se imaginava anteriormente. Ele afirma que evitar danos vai requerer transformar a economia mundial em velocidade e escala para as quais "não existem precedentes documentados".

O relatório, divulgado nesta segunda-feira (8) pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um grupo de cientistas encarregado pela ONU de orientar os líderes mundiais, descreve um mundo no qual a escassez de comida e os incêndios nas matas se agravarão, e recifes de corais morrerão em escala maciça já em 2040 —ou seja, dentro da expectativa de vida de boa parte da população mundial.

O relatório "é um grande choque, e muito preocupante", disse Bill Hare, autor de relatórios anteriores do IPCC e físico da Climate Analytics, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos. "Não estávamos cientes disso há poucos anos". O relatório foi o primeiro a ser solicitado pelos líderes mundiais sob o Acordo de Paris, um pacto de combate ao aquecimento global assinado por dezenas de países em 2015.

Os autores do relatório constataram que, se as emissões dos gases causadores do efeito estufa continuarem ao ritmo atual, a atmosfera vai se aquecer em pelo menos 1,5ºC  ante o nível vigente na era pré-industrial, até 2040, causando a inundação de áreas costeiras e intensificando as secas e a pobreza.

Trabalhos anteriores tinham por foco estimar o dano que seria causado caso a temperatura subisse ainda mais, em 2ºC, porque esse era o limiar previamente estimado pelos cientistas para os efeitos mais severos da mudança no clima.

O novo relatório, porém, demonstra que muitos dos efeitos temidos surgiriam abaixo de um aumento de 2ºC na temperatura, e seriam perceptíveis já com um aumento de 1,5ºC.

Para evitar os danos mais sérios, seria necessário transformar a economia mundial em prazo de poucos anos, afirmam os autores, que estimam que o custo dos danos seria de US$ 54 trilhões (cerca de R$ 199 trilhões).

Mas embora eles concluam que é tecnicamente possível realizar as mudanças rápidas necessárias para evitar um aquecimento de 1,5ºC, reconhecem que elas são improváveis politicamente.

Por exemplo, o relatório afirma que impostos pesados, sobre ou licenças dispendiosas para, emissões de dióxido de carbono —da ordem de talvez US$ 27 mil (cerca de R$ 99 mil) por tonelada em 2100— seriam requeridos. Mas uma medida como essa seria politicamente quase impossível nos Estados Unidos, a maior economia do planeta, e a segunda maior causadora de emissões de gases causadores do efeito estufa, abaixo apenas da China.

Legisladores de todo o mundo, o que inclui a China, a União Europeia e a Califórnia, já criaram leis que impõem um preço às emissões de carbono.

O presidente Donald Trump, que zomba das conclusões científicas sobre as mudanças no clima causadas por atividades humanas, prometeu queima intensificada de carvão nas usinas de energia dos Estados Unidos, e anunciou o abandono do Acordo de Paris. E no domingo, o Brasil, o sétimo maior emissor de gases causadores do efeito estufa, parecia a caminho de eleger um novo presidente, Jair Bolsonaro, que disse também ter planos para abandonar o acordo.

O relatório foi escrito e editado por 91 cientistas de 40 países, que analisaram mais de seis mil estudos científicos. O Acordo de Paris pretendia prevenir um aquecimento de mais de 2ºC, ante o nível vigente antes da era industrial.

Por muito tempo, esse era visto como o limiar para danos sociais e econômicos severos causados pela mudança do clima. Mas os líderes de pequenos países insulares, que temem a alta no nível do mar, solicitaram aos cientistas que também examinassem os danos causados por uma elevação de temperatura de 1,5ºC.

Na ausência de ações agressivas, muitos efeitos que eram antecipados para apenas daqui a muitas décadas começarão a se fazer sentir em 2040, e com alta de apenas 1,5ºC na temperatura, o relatório demonstra.

"O que o texto nos diz é que precisamos reverter as tendências de emissões e mudar a economia mundial do dia para a noite", disse Myles Allen, cientista do clima na Universidade de Oxford e um dos autores do relatório.

Para impedir um aquecimento de 1,5ºC, aponta o relatório, a poluição causada por gases do efeito estufa precisa cair em 45% até 2030, ante o nível de 2010, e em 100% até 2050. O relatório também constatou que, em 2050, o uso do carvão como forma de gerar eletricidade teria de cair dos quase 40% do total gerado, atualmente, para entre 1% e 7%. A energia renovável, como a eólica e a solar, que hoje responde por cerca de 20% da eletricidade consumida, teria de subir para até 67%.

"Esse relatório deixa muito claro que não existe maneira de mitigar a mudança do clima sem eliminar o uso do carvão", disse Drew Shindell, cientista do clima da Universidade Duke e um dos autores do relatório.

A Associação Mundial do Carvão contesta a conclusão de que deter o aquecimento global pede o fim do uso do carvão. Em comunicado, Katie Warrick, presidente-executiva interina da organização, apontou para projeções da Agência Internacional de Energia (AIE), uma organização internacional de análise, que "continuam a ver um papel para o carvão pelo futuro previsível".

Warrick disse que sua organização pretende fazer campanha para que os governos invistam em tecnologia para captura de carbono. Esse tipo de tecnologia, no momento dispendiosa demais para uso comercial, poderia permitir que o carvão continue em uso amplo.

A despeito das implicações controversas em termos de políticas públicas, a delegação dos Estados Unidos se uniu às de mais de 180 outros países, no sábado, para aceitar o sumário executivo do relatório, mas teve de caminhar por uma verdadeira corda bamba diplomática para isso.

Um comunicado do Departamento de Estado americano afirma que "a aceitação do comunicado do painel não implica endosso pelo governo dos Estados Unidos a constatações específicas ou ao conteúdo subjacente do relatório".

A delegação do Departamento de Estado se viu diante de um dilema. Recusar aprovação ao documento colocaria os Estados Unidos em contraposição a muitos países e mostraria o país rejeitando conclusões científicas estabelecidas no contexto mundial. Mas a delegação também representa um presidente que rejeita as conclusões da ciência do clima e diversas propostas políticas quanto ao clima.

"Reiteramos que os Estados Unidos pretendem abandonar o Acordo de Paris o mais cedo possível, na ausência de termos que sejam melhores para o povo americano", o comunicado afirmou.

O relatório tenta estimar o custo dos efeitos da mudança do clima. A estimativa de US$ 54 bilhões (cerca de R$ 199 bilhões) em danos, com a alta de 1,5ºC na temperatura, subiria a US$ 69 bilhões (R$ 255 bilhões) caso a alta da temperatura chegue aos 2ºC ou os ultrapasse, o relatório determinou, ainda que não tenha especificado o prazo a que esses custos se aplicam.

O relatório concluiu que o mundo já está a mais de metade do caminho de uma alta de temperatura de 1,5ºC. As atividades humanas já causaram alta de temperatura da ordem de 1ºC da década de 1850 —o início da queima industrial de carvão em larga escala— até agora.

Os Estados Unidos não estão sozinhos em rejeitar a redução de emissões necessária a impedir os efeitos mais nocivos da mudança no clima. O relatório concluiu que os compromissos de redução de emissão de gases causadores do efeito estuda assumidos nos termos do Acordo de Paris não bastarão para evitar o aquecimento de 2ºC.

O relatório enfatiza o potencial papel de um imposto sobre as emissões do dióxido de carbono. "Determinar um preço para as emissões de carbono tem papel central na promoção da mitigação", o relatório conclui. O texto estima que, para ser efetivo, o preço teria de variar entre US$ 135 (R$ 499) e US$ 5,5 mil (R$ 20 mil) por tonelada de poluentes de carbono, em 2030, e entre US$ 690 (cerca de R$ 2.500) e US$ 27 mil (R$ 99 mil) por tonelada em 2100.

Em comparação, no governo Obama, economistas da administração estimaram que o preço apropriado pela emissão de poluentes seria da ordem de US$ 50 (R$ 185) por tonelada. No governo Trump, esse cálculo foi baixado para US$ 7 (R$ 25) por tonelada.

A Americans for Prosperity, uma organização de propaganda política financiada pelos bilionários americanos Charles e David Koch, promotores de causas libertárias, ajuda a bancar campanhas contra políticos que apoiam a criação de impostos sobre poluentes.

"Os impostos sobre poluentes são veneno político, porque elevam o preço da gasolina e o da eletricidade", disse Myron Ebell, que comanda o programa de energia no Competitive Enterprise Institute, uma organização de pesquisa sediada em Washington e bancada por empresas. Ele comandou a equipe de transição do governo Trump na Agência de Proteção Ambiental (EPA).

O relatório detalha os danos econômicos esperados caso os governos não imponham medidas de redução de emissões. Os Estados Unidos perderiam cerca de 1,2% de seu Produto Interno Bruto (PIB) a cada grau Celsius de elevação da temperatura.

Além disso, o texto afirma, os Estados Unidos, acompanhados por Bangladesh, China, Egito, Filipinas, Índia, Indonésia, Japão e Vietnã, abrigam 50 milhões de pessoas que estarão expostas aos efeitos das inundações costeiras mais graves, em 2040, caso ocorra um aquecimento de 1,5ºC.

Com aquecimento de 2ºC, o relatório prevê "evacuação desproporcionalmente rápida" de pessoas, nos trópicos. "Em algumas partes do planeta, fronteiras nacionais se tornarão irrelevantes", disse Aromar Revi, diretor do Instituto Indiano de Assentamentos Humanos e um dos autores do relatório. "Pode-se erguer uma muralha para tentar conter 10 mil e 20 mil, ou até um milhão de, pessoas. Mas não 10 milhões de pessoas."

O relatório também mostra o cenário em que governos não consigam evitar a alta de temperatura de 1,5ºC. O planeta poderia se aquecer ainda mais que o previsto, superando os 2ºC, e em seguida, por meio de uma combinação entre corte de emissões e uso de tecnologia de captura de carbono, seria promovida uma queda de temperatura para abaixo do limiar do 1,5ºC.

Sob esse cenário, alguns danos seriam irreversíveis, aponta o relatório. Todos os recifes de corais morreriam. Mas o gelo marinho, que desapareceria em função do aquecimento, retornaria com a queda das temperaturas.

"Para os governos, a ideia de deixar que a temperatura estoure a previsão e depois voltar para um nível inferior é atraente, porque dessa forma não precisariam promover mudanças tão rápidas", disse Shindell. "Mas isso teria muitas desvantagens."

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