| 21 Março 2014
Midia sem Mascara
Ora, um sujeito tão afável e educado não há de ser tão mau...
O charme do canalha está em que a sua pertinácia é instintivamente assimétrica, maleável, táctil. Noutras palavras, o autêntico cafajeste nunca é tedioso porque não costuma percorrer o mesmo caminho duas vezes: muda-o de acordo com as conveniências do momento, até alcançar o sucesso em seus inescrupulosos planos.
Afinal, ele precisa conhecer bem
os incautos que escolhe a dedo e agir de maneira a não revelar jamais as
suas verdadeiras intenções, embora as insinue para confundi-los com uma
ambigüidade manejada psicologicamente com maestria. A sua arte é
transformar em atraente mistério a duvida quanto à natureza do seu
próprio caráter.
Esta
cordialidade perene e sedutora do genuíno embusteiro é, porém, certo
indício de que a sua alma está devotada ao malogro.
Ele tempera o
cinismo com imaculada simpatia, é prestativo, cortês e não costuma
mostrar-se contrariado, pois isto denota fraqueza. Neste exato ponto é
importante advertir o seguinte: serpenteante e criativo quando se põe a
fraudar alguém, em contrapartida este inato sacripanta reage
monocordicamente ao ser pego em flagrante delito, ou quando alguém o tem
sob suspeita.
Nestas ocasiões, com grande lábia ele tergiversa usando
de palavras escorregadias, entredentes, se acaso pairam dúvidas sobre a
sua conduta; ou nega tudo com total descaro, se por desgraça as
evidências dos seus contos-do-vigário simplesmente o soterram. Negar
sempre, eis o seu lema.
A
hipocrisia com que age o típico canalha aponta para o fato de que ele
ainda não ultrapassou a última barreira da moral, pois algo em sua alma
ainda faz com que queira parecer bom — ao contrário do sujeito
desavergonhado, o qual perdeu a noção de honra e também o filtro do
pudor natural que impedia a degenerescência total do caráter.
Este
resquício de dignidade torna o canalha capaz de, eventualmente, verter
lágrimas sinceras de compaixão, sentimento de que porém não se deixa
impregnar, não obstante lhe dê certa vertigem de bondade, em doses
homeopáticas suficientes para tornar a sua consciência leve.
A
possibilidade de uma boa ação totalmente desinteressada lhe dá nojo, é
absurda e surreal como a imagem de unicórnios voadores. Mas a maldade em
estado de pureza também o incomoda, razão pela qual tempera os
malefícios com apaziguadoras auto-justificativas e usa da cordialidade
como escudo psicológico protetor, para crer que não seria capaz de
ultrapassar certos limites. Ora, um sujeito tão afável e educado não há
de ser tão mau...
O
problema maior do canalha está exatamente neste lastimável ponto de
tangência: as suas habituais fraudes acabam por levá-lo a acreditar nas
mentiras que, com ardilosa sutileza, passa a contar a si mesmo, ao ponto
de embelezar retroativamente as más intenções e projetar sobre elas
algo que, no futuro, as torne menos tangíveis e, portanto, melhor
suportáveis.
Assim vive o canalha até perder totalmente a bússola do
senso de proporções, sem a qual a maldade transforma-se em loucura.
Quando
numa sociedade — como a brasileira — o número desse tipo de malucos
cresce em progressão geométrica, tenhamos a certeza de que a fraude, o
furto e a mentira política acabarão, cedo ou tarde, consagrando-se na
forma da lei.
Para apaziguar a consciência dos sem-consciência.
Sidney Silveira é professor e edita o blog Contra Impugnantes.
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