Começo
este artigo pedindo outro perdão.
Primeiro por falar sobre Educação, esse enfadonho tema que só possui menos entendidos e especialistas do que a seleção brasileira em tempos de Copa do Mundo.
Em segundo lugar, porque vivo de fato o cotidiano escolar há mais de dez anos nas redes estadual e municipal, o que praticamente me descredencia para escrever sobre o assunto, haja vista que os autores, palestrantes e críticos da Educação ou jamais colocaram os pés numa sala de aula de escola pública ou, se já o fizeram, foi há mais de 30 anos.
Primeiro por falar sobre Educação, esse enfadonho tema que só possui menos entendidos e especialistas do que a seleção brasileira em tempos de Copa do Mundo.
Em segundo lugar, porque vivo de fato o cotidiano escolar há mais de dez anos nas redes estadual e municipal, o que praticamente me descredencia para escrever sobre o assunto, haja vista que os autores, palestrantes e críticos da Educação ou jamais colocaram os pés numa sala de aula de escola pública ou, se já o fizeram, foi há mais de 30 anos.
A
justificativa para que os palpiteiros pedagógicos sejam tratados como
autoridades no assunto é aquela velha vigarice à qual estamos nos
acostumando: “o olhar externo é mais objetivo e isento, livre das
emoções que turvam a visão”.
Essa carta é um coringão. Vale para
qualquer pessoa, que normalmente domina menos o tema sobre o qual
conferirá palestra do que o próprio público-alvo, subir num palco com
microfone na mão, acusar a plateia de não ter mente aberta e visão
ampla, ser aplaudida e pegar o pagamento ao término do evento.
Então,
de cara também peço desculpas por isso.
Não tenho mente aberta o
suficiente para acreditar em grandes mudanças para melhor na Educação e
nem visão ampla para ser criativa em relação à crise, porque, conforme
os senhores verão nas próximas colunas – se o editor deste portal não me
demitir – toda ideia boa que algum professor tem para driblar o
fracasso iminente e as bizarrices cotidianas, que já deixaram de ser
exceção, costuma ser abortada por ferir algum item da legislação à qual a
escola está submetida ou o ultrapassado ECA, incapaz de proteger adolescentes inocentes da crueldade de outros adolescentes.
Feita a apresentação da autora e do estilo, vamos à proposta do título: perdoar a famigerada escola pública.
O termo “escola pública” assumiu nas últimas duas décadas uma conotação terrível:
algo entre fábrica de criminosos e laboratório de violência. Não raro
as famílias se privam de várias coisas para pagar pelo ensino privado das
suas crianças e, quando não podem mais fazê-lo, matriculam os filhos no
ensino público como se esses estivessem indo cumprir pena em regime semiaberto por um crime que não cometeram.
Não lhes tiro a razão, embora a realidade não seja tão dolorosa para os alunos da malfalada instituição,
exceto para os que levam os próprios estudos muito a sério – uma
raridade entre os jovens de hoje -. O diabo não é tão feio como se pinta
e, aliás, é justamente por isso que nada muda. A água nunca chega no
nível que obriga os acomodados a nadar.
Tomemos
como exemplo a rede municipal de São Paulo. Os professores,
especialmente os que ingressaram depois de 2008, passaram em concursos
difíceis –, com uma razão de 80 candidatos por vaga.
O salário e os
benefícios costumam ser maiores do que os oferecidos pelas escolas
particulares de pequeno ou médio porte, o que tem feito muitos docentes largarem o ensino privado
por jornadas maiores na Prefeitura. A merenda é rigorosamente elaborada
por nutricionistas e o cardápio da quinzena é publicado no Diário
Oficial.
A fiscalização é constante. Caso o aluno tenha algum problema
ou necessidade especial em relação à alimentação, a escola faz a compra
do alimento adequado e a refeição desta criança é preparada
separadamente. Há projetos de reforço, recuperação paralela, música, teatro, imprensa jovem, etc.
Até
o término da gestão Kassab, havia o programa “Minha Biblioteca”, em que
todos recebiam 3 livros paradidáticos por ano, além dos livros
didáticos correspondentes à série.
Nas escolas da prefeitura costuma haver material (cartolinas, EVA,
pistolas de cola quente, câmeras, projetores, amplificadores,
microfones, etc.) e recursos para aquisição de livros para as
bibliotecas e equipamentos eletrônicos em geral. E isso sem milagrosos
10% do PIB para a Educação!*
E com tudo isso, os índices de aprendizagem são tão ruins por quê?
A
resposta está nas queixas dos professores. As mesmas queixas que não
são levadas em consideração, porque subjetivas e desequilibradas, ditas
ao calor das emoções. As mesmas falas que têm o microfone desligado nas
jornadas pedagógicas, em auditórios cheios de autoridades e
especialistas cujo discurso pode ser resumido em “não estamos preparados
para o aluno do século XXI”.
O triste é que há professores, devidamente
amaciados pela leitura de Paulo Freire, que acatam a culpa pelo
fracasso de um sistema programado para isso.
Mesmo
quem não se arroga especialista em Educação, sempre tem um “se fosse
comigo, eu faria…” para devolver a um professor angustiado que acaba
fazer um desabafo.
Normal. Quem tem mais de 20 anos e frequentou a escola, costuma se lembrar de algum
professor que tinha “pulso firme” e botava ordem na cambada. Eu mesma
tive uma professora que acertava giz nos tagarelas e nos distraídos.
Acertava na testa, com uma mira invejável (levei muito giz por viver num mundo à parte).
Nós a adorávamos, de verdade. Com o tempo, ela nem precisava mais usar
tal recurso didático, pois todos prestavam atenção às aulas 100%
expositivas (nada lúdicas, nada práticas, nada recomendável pelo politicamente correto da educação, doravante eduquês). Essa professora não teria vez ou voz com as turmas que tenho hoje. Aliás, provavelmente seria processada por agressão física ou responderia por constrangimento de menor…
Daí alguém
conta uma ocorrência comum – sim, comum – como: “O aluno se recusou a
fazer silêncio e ainda ficou berrando ofensas contra o colega, enquanto
eu tentava explicar.
Chamei-o para conversar, expliquei que ele estava
atrapalhando, que não poderia fazer isso, mas ele riu e continuou
atormentando todo mundo”. “E você não mandou para a direção? Não botou
pra fora?”- questionarão os honestos, pensando no que a professora que
botava ordem na cambada faria.
Talvez isso seja um choque, mas nem todas
as escolas permitem que os professores coloquem alunos para fora da
sala. Alguns gestores, influenciados por certos autores, ainda afirmam
que “se livrar do aluno, colocando-o no corredor ou na direção é
incompetência do professor, que não soube lidar com a criança”.
Não é raro acontecer do aluno mandar aquela cascata, fazendo-se de
vítima, e retornar à sala de aula com cara de sofredor, para, nas costas
do inspetor, imediatamente após a porta se fechar, continuar o deboche,
então mais intenso. Afinal, ele venceu, ele retornou à sala, ele tem o direito de permanecer no recinto e os outros têm a obrigação de aturá-lo.
Passemos para algo mais grave, a violência física. O aluno bateu em três colegas por causa de figurinhas – agora chamadas de cards
pelos pequenos -. Desrespeito ao professor, ainda que chegue no campo
das ameaças de morte, é algo que alguns gestores toleram bem. “Ai, essa
juventude é assim mesmo, inconsequente…”.
Já sair aos tapas com outros
alunos é inadmissível. Os pais devem ser convocados. Aí começa o
verdadeiro calvário: 1- Procuram-se os telefones de contato no
prontuário do aluno; 2- Se houver, reza-se** para que estejam
atualizados; 3- Agenda-se uma ida de um dos responsáveis à escola; 4-
Reza-se em dobro para que o responsável não seja pior do que o próprio
aluno. Dadas essas pré-condições para a conversa com a família, haverá o encontro.
Às vezes, o responsável dialoga
bem e se compromete a orientar a criança. Às vezes, o pai e/ou a mãe se
irritam e discutem aos berros com os professores, alegando perseguição
(obrigada, Paulo Freire, por este termo lindo!
Realmente, perseguimos
crianças de 9 anos, que mal sabem escrever, por divergências
ideológicas, pois estamos a serviço dos
militares-Globo-tucanos-imperialistas-estadunidenses).
Às vezes o pai
e/ou a mãe dão aquele sermão no aluno, lá mesmo, na frente dos
professores e ainda dizem “se ele der qualquer problema, este é meu
celular, ligue a qualquer momento para falar comigo, nem precisa pedir
pra secretaria”. Uma bênção.
Mas o que tem acontecido de uns anos para cá com recorrência é o adulto responsável dizer que não sabe mais o que fazer
com aquela criança. Isso é quase um código, uma mensagem que, decifrada
significa: “você será desrespeitado, atormentado, terá suas aulas
destruídas por esta criança até ela se formar e não poderá fazer nada
por si e pelos outros alunos da classe”.
Quando vem a senha “professora, você tem razão, viu, eu não sei mais o que fazer com esse menino, ele não me respeita, ele não faz nada em casa, só brinca”, o chão some. A conversa acaba. A criança, afinal, domina os pais. Ela não respeita ou teme
as pessoas que moram sob o mesmo teto que ela e que a sustentam. O que a
professora poderá fazer ou falar para que a criança mude de
comportamento?
Há
aí omissão dos pais, claro. Não são os professores que têm o dever de
educar as crianças, mas sim os responsáveis por elas. Ou, como apareceu
no Facebook hoje:
Esperar
que a escola cumpra o papel dos pais e ainda promova a aprendizagem é
injusto.
A imagem que temos de uma boa mãe ou de um bom pai não é a de
quem alfabetiza os filhos
e lhes ensina o conteúdo que vai cair no vestibular quando
adolescentes, mas sim a dos que ensinam valores tais como respeito por
si e pelo próximo, honestidade, caráter, etc.
Quem não tem um avô ou uma
avó analfabeta, que ensinou lições de vida inesquecíveis e, por isso,
mereceria o título de grande educador(a)? Pois é. A própria mudança do termo professor para educador já
demonstra a responsabilidade jogada nas costas de pessoas que se
formaram apenas para ensinar matemática, português, ciências…
Não para educar moralmente os filhos dos outros em 50 minutos diários.
Se
certos alunos atrapalham a aprendizagem dos demais, algo deve ser
feito. É possível encaminhar casos mais graves – os que jogam cadeiras
nas professoras grávidas e ameaçam professores de morte reiteradamente,
por exemplo, pois, para menos que isso os órgãos superiores não
costumam dispensar atenção – para Conselho Tutelar e Vara da Infância.
E
não é raro o caso do aluno que ameaça professor de morte, é transferido
de escola, vai à ~Justiça~ (aspas comuns não expressariam meu sarcasmo
aqui) e volta no ano seguinte, com ordem judicial para ser matriculado
na turma em que desejar.
Portanto, não é raro também o professor que pede transferência ou simplesmente falta no dia em que tem aula com a referida turma. A
vida profissional de alguém é destruída por causa dos mimos que a lei
concede a um adolescente violento e ninguém se importa. Depois se
espantam com o índice de 40% de professores deprimidos…
Sempre o ECA, sempre a proteção excessiva ao pequeno ditador, ao jovem sem caráter, ao jovem criminoso. As demais crianças e os outros adolescentes, via de regra, têm dois caminhos:
entregar-se à bagunça ao perceber que “não pega nada” aos que destroem a
escola e ser popular com isso ou passar uma vida sem amigos, sofrendo
bullying, mas lutando para que o professor não desista, não se cale.
Os
últimos são brilhantes, pois são os que vencem o contexto de injustiça e
o convite à deliciosa mediocridade do não-pensar e da
irresponsabilidade pelos atos concedida aos que pertencem a grupos (Todo
mundo estava conversando! Não fui só eu quem chutou a porta! Todo mundo
xingou a professora, metade da sala zoa aquele moleque!).
Já lecionei
em uma grande e renomada instituição privada, onde havia bons alunos aos
montes. Mas, os melhores que já tive, contados nos dedos das mãos, são os pouquíssimos que não caíram na arapuca das facilidades da escola pública. Dentre eles há uma violinista da Orquestra Jovem OSESP, que passou pela máquina destruidora de inteligência e individualidade, mas sobreviveu.
Aprendi com o tempo a perdoar a Escola Pública.
E, depois, a entender que ela cumpre à risca o que dela se espera. Ao ser tolerante com a grande legião da má vontade - que não demonstra respeito pela instituição, respeito pelos outros, vontade de estudar, que não cuida do material comprado com o dinheiro do contribuinte - ao manter a vaga dos que a destroem, ao acolher tão bem os que debocham dos profissionais da educação, ao funcionar normalmente, sem ventiladores – que foram quebrados pelos próprios alunos – num calor de 38ºC, ao valorizar mais a presença do que o rendimento
(o estudante é reprovado automaticamente ao atingir 25% de faltas,
ainda que tenha boas notas e é promovido se tiver notas vermelhas e 80%
de presença), o sistema transformou a escola prioritariamente num depósito de jovens e não num local de aprendizagem.
Nesse espaço cercado de muros e grades, crianças e adolescentes têm
vida social, alimentação de qualidade, acesso a computadores, e adultos
que serão responsabilizados caso corram nas escadas e levem um tombo
(justamente os professores que disseram para não correr), além de e estarem protegidas por algumas horas da “violência do mundo lá fora”, da oferta de drogas, da sexualidade precoce, etc.
São apenas algumas horas por dia, é verdade. E, se alguns jovens aprenderem algo no meio do barulho ensurdecedor e da agitação perturbadora das turmas, será antes por mérito próprio e integridade de caráter, além do heroísmo de algum professor, que não desistiu de ensinar indivíduos, ainda que coagido pelo coletivo.
* Não fugiremos desse assunto, que é pauta de todas as greves.
** Reza-se escondido, pois a escola é laica.
Espero ver mais textos seus aqui!
Belo texto.
abraço
Primeiro, em respeito a última flor do lácio, gostei pois a clareza do seu texto e profundidade está de acordo com seu nome. Esta variante do que é claro. No seu caso Clara.
Uma de nossas grandes lutas desde janeiro do ano passado tem sido #SOSEducacao, no site http://www.cadernodeeducacao.com.br.
Pela magnitude,profundidade, CLAREZA e paixão de sua transpiração, rego-lhe, mande este texto para nosso amado Caderno. Eis o que fazemos lá. Informação que gera Educação. Lá disseminamos que educação é para a familia, instrução é para professores
Peço-lhe encarecidamente: Remeta para que possamos publicar,
Felicissimo em ter lido uma reflexao vindo de um desabafo do coração
Com admiração
José Carlos Bortoloti
Passo Fundo -RS -
Professor de Comunicação – Oral e Escrita e Jornalista,
Colaborador do Caderno de Educação.
De qualquer forma, aproveito para elogiar no grau máximo seu texto. Parabéns!