segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Direito ao delírio - FERNANDO GABEIRA




O GLOBO - 14/09


Não se trata de realismo mágico, mas sim de um delírio defensivo, maneira provisória de enfrentar o real



No passado tratei de vários temas polêmicos que hoje aparecem até nas campanhas presidenciais. Um deles, entretanto, jamais consegui defender com clareza: o direito ao delírio. Ninguém levou muito a sério, acabei desistindo. O delírio para mim não é alucinação. As visões ou vozes na alucinação não existem na realidade. Oliver Sachs descartou a tese corrente de que expressam loucura. Ele mostrou que algumas visões alucinatórias são uma reação do cérebro à falta de estímulo. Acontecem mais em cegos e pessoas perdendo a visão.

O delírio embaralha uma realidade, extrai conclusões fantásticas dos fatos que estão diante de nós. Ele nos liberta diante de um bloco de governo que nos assalta, sugando recursos de uma empresa nacional.

Não se trata de realismo mágico, gênero que os grandes romancistas recriaram em seus países. Mas sim de um delírio defensivo, maneira provisória de enfrentar o real. Nada me impede de ver uma onda gigante de óleo varrendo o Congresso, inundando os caracóis do cabelo de Renan Calheiros, tingindo de preto os do ministro Lobão. Uma onda varrendo gente abraçada na bandeira do Brasil, gritando “o petróleo é nosso”. Na realidade, o petróleo é deles, muito mais deles que nosso. Você pode escolher o caminho racional, dissertar sobre o respeito aos bens públicos, mas acredita mesmo que os argumentos os impressionam?

No meu delírio, vejo Dilma como uma replicante. Em “Blade Runner”, os replicantes se revelavam em pequenos gestos mecânicos, buscando o cigarro na boca com o isqueiro. Dilma se revela, no meu delírio, quando começa a falar. Quando diz “no que se refere” tenho a sensação nítida de que apertaram a tecla play.

No meu delírio vejo o general Horta Barbosa, por sinal sogro de um amigo da juventude, caminhando com seu bastão, diante de milhares de estudantes da época, gritando “o petróleo é nosso”, e a onda invadindo o Congresso e o Planalto. E vejo intelectuais ocupando tribunas e blogs para nos garantir que sempre foi assim, a corrupção é incontrolável.

E vejo o velho Pedro Simon gritando: “as empreiteiras, as empreiteiras, lembrem-se: os políticos não se corrompem sozinhos, alguém os paga”. 
 
Irmanados no mesmo escândalo, Renan e Henrique caminham sobre a onda de óleo que se estende pelo tapete do salão verde, cruzando todas as divisões do parlamento. Pastoso, escorregadio, o óleo se avoluma, Romero Jucá pegou um tubo e fotografa sua manobra com uma câmera GoPro.

O óleo avança no Planalto, e no que se refere a Dilma, ela não sabia de nada, jamais soube, e o óleo escorre pelos gabinetes. País oleoso, o nosso.

Esta semana me veio à cabeça o livro de Marie Cardinal que em francês se chamou “Les mots pour le dire” (Palavras para dizer). Mas o livro de Marie Cardinal sugeria na minha memória algo mais denso do que apenas um desabafo. O livro conta a historia de Cardinal, que perdia muito sangue, como se estivesse continuamente menstruada. Livres dos médicos que a queriam operar, ela resolveu narrar sua infância, seus traumas, e só assim superou a doença.

Pensei, delirantemente, que a receita de Marie Cardinal talvez se aplicasse ao país: conter a sangria através das palavras claras. Para começar, quando falarmos de governo, Congresso e empreiteiras compreendermos que estamos diante de um grande sistema de assalto. O governo governa, as empreiteiras constroem. Mas não estava combinado que 3% dos contratos seriam pagos a um grupo político. Se isso for encarado como algo tolerável e rotineiro, o delírio talvez seja a única forma de sobreviver, porque o país mesmo teria enlouquecido mansamente.

Minhas retinas fatigadas não vão esquecer a onda de óleo. Usando faixas, oferecendo coquetéis, abraçando bebês, presidindo sessões solenes, em todos os rituais do governo, verei o óleo enegrecendo os colarinhos brancos, transbordando as taças de champanhe, afogando os camarões da salada. 
 
Delirando pelo menos estarei com a minha realidade, respeitando o delírio dos outros, que acham que isso é um governo e isso é um Congresso. No fundo, sei o que são. Só os chamarei de governo e Congresso para estabelecer uma linguagem comum.

As investigações não servem apenas para punir, mas para refazer nossa relação com o Brasil. Que país é esse? Como viver essa farsa política? Como resistir a um governo cínico e impermeável às regras republicanas? Li um pouco sobre a relação do povo com os governos no Leste Europeu e bastante sobre a saga dos intelectuais em Cuba. São condições muito diferentes da nossa, mas sua experiência ensina a viver, quando não se tem ilusões sobre a natureza do governo. Eles têm algo a ensinar. Mas só voltarei ao manual de sobrevivência se toda essa onda de óleo se tornar uma gigantesca pizza de alcatrão.
 

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