Serenadas as emoções da vitória a presidente reeleita foi à televisão pedir “um amplo diálogo com a sociedade” para debater as reformas de que o país necessita.
É
um tom bem mais adequado ao retrato do Brasil que saiu das urnas que o
do dia anterior, no discurso de agradecimento à militância
compreensivelmente contaminado pelas emoções da confirmação da vitória.
Metade
mais 1,64% do eleitorado acabava de sair das urnas certo de que tinha
comprado a garantia de um prato de comida mais cheio pela confirmação do
Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, de aumentos do salário
mínimo, da criação do Pronatec e de outros instrumentos em torno dos
quais a outra metade menos 1,64% representada pelo candidato de oposição
declarava-se plenamente de acordo, mas entrou na comemoração da vitória
do PT sendo comunicada de que o que levará para casa é o compromisso
fechado com um “plebiscito”
sobre a reforma política, embora essa palavra não tenha sido
pronunciada uma única vez sequer, seja nas dezenas de peças da
propaganda gratuita recitadas pela candidata Dilma na televisão, seja em
qualquer dos oito debates presidenciais do 1º e do 2º turnos.
Não soou como um bom presságio pois “plebiscito” é um tipo de mecanismo que aponta exatamente na direção contrária da “união”
em torno de um consenso posto que o que quer que venha a ser decidido
por esse método pode, por definição, ser imposto à metade menos um dos
brasileiros que vierem a votar contra o que for proposto. Por isso os
plebiscitos são usados exclusivamente para dirimir questões de
formulação simples e sem mais implicações que a expressamente contida
nessa formulação, passíveis de serem decididas por um “sim” ou por um “não”, como aquela a respeito da qual foram chamados a se manifestar os eleitores uruguaios: “Você é a favor ou contra a redução da maioridade penal para 16 anos”?
Este
não é absolutamente o caso de uma reforma política, assunto que se
desdobra em inumeros subtemas, todos eles afetando diretamente o
conjunto dos direitos e das liberdades de cada cidadão, e que,
dependendo do modo como forem combinados entre si e até da ordem em que
forem apresentados, podem ter o seu significado e os seus efeitos
práticos simplesmente invertidos.
O problema é tão velho quanto a própria democracia.
Propor
diálogos nacionais é sempre um bom início de conversa. Mas quando chega
a hora de materializar esses diálogos só ha duas maneiras de fazê-lo:
criar um sistema em que toda a sociedade vota em representantes previa e
individualmente identificados para o fim específico de mandatá-los para
discutir e aprovar leis ou “mudanças” em seu nome (o “sufrágio universal”),
ou confiar no governante de plantão para definir como achar melhor
quem, a seu ver, representa a sociedade como um todo e chamar essa
minoria para decidir as mudanças ao seu gosto.
Foram
tantos os desastres ensejados pela escolha errada do modo de promover
grandes decisões nacionais ao longo dos 2600 anos transcorridos desde o
primeiro ensaio da democracia em Atenas, todos conduzindo a longos
períodos de servidão ou a conflitos sangrentos, que a Declaração
Universal dos Direitos do Homem da qual o Brasil é signatário houve por
bem esclarecer o assunto.
Não é por outra razão que no Artigo 26, paragrafo 3º, ela consagra o “sufrágio universal”
como a única forma legitima de eleger representantes, seja para cargos
executivos, seja para discutir e aprovar as leis em governos “do povo, para o povo e pelo povo”.
Todas as outras são falsas.
A presidente Dilma explicou nessas mesmas entrevistas que a sua sugestão de um plebiscito responde a “um apelo que recebeu de movimentos sociais apoiado por 5 milhões de assinaturas”.
Mas na sequência de uma eleição que mobilizou 140 milhões de eleitores
esse número só faz enfatizar sua própria insignificância.
Afinal, se a campanha toda transcorreu sob a acusação de que reeleger Dilma Rousseff para mais um mandato era o contrário de “mudar”,
porque o PT preferiu correr o risco de ser visto assim numa disputa
voto a voto a aproveitar a campanha para explicar didaticamente à massa
dos eleitores qual era a reforma política que pretendia fazer e por que
método?
Não foi, certamente, porque essa idéia só lhe tenha ocorrido diante do resultado das urnas, para pacificar o país.
O Decreto da Presidência nº 8243, assinado pela própria presidente Dilma seis meses antes da eleição determina, aliás, que “movimentos sociais”
como esses que lhe entregaram os 5 milhões de assinaturas de apoio a um
plebiscito, se apropriem, sem passar pelo sufrágio universal, das
prerrogativas exclusivas dos representantes eleitos por todos os
brasileiros de propor, discutir e aprovar nossas leis. Posta de lado a
questão de serem eles parte diretamente intessada nessa troca de papéis,
o fato dela contrariar diretamente não apenas a Declaração Universal
dos Direitos do Homem mas também a letra da Constituição da República
Federativa do Brasil coloca a iniciativa sob suspeita de constituir-se
num artifício para dar ares de legitimidade a um expediente que é
flagrantemente ilegítimo.
A
tática de usar o expediente do plebiscito para, uma vez eleito pelo
sufrágio universal para um único mandato no poder, amarrar amplos
pacotes de reformas embutidos nas quais vêm, invariavelmente, mecanismos
que desclassificam o sufrágio universal como a única forma legítima de
chegar ao poder, seja para funções executivas, seja para funções
legislativas, tem sido sugerida pelo Foro de São Paulo, a entidade
criada e dirigida pelo ex-presidente Lula que reune partidos que
comungam as crenças do PT, e utilizada em vários países vizinhos do
Brasil onde, desde então, não houve mais alternância no poder.
É,
portanto, mais que benvindo o apelo da presidente Dilma,
legitimimamente eleita pelo sufrágio universal num país dividido por uma
margem de 1,64% do eleitorado, por um amplo diálogo nacional em torno
da reforma política e da reforma eleitoral que se fazem necessárias. Mas
desde que essa convocação comece por uma pergunta sobre o que queremos e
por que métodos queremos e não pela resposta que, dentro do espírito
democrático, só deveria surgir ao fim desse debate.
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