Folha de São Paulo
A esquerda, inclusive muitos ou todos que assinam o manifesto, sempre denunciou a maneira como se enriquece no México (ou no Brasil).
Sempre achei que a esquerda, nacional e internacional, ficou soterrada
sob os escombros do Muro de Berlim. Até aí, dava para entender embora
não para justificar. Afinal, a queda do Muro e o consequente fim
simbólico do comunismo foram acontecimentos tão transcendentais que
teriam mesmo que desnortear até quem estava do lado de cá do Muro,
quanto mais os que simpatizavam com o lado derrotado.
O que surpreende, agora, com o manifesto de escritores e artistas em
defesa de José Dirceu, é que esse pessoal não conseguiu sair nem sequer
da rua Maria Antônia, cuja simbologia antecede de muito a queda do Muro.
É inacreditável que gente que parece inteligente não perceba que José
Dirceu deixou há séculos de ser o jovem idealista que lutava contra a
ditadura nas barricadas estudantis de 1968.
Nem era preciso o mensalão ou, agora, o petrolão para fazer uma constatação tão óbvia.
Bastava saber, por exemplo, que Dirceu admitiu à revista "Piauí", em
2008, que prestava consultoria ao bilionário mexicano Carlos Slim, um
dos três homens mais ricos do mundo, segundo a revista "Forbes".
A esquerda, inclusive muitos ou todos que assinam o manifesto, sempre denunciou a maneira como se enriquece no México (ou no Brasil).
Um idealista de verdade jamais prestaria serviços a esse tipo de empresário.
O estranhamento não é apenas meu, mas de um fundador do PT, o cientista
político Rudá Ricci, que se afastou do partido desencantado.
Escreveu Rudá após a entrevista de Dirceu à "Piauí":
"O grande problema não foi se expor como um megaconsultor, homem de R$
15 mil por consultoria, ou R$ 150 mil mensais. Esta vaidade de se expor é
estranha para um ex-clandestino de esquerda. Revelar que trabalha para o
homem mais rico do mundo também é estranho para um ex-presidente do
maior partido de esquerda do país. Mas são idiossincrasias que acometem
as melhores famílias".
À essa lucrativa "idiossincrasia" somaram-se consultorias –não
devidamente comprovadas, segundo a Polícia Federal– às maiores
empreiteiras do país.
No tempo em que a esquerda pensava, não deixava de denunciar a
promiscuidade entre obras públicas, tocadas em geral por essas mesmas
empreiteiras, e poder público.
Hoje, ao defender Dirceu, defende-se automaticamente a promiscuidade,
como se houvesse maracutaia do bem (as "nossas") e do mal ("as dos
outros").
Os pedidos, em voz quase inaudível, para que o PT faça um reexame de suas práticas já surgiram em 2008, na esteira do mensalão.
Rudá Ricci, por exemplo, escrevia então: "Seria fantástico se o
julgamento [do mensalão] provocasse um debate franco entre petistas e
toda esquerda tupiniquim. Mas já não tenho mais 20 anos. Não tenho
motivos para acreditar que o brilho da utopia seja mais forte que as
cores reluzentes do poder absoluto e domesticador".
Bingo, Rudá. O poder domesticou não só dirigentes do PT mas também uma
fatia da intelectualidade, o que é um contrassenso: intelectual, por
definição, é contestador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário