sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"Presos na rua Maria Antônia", por Clóvis Rossi


Folha de São Paulo



Sempre achei que a esquerda, nacional e internacional, ficou soterrada sob os escombros do Muro de Berlim. Até aí, dava para entender embora não para justificar. Afinal, a queda do Muro e o consequente fim simbólico do comunismo foram acontecimentos tão transcendentais que teriam mesmo que desnortear até quem estava do lado de cá do Muro, quanto mais os que simpatizavam com o lado derrotado.


O que surpreende, agora, com o manifesto de escritores e artistas em defesa de José Dirceu, é que esse pessoal não conseguiu sair nem sequer da rua Maria Antônia, cuja simbologia antecede de muito a queda do Muro. É inacreditável que gente que parece inteligente não perceba que José Dirceu deixou há séculos de ser o jovem idealista que lutava contra a ditadura nas barricadas estudantis de 1968.

Nem era preciso o mensalão ou, agora, o petrolão para fazer uma constatação tão óbvia.


Bastava saber, por exemplo, que Dirceu admitiu à revista "Piauí", em 2008, que prestava consultoria ao bilionário mexicano Carlos Slim, um dos três homens mais ricos do mundo, segundo a revista "Forbes".



A esquerda, inclusive muitos ou todos que assinam o manifesto, sempre denunciou a maneira como se enriquece no México (ou no Brasil).

Um idealista de verdade jamais prestaria serviços a esse tipo de empresário.
O estranhamento não é apenas meu, mas de um fundador do PT, o cientista político Rudá Ricci, que se afastou do partido desencantado.
Escreveu Rudá após a entrevista de Dirceu à "Piauí":

"O grande problema não foi se expor como um megaconsultor, homem de R$ 15 mil por consultoria, ou R$ 150 mil mensais. Esta vaidade de se expor é estranha para um ex-clandestino de esquerda. Revelar que trabalha para o homem mais rico do mundo também é estranho para um ex-presidente do maior partido de esquerda do país. Mas são idiossincrasias que acometem as melhores famílias".


À essa lucrativa "idiossincrasia" somaram-se consultorias –não devidamente comprovadas, segundo a Polícia Federal– às maiores empreiteiras do país.

No tempo em que a esquerda pensava, não deixava de denunciar a promiscuidade entre obras públicas, tocadas em geral por essas mesmas empreiteiras, e poder público.

Hoje, ao defender Dirceu, defende-se automaticamente a promiscuidade, como se houvesse maracutaia do bem (as "nossas") e do mal ("as dos outros").

Os pedidos, em voz quase inaudível, para que o PT faça um reexame de suas práticas já surgiram em 2008, na esteira do mensalão.

Rudá Ricci, por exemplo, escrevia então: "Seria fantástico se o julgamento [do mensalão] provocasse um debate franco entre petistas e toda esquerda tupiniquim. Mas já não tenho mais 20 anos. Não tenho motivos para acreditar que o brilho da utopia seja mais forte que as cores reluzentes do poder absoluto e domesticador".

Bingo, Rudá. O poder domesticou não só dirigentes do PT mas também uma fatia da intelectualidade, o que é um contrassenso: intelectual, por definição, é contestador.

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