Política
A conta de chegar e a conta de sair
Gaudêncio Torquato
Não é de hoje que o
Brasil vive o dilema de administrar duas contas: a de chegar e a de
sair. A primeira abriga repertório, programas e atos que impulsionam o
país, garantindo uma escalada crescente na esfera das Nações, o que lhe
confere respeito, credibilidade para levar a cabo metas e aspirações. Um
exemplo? O avanço alcançado pela política de inserção social, que
propiciou a ascensão de cerca de 30 milhões de brasileiros às classes
médias. Um tento.
Já a conta de sair reúne o acervo das demandas e
carências, erros, falhas e ausências do Estado no exercício de suas
funções constitucionais, manchas que borram a imagem de um país na
paisagem internacional, e, consequentemente, o impedem de ostentar a
marca de grandeza. Um exemplo? Os recentes episódios no presídio de
Pedrinhas, no Maranhão, cujos detalhes – decapitação de corpos,
enforcamentos – ganharam espaços na mídia mundial, projetando estes
nossos trópicos no ranking da barbárie e fragilizando seu discurso nos
palcos da diplomacia. Uma vergonha.
Afinal, qual a maior ambição
brasileira na esfera da política internacional? Ter um assento
permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Mesmo que reunisse
condições para tanto, seria irrefutável a hipótese de que uma Nação
democrática, caso queira emprestar colaboração à meta de manter a paz e a
segurança internacional, função que compete ao Conselho de Segurança,
precisa demonstrar compromisso com sólida política de segurança interna.
Não
é o nosso caso. Um território inseguro, assaltado pela violência, que
registra 50 mil homicídios anuais, um déficit de 200 mil vagas no
sistema carcerário, e onde cerca de 20 pessoas desaparecem diariamente
sob alarmantes violações aos direitos humanos, estaria confortável numa
cadeira do órgão que define diretrizes para a segurança mundial? Não
seria o caso de inferir que, ali, o Brasil acabaria produzindo
incongruente discurso, do tipo: “Faça o que digo, mas não faça o que
faço”?
O grau de arrogância e autossuficiência que se vê em
diversas frentes da vida institucional – expandido na esteira do bordão
“pela primeira vez na história deste país” – funciona como viseira de
governantes incapazes de enxergar desvios, corrigir rumos e aceitar
sugestões.
Antes, porém, que o epíteto de “catastrófico” seja
jogado nestas linhas, façamos o exercício de identificar alguns traços
da grandeza nacional. Somos uma potência emergente, com elevado papel
nos fóruns de decisão política e econômica, graças ao desenvolvimento
alcançado nas últimas décadas.
O Brasil encontrou o fio da meada,
pagou a dívida ao FMI, exerce um papel de liderança entre os países da
América do Sul, tem razoável influência na América Central e ajuda
países da África, com os quais mantém estreitas relações.
Nossa
democracia dá sinais de vitalidade, com o funcionamento pleno dos
Poderes, apesar de tensões frequentes, não havendo ameaças de rompimento
nos dutos democráticos.
A população, já ultrapassando 200 milhões
de pessoas, se anima na esteira da mobilização de grupos e comunidades,
a denotar crescente interesse em participar do processo político. Nosso
sistema de consumo se expande sob empuxo de políticas de redistribuição
de renda.
Dispomos de moderna estrutura de produção, com
monumental seara plantada pelo agronegócio, um animado setor de
serviços em expansão, um parque industrial arrojado (mesmo padecendo de
agruras) e promissoras perspectivas nos campos da exploração de petróleo
(pré-sal).
O país conquistou, mais recentemente, o comando da
Organização Mundial do Comércio, tem a China como principal parceiro
comercial, sinaliza expansão na política multilateral e vontade de
fortalecer vínculos com os EUA e a Europa. Integra o G-20, o grupo que
toca a orquestra da economia internacional.
E participou de
operações de imposição de paz e ajuda a governos em diversos
territórios, como República Dominicana, Canal de Suez, Angola,
Moçambique, Líbano, Timor Leste e Haiti. Essa é, portanto, a base do um
portentoso edifício, ou, em outros termos, a conta de chegar para
disputar espaços de mando e influência na textura das Nações. O que
falta, agora, é estreitar a conta de sair, ou seja, atenuar e mesmo
eliminar as tintas que enfeiam a paisagem dos nossos campos e cidades, a
começar por declives e despenhadeiros nos vãos da segurança pública.
O
país tem afundado neste lamaçal. Desde os anos 90, fragmenta-se o
cordão da segurança pública. Já existem mais de 500 mil adultos
encarcerados, número que cresceu 30% nos últimos 5 anos, mas 43% dessa
população excedem a capacidade do sistema prisional.
E há 200 mil
presos aguardando julgamento. Soma-se a esse contingente 20 mil
adolescentes que cumprem medida socioeducativas com privação de
liberdade. As projeções são sombrias. Frágeis índices de escolaridade,
desigualdade, tortura em delegacias e centros de detenção, quadros
policiais muito violentos, execuções extrajudiciais, superlotação das
prisões, impunidade para abusos, salários vergonhosos de policiais,
pobreza nas periferias, ausência de espaços de lazer, falta de
treinamento, desaparelhamento de estruturas, a par das angústias urbanas
– precários sistemas de mobilidade, atendimento precário dos centros de
saúde – arrematam a descosturada malha da segurança e elevam às alturas
os índices de violência.
O copo das águas destoantes transborda.
Os direitos humanos são hasteados nos mastros da cidadania, a deixar ver
o apurado gosto nacional por verborragia bombástica. Mas o vento das
ruas rasga discursos. Não por acaso, o assessor de Direitos Humanos da
Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro, proclama: “Há por
aqui um déficit de justiça muito grande. O Brasil é um país com ótimas
leis, mas que não são cumpridas”.
Ora, o velho Barão de
Montesquieu já lidava com esse mote. Vivia dizendo: “Quando vou a um
país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há,
pois há boas leis por toda parte”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato
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