sábado, 3 de maio de 2014

Lula: dinheiro faz do PT um partido convencional


Josias de Souza




Ao discursar no Encontro Nacional em que o PT aclamou Dilma Rousseff como pré-candidata à reeleição, Lula instou os dirigentes e militantes da legenda a perseguirem um desafio extra em 2014. “Junto com a eleição da Dilma, nós temos que fazer um processo de recuperação da imagem do PT, mas, sobretudo, precisamos fazer uma campanha para construir uma nova utopia na cabeça de milhões e milhões de jovens brasileiros”, disse.



A certa altura, Lula estabeleceu uma comparação entre o PT que ele fundou em 10 de fevereiro de 1980, e a legenda que exerce a Presidência da República há quase 11 anos, desde janeiro de 2003. Transmitidas ao vivo pela internet, suas declarações ficaram muito parecidas com uma autocrítica. O líder máximo do petismo concluiu que o dinheiro fez muito mal àquela legenda fundada há 34 anos.


Vale a pena ouvir Lula: “Nós criamos um partido político foi para ser diferente de tudo o que existia quando nós criamos esse partido. Esse partido não nasceu para fazer tudo o que os outros fazem. Esse partido nasceu para provar que é possível fazer política de forma mais digna, fazer política com ‘P’ maiúsculo.”


Escute-se mais um pouco de Lula: “Nós precisamos, então, voltar a recuperar o orgulho que foi a razão da existência desse partido em momentos muito difíceis, porque a gente às vezes não tinha panfleto para divulgar uma campanha. Hoje, parece que o dinheiro resolve tudo. Os candidatos a deputado nao têm mais cabo eleitoral gratuito. É tudo uma máquina de fazer dinheiro, que está fazendo o partido ser um partido convencional.”


Antes de discursar, Lula trocara um dedo de prosa com o presidente da CUT, Vagner Freitas. Ouvira dele um relato sobre o que sucedera na véspera, nos festejos do Dia do Trabalhador. Na celebração da CUT, os petistas que ousaram se interpor entre a plateia e as atrações musicais tomaram vaias e foram alvejados por latas, garrafas e bolas de papel.


“Eu ouvi do companheiro Vagner, presidente da CUT, hoje, que o 1º de Maio estava muito grande”, discursou Lula. “Mas ninguém queria ouvir falar de político. Não podia citar o nome de político que era vaiado. Então, companheiros, acho que esse é um desafio tão importante e tão grave quanto a gente eleger a Dilma.”


Evocando a “experiência” que acumulou nos últimos 12 anos, Lula disse, em timbre peremptório: “uma parte da elite brasileira não nos suporta.” Gente mal agradecida, que cospe no prato que comeu. “Como é que uma parte da elite brasileira é ingrata com um governo que consertou esse país?”, indagou.


Lula parecia referir-se ao empresariado que torce o nariz para Dilma. Mesmo sabendo que o governo, desde a sua época, “fez esse país crescer, criou um exército de consumidores como jamais foi criado nesse país, fez a economia se transformar numa economia forte, independentemente de o PIB [não] ter o tamanho que as pessos desejam.”


Lula não deu nome à “parte da elite brasileira” que ele considera “ingrata”. Mas deve ser um pedaço minoritário da plutocracia. Do contrário, o PT não teria virado essa “máquina de fazer dinheiro” que o transformou num “partido convencional”. O próprio Lula não tem do que se queixar. Construiu o instituto que leva o seu nome a partir de generosas contribuições. De resto, amealhou um patrimônio milionário derramando o suor de sua língua em palestras para o naco da elite que sabe ser grato.


Lula voltou a falar de dinheiro no trecho do discurso em que declarou que “não é possível aceitar gratuitamente a tentativa da elite brasileira de destruir a imagem da empresa que durante tantos anos é motivo de orgulho para o nosso povo.” Referia-se à Petrobras, que está na bica de ser varejada por uma CPI. Aliás, Lula disse que a estatal, de tempos em tempos, é alvejada por ameaças de CPI. “Sempre em época de eleição.”


Tomado por suas declarações, Lula é um bom candidato a depoente da CPI que o Congresso está prestes a instalar. Ele disse coisas assim: “…Eu era presidente e, muitas vezes, nessas campanhas, sempre aparecia alguém com um bilhetinho dizendo que era preciso fazer uma CPI da Petrobras.”


Lula falou como se estivesse impondo à própria língua um voto de silêncio: “Eu, às vezes, fico nervoso, não posso falar, porque eu não tenho imunidade. Mas a impressão que eu tenho é que tem gente querendo fazer caixa de campanha ameaçando em toda época de eleições a Petrobras.” Levado ao banco da CPI, Lula talvez explicasse de que maneira os oposicionistas que defendem a CPI podem fazer dinheiro na Petrobras de fora para dentro.
Hoje, graças aos bons serviços do Ministério Público e à Polícia Federal , a impressão que se tem é a de que é bem mais fácil “fazer caixa de campanha” na Petrobras de dentro para fora. Que o diga o ex-diretor preso Paulo Roberto Costa.


Guindado à poderosa diretoria de Abastecimento da Petrobras sob Lula, que o chamava de “Paulinho”, o agora detento era patrocinado por um condomínio de partidos que incluía o PP, o PMDB e o PT. Decerto não foi por ideologia que essas legendas emprestaram o seu rendoso prestígio político ao ex-diretor.


No seu esforço para restaurar a imagem do PT, Lula disse que correrá o país em campanha. Onde houver um candidato do PT, lá estará o grande líder. “Acho que está na hora de a gente voltar a falar grosso em defesa do nosso partido”, disse Lula. Sem mencionar-lhe o nome, ele espinafrou o ainda deputado federal paranaense André Vargas, recém-desfiliado do PT. “Para a gente falar grosso em nome desse partido, a gente não pode compactuar com pessoas do nosso partido ou pessoas com mandato pelo nosso partido que façam coisas em caráter pessoal, sem se importar com o prejuízo que o partido vai ter.”


De fato, a julgar pelos achados da Polícia Federal, o ex-companheiro Vargas fez coisas com as quais um “partido que não nasceu para fazer tudo o que os outros fazem” jamais poderia “compactuar”. O ex-companheiro desenvolveu um relacionamento monetário com o doleiro Alberto Yossef, o “lava jato” do dinheiro pouco asseado que personagens como o ex-diretor “Paulinho” vinham prospectando nas águas profundas dos negócios petroleiros.


Lula falou “grosso” também no instante em que injetou o mensalão  no seu discurso. Só que, nesse caso, sua voz rouca voltou-se contra a imprensa golpista. “Há um processo em andamento que chega a ser uma perseguição ao nosso partido”, disse. “Parece que é uma coisa pessoal contra o José Dirceu, contra o José Genoino, contra o João Paulo, contra o Delúbio ou contra qualquer companheiro.”


“O dado concreto”, prosseguiu Lula, “é que, enquanto as pessoas se preocupam em todo dia tentar veicular uma notícia sobre os nossos companheiros do PT que estão presos, o mesalão mineiro [do PSDB], de fininho, voltou para Belo Horizonte. E ninguém comenta.” 


Ninguém?!? Uma ova. Quem silencia, talvez por constrangimento, é o PT. Aqui, se comenta.
Lula parece fazer uma distinção entre Vargas, o amigo do doleiro Youssef, e a cúpula presa do mensalão. Para André Vargas, que fez “coisas em caráter pessoal”, o microondas. Para a turma da Papuda, que invadiu o Código Penal em missão partidária, a solidariedade eterna.


“Penso que precisamos começar a nos preocupar, porque o problema não são apenas os companheiros que estão presos”, declarou Lula, prenhe de compreensão. “O problema é que a perseguição é contra o nosso partido. A perseguição é porque eles não admitem, desde quando nós ganhamos as eleições de 2002, eles não admitem que a gente consiga provar que é possível fazer nesse país o que eles não fizeram durante tantas décadas.”


Em relação a Vargas, cujo pedido de abertura de inquérito ainda nem foi apreciado pelo STF, os indícios da PF e as notícias da imprensa bastam para que Lula ligue o forno: “Eu acho que nós temos que ter consciência de uma coisa que tem que permear a vida do PT. A primeira coisa é a seguinte: se alguém, entre nós, cometer um erro tem que pagar pelo erro que cometeu.”


Para os mensaleiros, já condenados e presos, e para a Petrobras, virada de ponta-cabeça nas manchetes, Lula está convencido de que “a gente não pode permitir que uma quantidade de mentirars deslavadas sejam veiculadas todo santo dia como se fossem a mais pura verdade, muitas vezes até sem dar ao pensamento contrário o direito de se explicar.”


O que Lula não explicou é como fará para devolver ao PT aquela aparência imaculada que ostentava na década de 80. Um bom começo pode ser uma consulta ao oculista. Até os grandes líderes políticos, à medida em que envelhecem vão enfraquecendo a vista. É uma forma que a natureza encontra para evitar que certos personagens enxerguem suas contradições no espelho.


Não é garantido que, melhorando a qualidade de suas lentes, Lula vá enxergar instantaneamente a receita para a restauração da imagem do PT. Mas pelo menos ele terá a oportunidade de enxergar o problema. O principal problema é o seguinte: a sociedade é incapaz de reconhecer a honestidade dos políticos. E os políticos são incapazes de demonstrá-la.

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