O GLOBO - 27/10
Em nome de alegadamente superar dificuldades ditadas por demandas estruturais, de soluções mais complexas, o país tem sido pródigo em recorrer a medidas imediatistas, rasas — que não atacam a raiz dos problemas e propõem saídas pontuais, epidérmicas. Cria-se, com isso, a sensação de que se removeram obstáculos, quando, na verdade, fica apenas a falsa impressão de que grupos até então atingidos por algum tipo de conflito terão ingressado no melhor dos mundos. As dificuldades persistem, mas se vende a ideia de que elas estão ultrapassadas em definitivo.
É o terreno em que prospera o populismo, na política, na cultura ou outros setores. Uma dessas manifestações, em que há um receituário contra as consequências, em lugar da mais árdua opção por atacar as causas, ganhou abrigo no Senado. Por meio de sua Comissão de Educação, a Casa discute uma reforma ortográfica que mal disfarça o viés populista. A ideia central dos patrocinadores dessa causa é a adoção, na língua escrita, do princípio de “se escrever como se fala". O substrato seria uma pretensa necessidade de simplificar a ortografia para facilitar a alfabetização.
Em nome disso, o grupo que defende a reforma propõe a supressão de letras que não se pronunciam nas palavras (como o “h” em “hoje”) e a duplicidade da grafia para o mesmo som. A História está cheia de supostos bons propósitos que, deliberadamente ou não, surgem, como ideia, com objetivos nobres, mas que, na prática, se revelam nocivos. Este é um deles. Mira-se uma pretensa inclusão social, mas a proposta mal disfarça seu caráter discriminatório, pois parte do princípio de que as pessoas a quem se pretenderia beneficiar com as mudanças não teriam condições de se educar para alcançar novo patamar cultural.
A deterioração da norma culta, portanto, se manifesta como metástase da perigosa doença do populismo. É sintomático que, contra essa iniciativa, tenham se levantado vozes representativas da inteligência nacional. A preocupação imediata é que, tendo alcançado o Legislativo, o movimento prospere a ponto de tais ideias chegarem ao plenário em forma de projeto de lei.
A presidente da Associação Brasileira de Linguística, Marília Ferreira, enviou à comissão do Senado um texto alertando que dificuldades de alfabetização não são provocadas pela ortografia, mas pelas escassas oportunidades que segmentos de estratos sociais mais baixos, supostos beneficiários, têm de acesso a experiências educacionais e culturais paralelas ao processo de aprendizado formal. O filólogo Evanildo Bechara atribui a defesa da simplificação a um equívoco. E, em artigo recente no GLOBO, a escritora Ana Maria Machado deu a receita: o remédio é qualidade na educação.
São opiniões que não podem ser desprezadas pelo Senado, caso se pretenda de fato levar à frente, até o imprevisível crivo do plenário, o absurdo que se discute na Casa.
Em nome de alegadamente superar dificuldades ditadas por demandas estruturais, de soluções mais complexas, o país tem sido pródigo em recorrer a medidas imediatistas, rasas — que não atacam a raiz dos problemas e propõem saídas pontuais, epidérmicas. Cria-se, com isso, a sensação de que se removeram obstáculos, quando, na verdade, fica apenas a falsa impressão de que grupos até então atingidos por algum tipo de conflito terão ingressado no melhor dos mundos. As dificuldades persistem, mas se vende a ideia de que elas estão ultrapassadas em definitivo.
É o terreno em que prospera o populismo, na política, na cultura ou outros setores. Uma dessas manifestações, em que há um receituário contra as consequências, em lugar da mais árdua opção por atacar as causas, ganhou abrigo no Senado. Por meio de sua Comissão de Educação, a Casa discute uma reforma ortográfica que mal disfarça o viés populista. A ideia central dos patrocinadores dessa causa é a adoção, na língua escrita, do princípio de “se escrever como se fala". O substrato seria uma pretensa necessidade de simplificar a ortografia para facilitar a alfabetização.
Em nome disso, o grupo que defende a reforma propõe a supressão de letras que não se pronunciam nas palavras (como o “h” em “hoje”) e a duplicidade da grafia para o mesmo som. A História está cheia de supostos bons propósitos que, deliberadamente ou não, surgem, como ideia, com objetivos nobres, mas que, na prática, se revelam nocivos. Este é um deles. Mira-se uma pretensa inclusão social, mas a proposta mal disfarça seu caráter discriminatório, pois parte do princípio de que as pessoas a quem se pretenderia beneficiar com as mudanças não teriam condições de se educar para alcançar novo patamar cultural.
A deterioração da norma culta, portanto, se manifesta como metástase da perigosa doença do populismo. É sintomático que, contra essa iniciativa, tenham se levantado vozes representativas da inteligência nacional. A preocupação imediata é que, tendo alcançado o Legislativo, o movimento prospere a ponto de tais ideias chegarem ao plenário em forma de projeto de lei.
A presidente da Associação Brasileira de Linguística, Marília Ferreira, enviou à comissão do Senado um texto alertando que dificuldades de alfabetização não são provocadas pela ortografia, mas pelas escassas oportunidades que segmentos de estratos sociais mais baixos, supostos beneficiários, têm de acesso a experiências educacionais e culturais paralelas ao processo de aprendizado formal. O filólogo Evanildo Bechara atribui a defesa da simplificação a um equívoco. E, em artigo recente no GLOBO, a escritora Ana Maria Machado deu a receita: o remédio é qualidade na educação.
São opiniões que não podem ser desprezadas pelo Senado, caso se pretenda de fato levar à frente, até o imprevisível crivo do plenário, o absurdo que se discute na Casa.
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