| 9 novembro, 2014
No Brasil, o avanço dos interesses econômicos tem posto o
governo Dilma Rousseff de joelhos.
Os últimos governos não conseguiram fortalecer órgãos estatais dedicados
à proteção dos patrimônios histórico-cultural (material e imaterial), arqueológico e ambiental, e a
ordem agora é flexibilizar a legislação em favor de empreiteiras, mineradoras e grandes obras públicas,
colocando na mão do empreendedor ou do gestor público de municípios
(que mal pagam seus funcionários e mal sabem – nem querem saber – a
diferença
entre Arqueologia, Antropologia e Paleontologia), o poder de
deliberarem se a obra está ou não em área de determinado interesse.
Boa parte dessa velha crise, que agrava-se, se revela no gesto da
arqueóloga Niède
Guidon, que em setembro desse ano doou parte de um prêmio que recebeu à
construção do Aeroporto Internacional Serra da Capivara. A conclusão das obras de modificação da pista do aeroporto,
no município de São Raimundo Nonato, é condicionante
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao Museu da Natureza, que ficará dentro do Parque Nacional da Serra da Capivara. Famoso por suas pinturas rupestres, o
parque sofre reincidentemente de crise
financeira, o que compromete a preservação do maior conjunto
de sítios pré-históricos do país e onde se tem o mais antigo registro
da presença humana nas Américas, há cerca de 60 mil anos.
As mudanças na regulamentação estavam sendo feitas na surdina, mas
uma cópia
pirata dessa
nova Instrução Normativa (IN) do Instituto do Patrimônio Histórico e
Arqueológico (IPHAN) vazou na internet. O Procurador da República Marcos
Paulo de Souza Miranda, do Ministério
Público Federal (MPF) em Minas Gerais, fez a denúncia que
viralizou e, junto com as matérias que imediatamente
produzimos, repercutiu na comunidade
científica também no exterior. (ver
Revista Argentina Subterranea, págs. 19 a 24)
A pressão sobre a nova Instrução
Normativa (IN) 01/2014 do IPHAN culminou numa Audiência
Pública realizada pelo MPF no Rio de Janeiro, em 13/10/2014.
O encontro contou com a presença, também, de representantes do IBAMA,
do Instituto Estadual do Ambiente do Governo do Estado do Rio de Janeiro
(INEA), da Sociedade Brasileira de Arqueologia
(SAB), doutrinadores, servidores ligados ao patrimônio e ao licenciamento ambiental, cientistas e estudantes e revelou, nas falas do
IPHAN e do MPF, que órgãos
estatais, cujas atividades afetam diretamente o patrimônio e o meio
ambiente, mal conhecem a legislação ou a importância de um sítio
arqueológico, quiçá trabalham em sinergia;
e que há em curso um desmonte de importantes órgãos governamentais –
IPHAN, IBAMA, FUNAI, Fundação Palmares -, numa clara ameaça ao meio
ambiente natural e cultural e às populações tradicionais (indígenas e
quilombolas).
Da análise da IN 01/2014 e das informações expostas na Audiência
Pública, o Grupo de Trabalho Patrimônio Cultural do MPF,
preparou uma carta (abaixo) que recomenda ao IPHAN que “se abstenha de
publicar a IN 01/2014 na forma como apresentada no evento ocorrido no
dia 13/10/2014″, em razão de fundamentos fáticos
e jurídicos expostos. A
carta de recomendação do MPF é de 22 de outubro de 2014 e foi divulgada em sites especializados e grupos de discussão sobre o tema, essa semana. Nela,
o MPF pede que a autarquia responda, no prazo máximo de trinta dias,
com o acatamento, nova minuta da IN ou justificativa à sua eventual
discordância.
_______________________________________________
RECOMENDAÇÃO 02/2014
GT Patrimônio Cultural – PA 1.00.000.007294/2008-19
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, no
desempenho de suas funções de defensor da ordem jurídica vigente e de
zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública, bem como aos direitos assegurados na Constituição
Federal (arts. 127, caput, e129, II), entre
eles o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
mediante a preservação do patrimônio cultural brasileiro e a definição
de espaços territoriais especialmente protegidos (artigos 225, § 1º, III
e 216), com amparo no artigo 27, parágrafo
único, IV, da Lei 8.625/93, por intermédio da Procuradora da República
ao final assinada e
CONSIDERANDO que
cabe ao
Ministério Público a expedição de recomendações, visando à melhoria dos
serviços públicos e de relevância pública, bem como o respeito aos
interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis,
com fulcro no artigo 6º, inciso XX da Lei Complementar n.º 75/93 (Estatuto do Ministério Público da União);
CONSIDERANDO que,
segundo
os ditames da Recomendação sobre a conservação dos bens culturais
ameaçados pela execução de obras públicas ou privadas, exarada pela
Conferência Geral da UNESCO, em sua 15ª Sessão, em Paris, datada de 19
de novembro de 1968, os países que compõem o referido
organismo internacional devem assegurar que seja realizado o salvamento
ou resgate dos bens culturais situados em local que deva ser
transformado pela execução de obras públicas ou privadas;
CONSIDERANDO que,
conforme
dispõe o artigo 216, inciso V, da Constituição da República, constituem
o patrimônio cultural brasileiro “os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico”, dentre outros bens que
remetem à formação do povo brasileiro;
CONSIDERANDO que
a recente
minuta da IN 01/2014, objeto de intensos debates em audiência pública
realizada pelo MPF em 13/10/2014, se propõe a regular toda e qualquer
atuação do IPHAN no curso de licenciamento ambiental, detalhando, com
ênfase especial, a atuação da autarquia federal
no que tange ao seu poder-dever de proteção ao patrimônio arqueológico,
previsto na Lei 3.924/61;
CONSIDERANDO que a participação
do IPHAN nos licenciamentos ambientais, conforme minuta da IN 01/2014, se fundamenta apenas na tipologia e tamanho dos
empreendimentos, desconsiderando o critério locacional para definição
de intervenção da autarquia, fazendo com que áreas de
alto potencial arqueológico - v.g., áreas cársticas ou de ocorrência
de cavidades naturais subterrâneas, zona costeira, unidades de
conservação criadas com o objetivo de proteção do patrimônio cultural,
bacias paleontológicas, sítios históricos coloniais
– sejam desconsideradas como merecedoras de especial tratamento
protetivo;
CONSIDERANDO que
a minuta
de Instrução Normativa 01/2014 não contempla como bens acautelados em
nível federal, v.g., os Monumentos Nacionais; o patrimônio
paleontológico; os sítios espeleológicos; as obras produzidas até o
final do período monárquico; as paisagens culturais; as unidades
de conservação criadas com o objetivo de proteger o patrimônio
cultural, o que implica em omissão da atuação do órgão nacional de
proteção do patrimônio cultural;
CONSIDERANDO que
a minuta
de Instrução Normativa 01/2014 prevê a revogação da Portaria IPHAN
28/2003, que estabelece que, quando da renovação das licenças de
operação, deverá ser exigida a realização de projetos de levantamento,
prospecção, resgate e salvamento arqueológico nas faixas
de depleção das Usinas Hidrelétricas, ao menos entre os níveis médio e
máximo de enchimento aos reservatórios de empreendimentos já implantados
e que não foram objeto de pesquisas arqueológicas, sem prever, contudo,
mecanismos para atuação da autarquia no
licenciamento arqueológico corretivo desses empreendimentos (ausência
de previsão no anexo II);
CONSIDERANDO que
a Audiência
Pública mencionada possibilitou amealhar farto acervo de contribuições,
de ordem técnica e jurídica, objetivando o aperfeiçoamento do projeto
de IN 01/2014;
CONSIDERANDO, com base especificamente
no texto da minuta da IN, que:
1
– artigo 4º, § 1º, inciso II – não há delimitação de parâmetros
orientadores da possibilidade de “avocação” da atuação
do IPHAN, originalmente da superintendência local, pela presidência da
autarquia, fazendo-se necessário estabelecer tais parâmetros e ratificar
que qualquer ato de avocação tem a natureza de ato administrativo vinculado, para o qual deve ser formalizada
sua motivação, sob pena de mácula aos princípios da moralidade e
impessoalidade da Administração Pública, trazendo como consectário a
nulidade do ato;
2
– artigo 10, § 2º – a redação impossibilita, na prática, a inserção do
IPHAN nos licenciamentos que envolvam bens,
localizados na AID do empreendimento, ainda em processo de
acautelamento, eis que os formulários próprios sequer chegarão à
autarquia. Note-se que os procedimentos de acautelamento ainda não
concluídos não constam nos bancos de dados do IPHAN, os quais servem
como base para que o órgão licenciador notifique a autarquia federal
para participação no processo;
3
– artigo 13, inciso III – a existência de comunidades tradicionais, não
reconhecidas, não raro é feita no curso dos
licenciamentos ambientais. Na ausência de qualquer previsão, na IN
01/2014, de imediata comunicação à autarquia para sua regular atuação,
inclusive para preservação do patrimônio imaterialvinculado a tais comunidades, há imenso risco de sua desagregação
se concretizar sem a devida proteção estatal, com perda de importante recorte vinculado à formação do povo brasileiro;
4 – artigo 15 – a inexistência de previsão de ser o TCE um mínimo de documentação em qualquerlicenciamento
ambiental,
integrando, frise-se, todo e qualquer licenciamento ambiental nas três
esferas da federação, implica em grave mácula ao princípio da prevenção;
5 – artigo 20, inciso X e 23, inciso IV - não deixa claro que a prioridade na preservação de sítios arqueológicos é,
conforme carta de Nova Dheli, a preservação in situ;
6 – artigo 28 c/c artigo 29 c/c artigo 33 – para empreendimentos de nível IV não há clara previsão da possibilidade
da conservação in situ;
7 – artigo 34, inciso IV – confere ênfase apenas na guarda e pesquisa de material arqueológico, sem indicação de como
se dará a exposição de bens e difusão do conhecimento oriundo da pesquisa;
CONSIDERANDO,
por fim, as
contribuições oriundas de membros do MAE-USP, UFMG, Peruaçu
Arqueologia, Cooperativa Cultura, IEF/SISEMA, LAEP/UFVJM, Scientia
Consultoria Científica, IPHAN, Sociedade Brasileira de Espeleologia
–SBE, UNISUL e Sociedade de Arqueologia Brasileira, as quais,
devidamente protocolizadas em audiência, passam a ser parte integrante
dos fundamentos desta RECOMENDAÇÃO
RESOLVE
RECOMENDAR ao
IPHAN, através
de sua Presidente, Jurema Machado, que se abstenha de publicar a IN
01/2014 na forma como apresentada no evento ocorrido no dia 13/10/2014,
em razão dos fundamentos fáticos e jurídicos acima expostos;
REQUISITAR que
a autarquia
federal encaminhe ao MPF, no prazo de 30 (trinta) dias, resposta quanto
ao acatamento da presente, apresentando nova minuta de instrução
normativa ou justificando sua eventual discordância.
Belo Horizonte/MG, 22 de outubro de 2014.
Sandra Verônica Cureau – Subprocuradora-Geral da República e Coordenadora da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão
Zani Cajueiro Tobias de Souza – Procuradora da República e Coordenadora do GT Patrimônio Cultural
Gisele Elias de Lima Porto – Procuradora Regional da República
Lívia Tinoco – Procuradora da República
Renato de Freitas Souza Machado – Procurador da Repúblicattp://coletivocarranca.cc/mp-recomenda-ao-iphan-nao-publique-nova-012014/
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