Governo Dilma: acabou. Cai fora. |
Em artigo publicado no Estadão, Fernando Gabeira se pergunta: "como
chegaremos a 2018, com um governo exaurido, crise aguda e um abismo
entre as aspirações populares e o sistema político?". Viveremos "o
teatro fúnebre de um governo que não é mais governo (...), de
jornalistas de estimação analisando minúsculos movimentos mentais de um
poder lobotomizado". Segue o texto na íntegra:
Recebi dois livros interessantes: Submissão, de Michael Houellebecq, e
Ordem Mundial, de Henry Kissinger. Aproveito uns dias de resfriado para
lê-los, mas só vou comentá-los adiante. Não sei se o resfriado turvou
minhas expectativas, mas vejo o mundo caindo ao redor: empresas
fechando, gente perdendo emprego e, como se não bastasse, estúpidos
feriados.
Mas será que estar envolvido numa situação tão pantanosa me obriga a
fazer as mesmas perguntas, tratar dos mesmos personagens, dona Dilma e
seus dois amigos, Joaquim e Temer?
Nas últimas semanas deixei de perguntar apenas sobre o ajuste
econômico, que nos promete uma retomada do crescimento. Começou
enriquecendo os partidos e apertando as pessoas. Disso já suspeitava.
Cheguei a indagar se não era possível superar o voo da galinha, achar um
caminho seguro e sustentável. Constatei que lá fora também se faz a
mesma pergunta, não a respeito do Brasil, mas do próprio capitalismo. O
sistema tem um futuro, deságua em outra via de expansão?
Quanto à minha expectativa de um crescimento equilibrado, encontrei
respostas desconcertantes. Como a do economista australiano Steve Keen,
para quem o equilíbrio é uma ilusão e a economia tende a viver num
desequilíbrio constante, sem jamais afundar.
Existem muitas previsões sobre o que vai acontecer mais adiante. A de
Jeremy Rifkin pelo menos me agrada mais porque é a que mais se aproxima
das minhas toscas expectativas. E de uma ponta de otimismo que nunca me
deixa, mesmo no resfriado. Rifkin fala da internet dos objetos, da
produção descentralizada de energia alternativa, das impressoras 3D e
dos cursos online. Tudo pode fazer de cada um de nós um proconsumidor.
Da produção em massa haveria um trânsito para a produção das massas,
descentralizada e cooperativa.
Aqui acompanhei, por exemplo, a prisão de Vaccari, o tesoureiro do
PT. Cheguei à conclusão de que foi motivada pela decisão do partido de
mantê-lo no cargo. Quando foi depor na CPI, todas as acusações já
estavam postas, incluídas as que revelam nexo entre propinas e doações. O
despacho do juiz Sergio Moro fala em quebrar a continuidade dos crimes,
evitando que o acusado mantenha uma posição em que, desde o caso da
cooperativa dos bancários (Bancoop), desvia dinheiro para os cofres do
partido.
Bastava ao PT afastá-lo enquanto durassem as investigações. Falou
mais alto a fraternidade partidária. Tanto que os intérpretes oficiais
diziam com orgulho que o partido não abandonaria Vaccari na estrada.
Citado por Kissinger, o cardeal Richelieu, comparando a sorte da
pessoa com a de uma entidade política secular, afirma que o homem é
imortal, sua salvação está no outro mundo. Já o Estado não dispõe de
imortalidade, sua salvação se dá aqui ou nunca.
A maior interrogação ao ver o mundo desabando é esta: como chegaremos
a 2018, com um governo exaurido, crise aguda e um abismo entre as
aspirações populares e o sistema político?
A primeira pergunta é esta: com ou sem Dilma? O ministro José Eduardo
Cardozo diz que a oposição é obcecada pelo impeachment. Disse isso ao
defendê-la das pedaladas fiscais. Com a maioria dos eleitores desejando
que Dilma se afaste, sempre haverá um motivo. Hoje é pedalada, amanhã é
pênalti e depois de amanhã, escanteio, lateral, impedimento - enfim, é
uma constante no jogo.
Os 12 anos de governo do PT foram marcados por uma extensa ocupação
partidária da máquina pública. O Estado foi visto não só como o grande
empregador, mas também como o espaço onde os talentos individuais iriam
florescer.
Ao lado disso se construiu também a expectativa de que grande parte
dos problemas dependia da interferência estatal. Da Bolsa Família aos
empréstimos do BNDES, do patrocínio às artes à salvação do Haiti, da
construção de uma imprensa "alternativa" ao soerguimento econômico de
Cuba - tudo conduzido pelo Estado.
Com a ruína desse modelo, a oposição popular ao governo tem a
corrupção como alvo, mas revela também uma profunda desconfiança do
papel econômico do Estado, a ponto de alguns analistas a verem como
réplica do movimento Tea Party, uma ala radical do Partido Republicano
nos EUA. Se olhamos um pouco mais longe, para o colapso do socialismo,
vamos encontrar algo mais parecido com a realidade nacional. Foi muito
bem expresso por um ministro húngaro na aurora da reconstrução pela via
capitalista: no passado havia uns fanáticos que diziam que o Estado
resolve tudo, agora aparecem outros dizendo que o mercado resolve tudo.
Além da corrupção, sobrevive ainda uma expectativa num Estado
bálsamo, que cura todas as dores, resolve todos os problemas, traz de
volta as pessoas amadas. É compreensível que surja uma resistência
apontando para um Estado mínimo e que as esperanças se reagrupem em
torno do mercado.
O que resultará disso tudo ainda é muito nebuloso. Tenho consciência
de escrever sentado numa cadeira ejetável. Mas, e daí? Quando você
mostra que a experiência do governo petista se esgotou, muitos
protestam. Com que ideias vão dinamizar a nova fase? Com que grana vão
inventar um novo ciclo de bondades balsâmicas?
Se Dilma sobrevive como um fósforo frio, isso é só um problema
imediato. É hora de começar a desvendar o futuro. Não tenho dúvida de
que todos os exageros, os erros patéticos, a arrogância, a desmesura,
tudo será cobrado até que se restabeleça um certo equilíbrio.
Viveremos o teatro fúnebre de um governo que não é mais governo, de
uma esquerda oficial petrificada, de jornalistas de estimação analisando
minúsculos movimentos mentais de um poder lobotomizado. Como diz um
personagem de Beckett, acabou, acabamos. Resta ao governo sonhar com um
domingo ideal em que, finalmente, voltadas para suas atividades normais,
as pessoas o esqueçam. Imagino a discreta festa palaciana: mais um
domingo, ninguém se lembrou de nós, viva!
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