segunda-feira, 21 de julho de 2014

A destruição da inteligência



Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.

Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.


A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no mundo adulto da participação social ativa.

É quase impossível que essa identificação profunda com o personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.

A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria maneira de sentir, pensar e dizer.

No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente. O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa. 


Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor sério, continua pela vida a fora. 


Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido neste país --, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine Albalat.[1] 


É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos, que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como em filigrana, toda a história da arte literária.


Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir a sua própria!

Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]

Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele. 
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Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores, das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as percorressem.[3]

Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos seus componentes aprendidos.
Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido, por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é referência universitária”?
Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no sentido aristotélico.

É como um ator que, forçado a representar sempre um só personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo de que são mesmo isso.


Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma impregnação empática, de uma suspension of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo quanto chega ao nosso conhecimento. 


Não é errado dizer que o julgamento honesto e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer questão.

Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo, bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos estilos, a novos sentimentos e modos de ver.

Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões, caquético antes do tempo.

Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?


Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria, refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto esforço, tanto investimento emocional.


Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da experiência, portanto de todo aprendizado subseqüente.


A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.


No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.


Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais[4] – não havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens --,  isso não se deve somente a uma genérica e abstrata “má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e imposto como um objetivo desejável. 


Não que a presente geração de professores que dá o tom nas universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”, tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade de gênios. 


Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de incompetência e presunção.
        

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