Reaçonaria

Há muitas vezes em que trazer um exemplo específico é a melhor forma de explicar como se dão fenômenos complexos. A questão das bicicletas na capital paulista, alçada a grande tema, é bastante útil para se entender o modo de ação dos movimentos sociais e políticos atuais. Comecemos com uma comparação rápida…


O que há mais em São Paulo, pessoas que usam motocicletas ou bicicletas? Pessoas que vão ao trabalho em motocicletas ou em bicicletas? Pessoas que usam motocicleta ou bicicleta como ferramenta de trabalho? Indo até para a o utilitarismo econômico, o que é mais importante para a cidade, espaço para motocicletas (transporte de documentos, exames, entregas, alimentos, pessoas) ou bicicletas? Mais de 400 motociclistas morrem em acidentes na capital paulista por ano, boa parte deles em serviço (1). De 2005 para 2013 diminuiu 2/3 o número de ciclistas mortos em acidentes de trânsito na capital, enquanto o número de motociclistas mortos aumentou 15% (link).
Motoboys_Acidentes
De 2005 para 2013, apenas motociclistas tiveram mais mortos no trânsito de São Paulo


E no entanto, ciclofaixas e ciclistas agora são os grandes temas da cidade, não os motoboys ou faixas exclusivas para motociclistas. Todos têm de manifestar opinião e tudo é urgente quando o tema é bicicletas. Alguns usuários publicaram em redes sociais que tiveram pneus furados por tachinhas e bastou para que de repente a imprensa e todos notassem a gravidade dos crimes contra o patrimônio, fazem reportagens sobre as tachinhas, geram-se artigos indignados contra os monstros desumanos responsáveis pela suposta ação.


O primeiro passo para se chegar a esta doxa é criar o sentimento de urgência: tratam como questão de vida ou morte ter ciclovias e todos usando bike. É a criação de uma escatologia (*) não-religiosa através da promoção do sentimento de crise. “Nunca antes na história…”. E funciona: as pessoas não se mobilizam ou agrupam para causas que não são prioritárias, que não são calamitosas, que não aparentam a iminência do caos. Quantos dedicariam com toda força sua falsidade para organizar um movimento para, sei lá, que as salas de cinema em sua cidade tenham mais opções de filmes legendados? Aliás, quando há mobiliações para temas que não sejam úteis à narrativa  esquerdista (conflituosa, separatista, geradora de ódio), são facilmente ridicularizadas como fúteis, tais como o Cansei,  Impostômetro, piadas com quem reclama de qualidade de serviços que poucos têm acesso(“classe média sofre”).


Outro passo fundamental é tratar as pessoas do grupo de interesse, os “associados”, como um povo escolhido. São especiais, virtuosos, representantes do bem e portanto incontestáveis. Precisam de mais atenção e cuidados extras – oras, estão nos livrando do mal. São os mensageiros do superior. Estão conectados com o que há de melhor, a própria divindade (uma divindade obviamente humana pois Deus está morto). Neste cenário, seus protestos e atitudes evocam imagens de sacrifício, superação e devoção.


Os dois passos citados aqui têm muito do que se viu na história do fortalecimento e vitória de grandes movimentos sociais se entendermos como tais não apenas estas vulgaridades atuais, mas quaisquer movimentos organizados de grandes grupos humanos, mesmo que apolíticos. Já a efetivação e sucesso disso hoje só é possível graças a técnicas mais recentemente consagradas: aquilo que hoje chamamos de marketing. 


Não se cria o sentimento de urgência fajuta sem uma grande eficiência marketeira e mentirosa. Só se eleva um grupo a tal status de superioridade e infalibilidade ressaltando aquelas virtudes que são mais assimiláveis ao grande público, ao mesmo tempo em que se esconde tudo aquilo que possa ser ponto fraco diante da opinião pública. 


Assim, a construção de ciclovias/ciclofaixas privilegia um grupo restrito mas parece afetar a todos: estão melhorando o ar, sentindo o pulsar da cidade, humanizando as ruas, blablabla. 



Está claro que os mais beneficiados por isto estão em regiões nobres da cidade e, portanto, não se trata de uma política para beneficiar os mais pobres ou os trabalhadores das regiões afastadas, logo neste caso está proibido usar a “carta da luta de classes” nos debates e reportagens.


 Jamais se verá um levantamento que compare a renda dos motoboys citados como exemplo aqui no começo e os dos cicloativistas, muito menos se mostrará que as favelas não estão ganhando vias para bicicletas, mas principalmente bairros comerciais – diriam de elite se fossem medidas de governos não-progressistas! 


Denunciar alguém do grupo mobilizado ou apontar falhas naquilo que os beneficia não é apenas apontar erros, é estar do lado dos inimigos imaginários deles. No caso dos ciclistas, criticá-los é ser um carrocrata, dono de SUV, queimador de diesel, poluidor dos ares e atropelador de santos.
motoboys-protestoOutra característica importante para o fortalecimento desses movimentos é ter uma pauta constante. Para que a luta dure para sempre e não tenha a força diminuída por conquistas obtidas é necessário buscar objetivos intangíveis. 


No primeiro momento a luta foi para ter mais ciclofaixas, depois se comemorará o crescimento no número de usuários destes espaços, ainda que este número seja pífio em relação ao total de deslocamento dos moradores da cidade e ignorando que tal se deu quase que como uma imposição e adaptação à mudança. Adiante se lutará por ainda mais ciclofaixas, que deverão evoluir para ciclovias, vagões exclusivos e privilegiados no transporte coletivo. 


Com mais pessoas usando bicicletas, os acidentes aumentarão e obviamente a culpa será dos outros, dos atrasados, jamais da falta de educação ou erros dos ciclistas, nem mesmo a proporção acidentados/usuários será notada. Hoje estão a planejar o financiamento para aquisição de bicicletas! Roubos de bicicletas serão noticiados. 


O que se quer não são espaços para o grupo limitado de usuários aptos a usar bicicletas em seu cotidiano, mas coisas abstratas como melhorar a vida na cidade, humanizar o espaço urbano, sentir a cidade, criar alternativas… Nada disso se consegue com milhares de quilômetros de ciclofaixas. 


E daí que isto aumentará o trânsito, prejudicando assim a vida de outros tantos milhões em detrimento duma minoria de privilegiados? Apenas citar a piora no trânsito de automotores já será digno de desqualificação.


Este post é só um esboço explicativo com algumas características marcantes dessa nova forma de fazer política por grupos de pressão minoritários que conseguem se impôr à maioria. 


Obviamente, entender os movimentos sociais hoje em dia requer mais tempo e mostrar outros detalhes adaptados a pautas diferentes desta do cicloativismo, aqui ilustrado pela comparação com a quase inexistente pauta dos motociclistas. Importa, para finalizar, ressaltar que o que foi aqui demonstrado pode ser adaptado a muitos outros movimentos políticos de destaque atualmente, inclusive alguns que não são propriamente manipulados pela esquerda. 


Perceber o uso desses métodos ajudará bastante a diferenciar movimentos legítimos, honestos e verdadeiramente bem-intencionados de seitas de oportunistas e ególatras. Após notar o avanço eficiente dessas atitudes e seu uso político,  podemos então falar de algo mais importante e grave que é a ameaça que os movimentos sociais impõem à democracia representativa direta como a conhecemos hoje. Mas isso é tema para um outro dia…