Por Flavio Morgenstern, publicado no Instituto Liberal
Dilma Rousseff não conseguiu atingir a
meta de superávit primário e, para não ser punida, mandou uma ordem de
cima através de seu partido para que a Lei de Responsabilidade Fiscal
fosse modificada – não apenas isso, mas que a mudança retroagisse,
transformando o seu crime de responsabilidade em algo normal.
A manobra jurídica é tão absolutamente
absurda que nem mesmo os mais ferozes porta-vozes do PT para a sociedade
e a militância, os relações públicas travestidos de jornalistas na
grande mídia e na internet, ousaram defende-la. Preferiram um cúmplice
silêncio. Dilma, reprovada em matemática, apenas abaixou a média para 2.
Contudo, há algo muito mais sério em discussão. Algo que exige um retorno à ciência política mais antiga.
O PT destruiu o restolho de república
possível no Brasil. A coisa é infinitamente mais séria do que parece. A
república, res publica, é o regime do cuidado com a coisa (res) pública.
É disso que os romanos tanto se orgulhavam, ostentando orgulhosamente o
emblema SPQR – Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo de Roma –
onde quer que fossem – e tal sigla pode ser vista ainda hoje até nos
bueiros da cidade. O Senado é a reunião pública dos altos cidadãos, e o
povo se sente protegido por ter um Senado que lhe garanta leis.
É fácil, então, supor que qualquer país
com leis seja uma “República”. Leis existem em praticamente qualquer
comunidade, mas uma República de fato possui leis para o cuidado com a
coisa pública.
Em Roma, era impossível usar fundos
públicos para causas pessoais como se dava no Império. A lei era voltada
para o povo (e usualmente até a plebe se beneficiava das leis
republicanas), e não para proteção dos senadores. Eles, que tinham de
ter honra para serem ostentados no mote SPQR, protegiam a República –
não era a República que tinha leis para protege-los do povo.
A República, uma tecnologia mais avançada
do que formas anteriores de governo, não funcionava pela força maior.
Era o governo do povo, mas não o governo da maioria: não importe quantas
pessoas decidam por matar alguém sem julgamento, há uma lei pública que
proíbe o assassinato, e esta lei é catedrática, imutável – não é
modificada nem com maioria de votos no Senado.
Esta República é tradução do grego Politéia, algo como “direito dos cidadãos”. É uma forma de governo baseada em uma espécie de Constituição, mas não de leis apenas escritas – também de regras de conduta, tradições, usos e costumes para manter a sociedade em ordem.
Diferentemente da monarquia (governo de
um) e da aristocracia (governo de poucos), a República é debatida por
todos os que tenham direito à cidadania.
É oposta a uma forma denegrida de governo
de multidões, a democratia (poder do povo comum).
Apesar da acepção positiva que o termo “democracia” ganhou, sobretudo a partir do Iluminismo, por mais de 20 séculos seu sentido foi oposto ao da lei pública: trata-se apenas da ditadura da maioria, em que qualquer coisa proposta por uma maioria de 50% de votos mais 1, torna-se lei – mesmo que atente contra tradições, costumes, torre todo o Tesouro público, seja imoral ou que nem todos os que tivessem direito de voto de fato votassem.
Apesar da acepção positiva que o termo “democracia” ganhou, sobretudo a partir do Iluminismo, por mais de 20 séculos seu sentido foi oposto ao da lei pública: trata-se apenas da ditadura da maioria, em que qualquer coisa proposta por uma maioria de 50% de votos mais 1, torna-se lei – mesmo que atente contra tradições, costumes, torre todo o Tesouro público, seja imoral ou que nem todos os que tivessem direito de voto de fato votassem.
A República é o terreno da lei, a
Democracia o terreno da maioria. Na primeira vemos representados,
modernamente, países como Suíça, América, Israel, Alemanha ou, de forma
curiosa, mesmo uma monarquia parlamentar como a britânica.
Na segunda, a mentalidade do bolivarianismo venezuelano se espalhando pela América Latina através do Foro de São Paulo, o Irã (que se autodenomina “República Islâmica”), a Rússia sob Putin, o califado islâmico com suas leis anti-semitas e contrárias à apostasia, a mobilização black bloc, do Occupy ou das revoluções de momento.
Na segunda, a mentalidade do bolivarianismo venezuelano se espalhando pela América Latina através do Foro de São Paulo, o Irã (que se autodenomina “República Islâmica”), a Rússia sob Putin, o califado islâmico com suas leis anti-semitas e contrárias à apostasia, a mobilização black bloc, do Occupy ou das revoluções de momento.
E, mais oficialmente do que nunca, o Brasil.
Sob o PT, agravando-se ainda mais com
Dilma Rousseff, a democracia brasileira (que também se auto-denomina uma
“República Democrática”, desconhecendo o sentido canônico de ambos os
termos) avançou a passos largos rumo à ditadura da maioria.
A presidente Dilma não cumpriu uma das
poucas leis republicanas, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, e alterou
ad hoc esta lei tão somente para que esta passe a encarar seu crime de
responsabilidade como um não-crime, retroagindo ex tunc para antes mesmo
de tal lei ter sido modificada – e considerando assim que o crime de
Dilma, cometido antes da modificação da lei, já seja encarado sob a luz
da lei alterada.
Isto é o poder da maioria – conseguindo
maioria de votos no Parlamento, Dilma pode malgastar a coisa pública – o
dinheiro do contribuinte, sua moral, sua liberdade e seu futuro – e
considerar-se lícita e legitimada, tão somente por ter “conquistado a
maioria”.
Despiciendo lembrar que tal maioria foi “conquistada” com um pacotão legislativo ainda mais agressivo à res publica: o Planalto condicionou
a liberação de R$ 444,7 milhões do nosso dinheiro em emendas
parlamentares individuais, garantindo um aumento de R$ 747,5 mil a mais
para cada um dos 513 deputados e 81 senadores.
Tradução: para encobrir um crime com o
nosso dinheiro, a presidente exigiu que cada parlamentar modificasse a
lei, prometendo ainda mais do nosso dinheiro para que cada um obtenha
mais poder político em seus redutos eleitorais.
Há poucas leis versando sobre a coisa
pública no Brasil. É o oposto perfeito da maior República consolidada do
mundo moderno, a América, que consegue tal feito com uma população com
100 milhões a mais de habitantes do que a nossa.
A Constituição americana, o documento
protetor da liberdade mais forte já escrito na História, é bastante
curta, e continua funcional há mais de 200 anos. Entre outros tantos,
suas emendas versam:
O Congresso não pode fazer lei
estabelecendo uma religião oficial, ou proibindo o livre exercício de
alguma; nem cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o
direito de reunião pacífica, ou de petição ao Governo para reparação de
injustiças.
O direito das pessoas de possuírem armas não pode ser infringido.
Nenhum soldado pode ser aquartelado em nenhuma casa em tempo de paz sem o consentimento do proprietário.
Etc etc. A Constituição da República
americana, em resumo, proíbe o governo disso, impede o governo de
restringir tal direito das pessoas, inibe o governo de tomar tal e qual
medida que ferirá o ordenamento pacífico e a vida pública e privada das
pessoas.
É o exato oposto do que Dilma faz. Tal
diferença se vê no sentido de uma “prática republicana” e de uma mera
“participação democrática”.
Ora, a Lei de Diretrizes Orçamentárias,
importada das Constituições francesa e alemã, já veio ao Brasil reduzida
de sua função política, já que é arquitetada pelo Executivo central, e
não pelo Legislativo (que, aqui, apenas a vota). Com o advento da Lei de
Responsabilidade Fiscal, esta lei torna-se um instrumento estratégico
para impedir que um governante malverse o dinheiro público a ponto de
deixar o país na bancarrota. E até agora a imprensa não deu nome aos
bois: Dilma quebrou o país.
É uma das poucas leis que, de uma forma
ou de outra, aponta para uma responsabilidade pública perene, uma forma
de agir que não deve ser discutida: quem promete uma meta com nosso
dinheiro e não a cumpre deve ser punido. Mas, “democraticamente” (em
sentido canônico, ou seja: através de uma maioria de votos), Dilma
simplesmente transformou seu erro em lei.
Se o país sofre de uma forte crise de
representatividade, tal se dá também porque os candidatos têm programa
político antes mesmo de eleitos, e legalmente podem ser acionados por
não cumprirem o que dizem. Todavia, o Brasil não é um país muito bem
informado, e raríssimos são os que conhecem os programas de seus
eleitos, ou de que tal mecanismo existe. Se as pessoas soubessem de fato
o que é a mudança na LDO proposta por Dilma, o país inteiro estaria em
guerra civil.
Urge notar, por fim, que qualquer lei
também gera jurisprudência, ou seja, legitima atos futuros, inclusive de
fazedores de leis. Apesar de nosso sistema jurídico não ser
consuetudinário, ou baseado nos costumes, como o anglo-saxão, entre as
fontes do Direito positivista brasileiro, além da lei, estão normas,
costumes, doutrina e jurisprudência.
Isto quer dizer que se uma lei existe,
mas um dia não foi cumprida e foi então simplesmente derrubada por
maioria de votos no Congresso – mesmo que os votos tenham sido
descaradamente comprados através de promessas de aumento de verbas
eleitoreiras – qualquer outra lei, futuramente, poderá sofrer o mesmo.
Basta apenas apelar para o passado – se
foi legítimo uma vez, será legítimo outras, a não ser com intervenção da
oposição (que ainda não está tunada o suficiente) ou do Judiciário, que
costuma precisar ser acionado para tal.
Se um crime fiscal pode se tornar não
apenas legal, mas a própria lei através da compra de votos, qual será o
próximo crime que se tornará não apenas norma implícita, mas norma legal
no Brasil?
De corruptos e malversadores a assassinos e golpistas, o caminho está aberto para o Brasil viver sob o império da força bruta.
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