segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A Lei de Responsabilidade Orçamentária de Dilma: o fim da República

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Por Flavio Morgenstern, publicado no Instituto Liberal



Dilma Rousseff não conseguiu atingir a meta de superávit primário e, para não ser punida, mandou uma ordem de cima através de seu partido para que a Lei de Responsabilidade Fiscal fosse modificada – não apenas isso, mas que a mudança retroagisse, transformando o seu crime de responsabilidade em algo normal.


A manobra jurídica é tão absolutamente absurda que nem mesmo os mais ferozes porta-vozes do PT para a sociedade e a militância, os relações públicas travestidos de jornalistas na grande mídia e na internet, ousaram defende-la. Preferiram um cúmplice silêncio. Dilma, reprovada em matemática, apenas abaixou a média para 2.


Contudo, há algo muito mais sério em discussão. Algo que exige um retorno à ciência política mais antiga.


O PT destruiu o restolho de república possível no Brasil. A coisa é infinitamente mais séria do que parece. A república, res publica, é o regime do cuidado com a coisa (res) pública. É disso que os romanos tanto se orgulhavam, ostentando orgulhosamente o emblema SPQR – Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo de Roma – onde quer que fossem – e tal sigla pode ser vista ainda hoje até nos bueiros da cidade. O Senado é a reunião pública dos altos cidadãos, e o povo se sente protegido por ter um Senado que lhe garanta leis.


É fácil, então, supor que qualquer país com leis seja uma “República”. Leis existem em praticamente qualquer comunidade, mas uma República de fato possui leis para o cuidado com a coisa pública.


Em Roma, era impossível usar fundos públicos para causas pessoais como se dava no Império. A lei era voltada para o povo (e usualmente até a plebe se beneficiava das leis republicanas), e não para proteção dos senadores. Eles, que tinham de ter honra para serem ostentados no mote SPQR, protegiam a República – não era a República que tinha leis para protege-los do povo.


A República, uma tecnologia mais avançada do que formas anteriores de governo, não funcionava pela força maior. Era o governo do povo, mas não o governo da maioria: não importe quantas pessoas decidam por matar alguém sem julgamento, há uma lei pública que proíbe o assassinato, e esta lei é catedrática, imutável – não é modificada nem com maioria de votos no Senado.


Esta República é tradução do grego Politéia, algo como “direito dos cidadãos”. É uma forma de governo baseada em uma espécie de Constituição, mas não de leis apenas escritas – também de regras de conduta, tradições, usos e costumes para manter a sociedade em ordem.


Diferentemente da monarquia (governo de um) e da aristocracia (governo de poucos), a República é debatida por todos os que tenham direito à cidadania.
É oposta a uma forma denegrida de governo de multidões, a democratia (poder do povo comum).


Apesar da acepção positiva que o termo “democracia” ganhou, sobretudo a partir do Iluminismo, por mais de 20 séculos seu sentido foi oposto ao da lei pública: trata-se apenas da ditadura da maioria, em que qualquer coisa proposta por uma maioria de 50% de votos mais 1, torna-se lei – mesmo que atente contra tradições, costumes, torre todo o Tesouro público, seja imoral ou que nem todos os que tivessem direito de voto de fato votassem.



A República é o terreno da lei, a Democracia o terreno da maioria. Na primeira vemos representados, modernamente, países como Suíça, América, Israel, Alemanha ou, de forma curiosa, mesmo uma monarquia parlamentar como a britânica.


Na segunda, a mentalidade do bolivarianismo venezuelano se espalhando pela América Latina através do Foro de São Paulo, o Irã (que se autodenomina “República Islâmica”), a Rússia sob Putin, o califado islâmico com suas leis anti-semitas e contrárias à apostasia, a mobilização black bloc, do Occupy ou das revoluções de momento.


E, mais oficialmente do que nunca, o Brasil.


Sob o PT, agravando-se ainda mais com Dilma Rousseff, a democracia brasileira (que também se auto-denomina uma “República Democrática”, desconhecendo o sentido canônico de ambos os termos) avançou a passos largos rumo à ditadura da maioria.


A presidente Dilma não cumpriu uma das poucas leis republicanas, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, e alterou ad hoc esta lei tão somente para que esta passe a encarar seu crime de responsabilidade como um não-crime, retroagindo ex tunc para antes mesmo de tal lei ter sido modificada – e considerando assim que o crime de Dilma, cometido antes da modificação da lei, já seja encarado sob a luz da lei alterada.


Isto é o poder da maioria – conseguindo maioria de votos no Parlamento, Dilma pode malgastar a coisa pública – o dinheiro do contribuinte, sua moral, sua liberdade e seu futuro – e considerar-se lícita e legitimada, tão somente por ter “conquistado a maioria”.


Despiciendo lembrar que tal maioria foi “conquistada” com um pacotão legislativo ainda mais agressivo à res publica: o Planalto condicionou a liberação de R$ 444,7 milhões do nosso dinheiro em emendas parlamentares individuais, garantindo um aumento de R$ 747,5 mil a mais para cada um dos 513 deputados e 81 senadores.


Tradução: para encobrir um crime com o nosso dinheiro, a presidente exigiu que cada parlamentar modificasse a lei, prometendo ainda mais do nosso dinheiro para que cada um obtenha mais poder político em seus redutos eleitorais.


Há poucas leis versando sobre a coisa pública no Brasil. É o oposto perfeito da maior República consolidada do mundo moderno, a América, que consegue tal feito com uma população com 100 milhões a mais de habitantes do que a nossa.


A Constituição americana, o documento protetor da liberdade mais forte já escrito na História, é bastante curta, e continua funcional há mais de 200 anos. Entre outros tantos, suas emendas versam:


O Congresso não pode fazer lei estabelecendo uma religião oficial, ou proibindo o livre exercício de alguma; nem cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito de reunião pacífica, ou de petição ao Governo para reparação de injustiças.


O direito das pessoas de possuírem armas não pode ser infringido.


Nenhum soldado pode ser aquartelado em nenhuma casa em tempo de paz sem o consentimento do proprietário.

Etc etc. A Constituição da República americana, em resumo, proíbe o governo disso, impede o governo de restringir tal direito das pessoas, inibe o governo de tomar tal e qual medida que ferirá o ordenamento pacífico e a vida pública e privada das pessoas.

É o exato oposto do que Dilma faz. Tal diferença se vê no sentido de uma “prática republicana” e de uma mera “participação democrática”.

Ora, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, importada das Constituições francesa e alemã, já veio ao Brasil reduzida de sua função política, já que é arquitetada pelo Executivo central, e não pelo Legislativo (que, aqui, apenas a vota). Com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, esta lei torna-se um instrumento estratégico para impedir que um governante malverse o dinheiro público a ponto de deixar o país na bancarrota. E até agora a imprensa não deu nome aos bois: Dilma quebrou o país.

É uma das poucas leis que, de uma forma ou de outra, aponta para uma responsabilidade pública perene, uma forma de agir que não deve ser discutida: quem promete uma meta com nosso dinheiro e não a cumpre deve ser punido. Mas, “democraticamente” (em sentido canônico, ou seja: através de uma maioria de votos), Dilma simplesmente transformou seu erro em lei.

Se o país sofre de uma forte crise de representatividade, tal se dá também porque os candidatos têm programa político antes mesmo de eleitos, e legalmente podem ser acionados por não cumprirem o que dizem. Todavia, o Brasil não é um país muito bem informado, e raríssimos são os que conhecem os programas de seus eleitos, ou de que tal mecanismo existe. Se as pessoas soubessem de fato o que é a mudança na LDO proposta por Dilma, o país inteiro estaria em guerra civil.

Urge notar, por fim, que qualquer lei também gera jurisprudência, ou seja, legitima atos futuros, inclusive de fazedores de leis. Apesar de nosso sistema jurídico não ser consuetudinário, ou baseado nos costumes, como o anglo-saxão, entre as fontes do Direito positivista brasileiro, além da lei, estão normas, costumes, doutrina e jurisprudência.

Isto quer dizer que se uma lei existe, mas um dia não foi cumprida e foi então simplesmente derrubada por maioria de votos no Congresso – mesmo que os votos tenham sido descaradamente comprados através de promessas de aumento de verbas eleitoreiras – qualquer outra lei, futuramente, poderá sofrer o mesmo.

Basta apenas apelar para o passado – se foi legítimo uma vez, será legítimo outras, a não ser com intervenção da oposição (que ainda não está tunada o suficiente) ou do Judiciário, que costuma precisar ser acionado para tal.

Se um crime fiscal pode se tornar não apenas legal, mas a própria lei através da compra de votos, qual será o próximo crime que se tornará não apenas norma implícita, mas norma legal no Brasil?

De corruptos e malversadores a assassinos e golpistas, o caminho está aberto para o Brasil viver sob o império da força bruta.

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