Fracasso da ‘nova matriz econômica’ foi camuflado por alquimias fiscais para esconder a expansão da despesa pública
Em 2002, na final do Campeonato Brasileiro de Futebol, Robinho avançou
em direção ao seu marcador, passou oito vezes o pé sobre a bola e iludiu
o adversário que, atordoado, cometeu pênalti. O próprio Robinho bateu e
deu o título ao Santos. O drible antológico ganhou o nome de
“pedalada”.
Na área fiscal, no entanto, pedalada significa empurrar despesas para
frente como solução para aliviar o caixa em determinados momentos. Nada
muito diferente do que faz uma família endividada quando adia o
pagamento da escola dos filhos para o mês seguinte.
No governo federal, em vários momentos o fluxo de caixa foi
administrado com a postergação de pagamentos. Na década de 90, por
exemplo, os salários dos funcionários públicos foram pagos às vezes
dentro do mês e em outras tantas nos primeiros dias do mês subsequente. A
legislação era alterada conforme as conveniências do Tesouro.
No fim dos anos 90, para o país cumprir as metas do Fundo Monetário
Internacional, surgiram os primeiros “velocípedes”, os chamados restos a
pagar, compromissos assumidos em um ano, mas pagos em exercícios
seguintes. A moda pegou. Em 2002, já com a Lei de Responsabilidade Fiscal em
vigor, eram cerca de R$ 25 bilhões. Em 2014, somaram R$ 227,8 bilhões. Os mais graves são os “restos a pagar processados”, gerados quando os
serviços prestados já foram reconhecidos pelo governo, mas o dinheiro
não sai do caixa. Algo do tipo “devo não nego, pagarei quando puder”.
Os atrasos encarecem as contratações, pois os fornecedores embutem
previamente a demora no preço — e dão margem à corrupção, visto que os
gestores passam a decidir a qual credor irão pagar. No fim da era Lula e no início da fase Dilma, além da persistente
ampliação dos “restos”, o fracasso da “nova matriz econômica” foi
camuflado por diversas alquimias fiscais para esconder a expansão da
despesa pública, do déficit e da dívida governamental.
Dentre elas, o pagamento de dividendos elevados ao Tesouro por parte
das estatais ainda que à custa da descapitalização das empresas — a
antecipação de receitas (comprometendo gestões futuras) e a emissão de
títulos públicos para entrega, como empréstimos, ao BNDES. No último caso, sem desembolsar um centavo e sem aumentar a dívida
líquida (com os empréstimos o crédito do governo aumenta na mesma
proporção, só impactando a dívida bruta) cerca de R$ 400 bilhões foram
parar em empresas escolhidas e até no exterior, sabe-se lá em que
condições.
No ano passado, veio o pânico. Caso Dilma confessasse o profundo
desequilíbrio das contas públicas, não seria reeleita.
Daí,
provavelmente, a carta branca para que os mágicos-chefes, Mantega e
Arno, ampliassem o passeio ciclístico. Ou alguém acredita que a
economista Dilma não sabia de nada? O ápice das pedaladas foi a Caixa bancar com recursos próprios o Bolsa
Família, o Seguro-Desemprego e o Abono Salarial. O Banco do Brasil fez o
mesmo para equalizar as taxas de juros do financiamento agrícola.
Para o FGTS, sobrou arcar com o Minha Casa, Minha Vida enquanto o BNDES
cobria custos do Programa de Sustentação de Investimento. A Caixa
esperou seis meses para ser ressarcida em R$ 1,7 bilhão, e só recebeu
quando o assunto se tornou público. Se isso não significa “empréstimo”
ao Tesouro, minha avó é bicicleta.
O Contas Abertas foi a primeira entidade a denunciar as pedaladas,
incluindo o abrupto crescimento dos restos a pagar, o atraso nos
repasses a estados e municípios e a enxurrada de ordens bancárias
emitidas nos últimos dias do ano para só serem sacadas no exercício
seguinte.
O competente procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU,
Júlio Marcelo, provocou a Corte e, na semana passada, por unanimidade,
os ministros aprovaram relatório que estima em R$ 40 bilhões o montante
das pedaladas via bancos públicos.
O governo obviamente nega o crime de responsabilidade — faísca para o
impeachment de Dilma — e tenta caracterizar a promiscuidade do Tesouro
com os bancos como mera conta corrente. Nesse sentido, a Advocacia Geral
da União (AGU), inclusive, vai orientar os 17 convocados pelo TCU. Com o
cursinho, os artistas do picadeiro econômico passarão de mágicos a
bonecos de ventríloquo.
O importante é que os ministros do TCU não se intimidem com as pressões
políticas e punam todos os que descumpriram a Lei de Responsabilidade
Fiscal. Afinal, as pedaladas que todos querem ver são as do drible
imortalizado pelo Robinho. Na área fiscal, pedalar é crime e faz muito
mal à saúde e à credibilidade das contas públicas.
Fonte: Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas
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