Estado brasileiro cadê sua culpa?
Não vê que suas mãos estão manchadas de sangue?
Quem é esse indivíduo ensanguentado? É apenas um indígena sem alma
Lindomar Terena, representante da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil, presente no Fórum Permanente para Questões
Indígenas da Organização das Nações Unidas, em Nova York (EUA),
encerrado na sexta-feira, 1° de maio, em entrevista para A Rel, denuncia
que os povos indígenas no Brasil estão sendo perseguidos e assassinados
impunemente, com o aval do Estado brasileiro.
Você também esteve no Fórum Permanente para Questões
Indígenas da Organização das Nações Unidas no ano passado. De lá para cá
houve alguma mudança na situação dos povos indígenas do Brasil?
Não. De fato, a situação piorou muito.
Por quê?
Porque não vemos nenhuma sinalização por parte do
governo brasileiro, de estarem dispostos a ouvir o clamor dos povos
indígenas. Pelo contrário, a cada dia o governo atua com decretos que
ferem mais drasticamente os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Por exemplo?
Eu citaria a decisão política do Poder Executivo
Federal, em um ato da Presidência da República, a Portaria 303/12 da
Advocacia Geral da União (AGU),
que está em vigor, de fato e de direito, desde o dia 05 de fevereiro de
2014, e que diz que os povos indígenas não precisam ser consultados
sobre quaisquer empreendimentos que afetarem as suas comunidades. Ao
vincular as ditas “Condicionantes” a todas as terras indígenas do
Brasil, tudo que o Estado quiser fazer nas terras indígenas, não
precisará de consulta aos povos indígenas. Isto desrespeita a Convenção
169, que diz que os povos indígenas precisam ser consultados diante de
qualquer empreendimento que for passar por suas terras.
Além disso, a Funai,
instituição que defende e cuida dos povos indígenas no Brasil, hoje não
pode defender os povos indígenas sem antes pedir autorização ao
Procurador Geral da União. Aliás, em muitos casos, a Funai
é pressionada a não defender situações de interesses dos povos
indígenas do Brasil, porque a opinião do governo brasileiro é de que os
povos indígenas não precisam ser consultados.
E sobre a decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal de anular a terra já demarcada dos Povos Terena?
Recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu anular o ato do Poder Executivo com relação à única terra
Terena demarcada na história do Brasil, que é a Terra Indígena Limão
Verde. Essa terra já estava homologada, os fazendeiros que estavam nela
já tinham saído, e já tinham recebido da União a sua indenização, e aí, o
que causa estranheza e revolta é que o STF
anulou esse decreto de homologação das terras indígenas. Ou seja, eles
já tinham tirado as terras dos fazendeiros, já tinham pago aos
fazendeiros pelas terras e, mesmo assim, resolveram expulsar o
Povo Terena que já está nessas terras. A única terra Terena na história
do Brasil homologada, onde os Povos Terena se esconderam durante a
guerra do Paraguai, buscando se salvar. Agora vemos essa decisão, que
deixou a todos chocados, da 2ª Turma do STF.
Há condição de reverter a decisão?
Sim, há. Inclusive os advogados do CIMI e da própria Funai
entraram com uma representação do Ministério Público no próprio STF.
Quando fomos protocolar o documento, informando que temos provas de que
esta terra já era homologada, que os fazendeiros já receberam suas
indenizações pelas terras, aí eles se fizeram de espantados, “ah, eu não sabia”.
Mas, na verdade, o que se percebe é que a 2ª Turma do STF está tomando
decisões baseadas em política, e não em questões técnicas, e nem
respeitam o que manda a Constituição Federal Brasileira.
E qual é essa política, para você?
Política de interesses econômicos, de favores, que
muitos dos ministros que estão lá ou são fazendeiros ou devem favores
aos fazendeiros, em resumo, é uma troca de favores entre eles. E para
cumprirem com seus interesses políticos, não seguem o que manda a lei.
Reinterpretam a lei de acordo com interesses particulares.
Vocês acham que conseguirão lutar contra esses
interesses particulares, que são no fundo os das mineradoras, dos
latifúndios, do agronegócio e das empreiteiras?
Olha, nós vamos lutar. Embora a conjuntura política do
país não seja favorável, com todo esse panorama que sabemos,
acreditamos até o último momento que vamos fazer com que a lei seja
respeitada. Os povos indígenas estão reivindicando o que reconhecemos
como nosso. Nada mais justo que o Brasil, país que posa na ONU e em
qualquer lugar do mundo como país exemplo de democracia e de respeito
aos direitos humanos, respeite e garanta os nossos direitos. Mas na
verdade, o Brasil ainda funciona por meio de práticas que lembram a
ditadura. Na teoria mil maravilhas, mas na prática os nossos povos estão
sendo banhados de sangue na sua própria terra.
Se o Estado brasileiro continuar por esse caminho
político e econômico, o que eles estão dizendo é que acabarão com os
povos indígenas?
Eles não estão dizendo, eles estão fazendo isso. Eles
estão criando decretos na presidência da república. Por exemplo, por
causa de Belo Monte, a Presidência da República baixou um decreto, o
Decreto 7957/14, autorizando as Forças Armadas a inclusive tirar a vida
de qualquer manifestante indígena sem serem penalizadas por isso. Ou
seja, as FA se ameaçarem a vida de lideranças e povos indígenas que se
manifestarem contra aquele empreendimento, poderão matá-los, sem ter que
responder por isso. Ou seja, eles não estão dizendo que vão acabar com a
nossa vida. Eles estão agindo, eles estão fazendo isso.
Um exemplo disso foi o assassinato do indígena Eusébio Ka’apor[i],
que morreu por lutar pela preservação da Terra Indígena Alto Turiaçu,
no Maranhão. E temos uma liderança Guajajara internada no hospital
porque levou um tiro também. Então, essas são ações aplicadas por
agentes do governo brasileiro ou por fazendeiros, porque estão em comum
acordo. Porque no governo brasileiro está a bancada ruralista de mãos
dadas com o agronegócio. Ou seja, cada um pode fazer o que bem entender
porque não estão matando seres humanos, estão matando apenas “indígenas”
que, para o Brasil, não têm alma e, como não são seres humanos, está
permitido matar impunemente, sem haver qualquer intervenção defendendo
os indígenas.
- Então, para o Estado brasileiro os indígenas não têm alma?
- Sim, exatamente. A forma como o governo nos trata é exatamente assim. E não se pode lutar (ele faz um silencio, profundamente emocionado, suas palavras a partir de agora estarão embargadas pela emoção) pelo seu território, (silêncio), não se pode lutar pelas suas gerações futuras, (silencio) porque você (as palavras não saem) está sujeito a perder a sua vida.
Então, o alerta que a gente faz para toda a América
Latina e para o mundo é a recomendação deixada na União Europeia e aqui
na ONU, para que o mundo reavalie e procure saber a origem dos produtos
que estão saindo do Brasil, como a cana-de-açúcar, o eucalipto, a carne
bovina, porque muitos desses produtos saem das nossas terras indígenas.
São produtos exportados para o mundo afora, mas que saem daqui manchados
(longo silêncio) com o sangue da população indígena do Brasil. (Longo silêncio, com a voz muito emocionada) Seria isso.
Luciana Gaffrée
[i]
Eusébio Ka’apor, 42 anos, da aldeia Xiborendá, da Terra Indígena Alto
Turiaçu, no Maranhão, foi assassinado no domingo (26) com um tiro nas
costas. De acordo com indígenas que pediram pra não serem identificados,
os responsáveis pelo crime são madeireiros do município de Centro do
Guilherme, que mataram Eusébio devido às ações de autofiscalização e
vigilância territorial iniciadas em 2013 pelos Ka’apor, que culminaram,
em março deste ano, no fechamento de todos os ramais de invasão
madeireira da Terra Indígena Alto Turiaçu. Eusébio
era um importante guerreiro no combate à exploração ilegal de madeira
na TI e membro do Conselho de Gestão Ka’apor. (Fonte: Cimi)
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