Das diferentes paisagens do cerrado ao longo das
estações, guardo duas imagens na retina da memória visual. Uma, a que vem
depois do fogo, capaz de dilacerar a alma, se compõe de pretume e de cinzas da
queimada. Paisagem lúgubre de enterro.
Cadáveres de plantas ainda de pé como
soldados romanos surpreendidos pela erupção do Vesúvio. Cobras estiradas e
lagartixas tostadas disputadas por gaviões e carcarás.
E entre essas tumbas abertas e enegrecidas, a
natureza do cerrado, uma semana após a queimada, como a perdoar a ignorância
dos que “não sabem o que fazem”, oferece a caliandra, os besourões amarelos,
mimosas, flores brancas, azuis e roxas.
O cerrado rebrota das cinzas. Colhe das
profundezas a água retida nas raízes e recobre seus galhos de folhas, de flores
e frutos. O cerrado volta mais pobre. Mas se o grande predador se afastar e o
deixar em paz, a outra imagem substitui a primeira. É esta a outra imagem que,
há mais de trinta anos posso contemplar e observar, ver e ouvir.
A reconquista do espaço, as tarefas intencionais de
captar águas da chuva para transferi-las aos aquíferos, a captura do gás
carbônico, a devolução de oxigênio às vidas que respiram, a oferta de alimentos
e o abrigo a milhares de pássaros e insetos é um espetáculo a céu aberto.
Quantas vezes entrei nesse anfiteatro majestoso para
olhar, ver e ouvir as árvores! Cada uma delas fala em monólogos, em diálogos,
canta em duetos e dança em revoluteios de dar inveja aos mais habilidosos
dançarinos. Mas foi num momento especial, ao tocar um cacho de flores amarelas
brotado entre folhas grandes e rígidas, que emitiam sons de tambor ao
dedilha-las, que a direção de meus pensamentos mudou de rumo.
Perguntei à planta: quem é você? O ser vivo tem
nome, tem identidade. Está inscrito nos livros da natureza. Tem direitos e
cumpre tarefas descritas na biodiversidade. Nesse dia, o “quem” se tornou mais
importante do “que”. Quem é o ser vivo? O que faz o ser vivo? Concluí que não
há “que” sem “quem”.
Surpreendeu-me essa percepção de que a baliza
inicial para a compreensão dos seres vivos e de suas mensagens era “quem é
você”.
Tudo o que parecia o marco de chegada transformou-se em ponto de
partida. Acostumado a aterrissar sobre as coisas, fui empurrado a levantar voo.
Não era o objeto apenas que se erguia à minha frente com suas utilidades
aparentes. Era o sujeito animado pela vida que tinha algo a me dizer e que eu
precisava ouvir. As relações de convivência entre sujeitos que se comunicam
dependem de os interlocutores serem capazes de ouvir.
Ainda atônito diante da simples pergunta à planta bate-caixa, pousado num galho seco, a poucos metros de
mim, cantou um pássaro. Os pássaros falam cantando. Olhei para ele. Ele virou a
cabeça e mirou-me fixamente com o olho direito e novamente cantou
interrogativamente. Foi sua vez de me perguntar: quem é você?
Nosso cérebro diante de um objeto ou de um sujeito
cumpre sua função de associar o que vê com o que ouve e, ao mesmo tempo, busca
descobrir o que esse visitante faz, como faz, quando faz, onde faz. Pela
plumagem, pelo formato do bico e o tamanho do leme, o livro dos pássaros me deu
sua identidade: galo-da-campina.
Sem livros a consultar, o galo-da-campina, mesmo não
ouvindo minha resposta, me identificou pelas diferenças. O pássaro tem cérebro
como eu. Sou como ele. As funções do cérebro são as mesmas no pássaro, na
cobra, no macaco, no lagarto, no ser humano.
O cérebro associa o que vê com o
que ouve e se expressa em defesa de sua vida e liberdade. O galo-da-campina
diferenciou-me do gavião, do cavalo e das plantas. Voou para um lugar mais
seguro porque nosso diálogo estava cheio de ruídos.
Sua memória atávica guarda
o som de tiros, lembra de grades das gaiolas. As queimadas assassinas têm tudo
a ver com esse bípede vestido, cujas intenções não são, na maior parte das
vezes, transparentes.
O galo-da-campina quis saber quem era eu e quais
minhas intenções em relação à sua vida. Ele precisa construir o ninho em lugar
seguro, namorar, acasalar-se, chocar os ovos, buscar comida para os filhotes,
defendê-los de predadores, transmitir-lhes a cultura da liberdade na floresta.
Ele cuida da vida que essencialmente é a mesma vida minha e de meus
descendentes.
A espécie humana não só aprendeu a escravizar
pássaros e animais como a torturar e assassinar seus semelhantes. Quem é você?
Essa pergunta pode fazer a diferença no jogo de relações entre os seres vivos.
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