segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

DUAS IMAGENS



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Das diferentes paisagens do cerrado ao longo das estações, guardo duas imagens na retina da memória visual. Uma, a que vem depois do fogo, capaz de dilacerar a alma, se compõe de pretume e de cinzas da queimada. Paisagem lúgubre de enterro. 
 
Cadáveres de plantas ainda de pé como soldados romanos surpreendidos pela erupção do Vesúvio. Cobras estiradas e lagartixas tostadas disputadas por gaviões e carcarás. 
 
 
E entre essas tumbas abertas e enegrecidas, a natureza do cerrado, uma semana após a queimada, como a perdoar a ignorância dos que “não sabem o que fazem”, oferece a caliandra, os besourões amarelos, mimosas, flores brancas, azuis e roxas. 
 
 
O cerrado rebrota das cinzas. Colhe das profundezas a água retida nas raízes e recobre seus galhos de folhas, de flores e frutos. O cerrado volta mais pobre. Mas se o grande predador se afastar e o deixar em paz, a outra imagem substitui a primeira. É esta a outra imagem que, há mais de trinta anos posso contemplar e observar, ver e ouvir.
 
 
A reconquista do espaço, as tarefas intencionais de captar águas da chuva para transferi-las aos aquíferos, a captura do gás carbônico, a devolução de oxigênio às vidas que respiram, a oferta de alimentos e o abrigo a milhares de pássaros e insetos é um espetáculo a céu aberto.
 
 
Quantas vezes entrei nesse anfiteatro majestoso para olhar, ver e ouvir as árvores! Cada uma delas fala em monólogos, em diálogos, canta em duetos e dança em revoluteios de dar inveja aos mais habilidosos dançarinos. Mas foi num momento especial, ao tocar um cacho de flores amarelas brotado entre folhas grandes e rígidas, que emitiam sons de tambor ao dedilha-las, que a direção de meus pensamentos mudou de rumo.
 
 
Perguntei à planta: quem é você? O ser vivo tem nome, tem identidade. Está inscrito nos livros da natureza. Tem direitos e cumpre tarefas descritas na biodiversidade. Nesse dia, o “quem” se tornou mais importante do “que”. Quem é o ser vivo? O que faz o ser vivo? Concluí que não há “que” sem “quem”.
 
 
Surpreendeu-me essa percepção de que a baliza inicial para a compreensão dos seres vivos e de suas mensagens era “quem é você”. 
 
 
Tudo o que parecia o marco de chegada transformou-se em ponto de partida. Acostumado a aterrissar sobre as coisas, fui empurrado a levantar voo. Não era o objeto apenas que se erguia à minha frente com suas utilidades aparentes. Era o sujeito animado pela vida que tinha algo a me dizer e que eu precisava ouvir. As relações de convivência entre sujeitos que se comunicam dependem de os interlocutores serem capazes de ouvir.
 
 
Ainda atônito diante da simples pergunta à planta bate-caixa, pousado num galho seco, a poucos metros de mim, cantou um pássaro. Os pássaros falam cantando. Olhei para ele. Ele virou a cabeça e mirou-me fixamente com o olho direito e novamente cantou interrogativamente. Foi sua vez de me perguntar: quem é você?
 
 
Nosso cérebro diante de um objeto ou de um sujeito cumpre sua função de associar o que vê com o que ouve e, ao mesmo tempo, busca descobrir o que esse visitante faz, como faz, quando faz, onde faz. Pela plumagem, pelo formato do bico e o tamanho do leme, o livro dos pássaros me deu sua identidade: galo-da-campina.
 
 
Sem livros a consultar, o galo-da-campina, mesmo não ouvindo minha resposta, me identificou pelas diferenças. O pássaro tem cérebro como eu. Sou como ele. As funções do cérebro são as mesmas no pássaro, na cobra, no macaco, no lagarto, no ser humano. 
 
 
O cérebro associa o que vê com o que ouve e se expressa em defesa de sua vida e liberdade. O galo-da-campina diferenciou-me do gavião, do cavalo e das plantas. Voou para um lugar mais seguro porque nosso diálogo estava cheio de ruídos. 
 
 
Sua memória atávica guarda o som de tiros, lembra de grades das gaiolas. As queimadas assassinas têm tudo a ver com esse bípede vestido, cujas intenções não são, na maior parte das vezes, transparentes.
 
 
O galo-da-campina quis saber quem era eu e quais minhas intenções em relação à sua vida. Ele precisa construir o ninho em lugar seguro, namorar, acasalar-se, chocar os ovos, buscar comida para os filhotes, defendê-los de predadores, transmitir-lhes a cultura da liberdade na floresta. Ele cuida da vida que essencialmente é a mesma vida minha e de meus descendentes.
 

A espécie humana não só aprendeu a escravizar pássaros e animais como a torturar e assassinar seus semelhantes. Quem é você? Essa pergunta pode fazer a diferença no jogo de relações entre os seres vivos.


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