domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Lei de Murphy carioca

Geral

O verão sem limites, por Zuenir Ventura

Zuenir Ventura, O Globo

Essa onda de calor extremo, como não se via há 30 anos, parece que nos subiu à cabeça, depois de atacar o sistema digestivo (é impressionante o que tem de gente queixando-se de virose, desidratação ou desarranjo intestinal). 

O fato é que não só os termômetros têm estourado o limite, elevando a sensação térmica a 50 graus, e não só os raios ultravioletas, os UVs, vêm castigando perigosamente os corpos expostos ao sol.
Os excessos que nos exasperam estão por toda parte. 

No mar, aquela invasão descontrolada de micro-organismos, as algas mortas, que mudam a cor e a consistência da espuma em toda a orla. Na areia, roubos e furtos, além dos preços escorchantes de cadeiras, barracas e água de coco, sem falar nas toneladas de lixo espalhado pelo chão.

Tudo bem que não foi só no Rio; em SP, por exemplo, foi muito pior: incendiaram 33 ônibus só em janeiro, fora os depredados (e lá, sem praia, o desconforto agravou-se, já que, com os rolezinhos, ficou mais difícil refugiar-se no ar refrigerado dos shopping centers, que a qualquer ameaça fecham as portas).

Foto: Marcos Teixeira Estrella

O problema aqui no Rio é a bandallha, um mau hábito que quase todo mundo pratica um pouco: virar na contramão, dirigir falando ao celular, mantê-lo ligado no cinema, andar de bicicleta na calçada, furar fila, avançar o sinal, desrespeitar faixa de pedestre. São as tais infrações banais, corriqueiras, que só são punidas quando flagradas.

O exemplo mais recente, e esse criminoso, foi o do acidente com o caminhão na Linha Amarela que causou a morte de cinco pessoas. O motorista cometeu ao mesmo tempo quatro infrações: trafegava com a caçamba levantada, falava ao celular, corria além do limite de velocidade e se encontrava em lugar e horário proibidos.

Provavelmente passava ali diariamente e só foi descoberto porque no meio do caminho havia uma passarela para pedestres, que ele derrubou. Para se ter ideia da rotina de transgressão, no dia seguinte, apesar de toda a repercussão da tragédia, 111 caminhões foram surpreendidos ali, na mesma via e na mesma hora em que não é permitido trafegar.

No Rio, a Lei de Murphy — se alguma coisa pode dar errado, dará — se junta com a teoria da porta arrombada, segundo a qual todo mundo, inclusive as autoridades, vê e sabe que algo está ameaçando ocorrer, mas ninguém faz nada para evitar, até acontecer como acaso e fatalidade o desastre previsto e anunciado. Paradoxalmente, na terra do hedonismo, do culto do corpo, valoriza-se pouco a vida — dos outros.

Pode-se alegar que em outras cidades do país é assim também, mas aqui, neste verão sem limites, o que há de ruim tem adquirido dimensão exagerada. Os deuses do Amor e da Morte, Eros e Tanatos, estão disputando espaço neste nosso escaldante cotidiano.

Zuenir Ventura é jornalista.

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