A não ser para quem vê
algum tipo e alusão erótica na perna de pau do pirata — e, claro, no
próprio verbo “sassaricar” — todas as marchinhas de antigamente são de
uma inocência límpida. O que não falta em muitas delas é o que hoje se
chamaria de incorreção política.
Uma declara que a única
coisa a fazer com mulher feia é matá-la, uma espécie de eutanásia que,
supostamente, qualquer delegado ou juiz da época entenderia. Várias
outras fazem a apologia da bebida em excesso e brincam com o vicio do
alcoolismo, glorificando a danada da cachaça, que ninguém quer que lhe
falte.
A homofobia entrou no
mundo das marchinhas antes de o termo se tornar conhecido: a cabeleira
do Zezé só podia significar uma coisa, visto que ele não era nem bossa
nova nem Maomé. Que cortassem o cabelo do veado. E o que dizer da Maria
Sapatão, que de dia era Maria e de noite era João? Cantava-se tudo isso
sem medo de reprimenda ou revide. Que ninguém, naquele Brasil,
entenderia.
Não sei quando a inocência começou a acabar. A Rosa Maria e o Sérgio preferiram não incluir, que eu me lembre, nenhum exemplo da transformação. Talvez ela tenha começado com a “Indio quer apito”, uma anedota musicada sobre o que o índio exigia da madame com incontinência flatulosa. Não sei se antes ou depois apareceu uma marchinha que dizia “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”.
Não sei quando a inocência começou a acabar. A Rosa Maria e o Sérgio preferiram não incluir, que eu me lembre, nenhum exemplo da transformação. Talvez ela tenha começado com a “Indio quer apito”, uma anedota musicada sobre o que o índio exigia da madame com incontinência flatulosa. Não sei se antes ou depois apareceu uma marchinha que dizia “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”.
Foi a música mais
cantada do carnaval de não me pergunte quando. O que queria dizer a mula
manca? E, especialmente, o que era “rosetar”? Recorrer ao dicionário
não adiantava.
O Aurélio dizia que
“roseta” era um tipo de espora. O “rosetar” da música seria, então, usar
as esporas nos flancos, presumivelmente da mula manca, para fazê-la
andar. Uma explicação que não satisfazia.
Que estranha ambição
seria aquela, de impelir um pobre animal claudicante com esporas? Mas
“arrá”, diziam os mais sabidos. Quem não entendia o que era “rosetar”
ainda não tinha vivido.
O que a marchinha significava era que nada, nem
uma “mula manca” — duplos sentidos à vontade — impediria que a partir de
então se rosetasse sem parar no país. Há quem date daí o nascimento do
Brasil moderno.
09 de março de 2014
Luiz Fernando Veríssimo, O Globo Lorotas políticas e verdades efêmeras
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