quinta-feira, 29 de outubro de 2015

“Sem a Floresta Amazônica nosso futuro está condenado a dormir para sempre no passado”

, por Sandra Mara Ortegosa

Rede Sustentabilidade 13 de dezembro de 2013

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Já nos alertava Camões, em Os Lusíadas, que é mais prudente ouvir a voz do Velho do Restelo – um dentre as inúmeras pessoas que se amontoaram na praia do Restelo para se despedir dos navegantes – do que seguir os impulsos progressistas de Vasco da Gama que, a serviço do Rei D. Manuel, partiu em 1497 em busca da riqueza e glória no além mar.



Passados mais de 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, a reforma do nosso Código Florestal e o projeto de construção da mega usina hidrelétrica Belo Monte colocam em risco a sobrevivência da maior floresta tropical do planeta, trazendo novamente à tona o tema do progresso a qualquer custo.


Tanto a Belo Monte quanto as mudanças no Código Florestal obedecem à lógica do capital e do modelo desenvolvimentista.



Belo Monte, se não conseguirmos impedir sua construção, irá provocar enormes impactos socioambientais, alagando 516 quilômetros quadrados em pleno coração da Floresta Amazônica, que tem um papel essencial ao equilíbrio climático global e onde habitam mais da metade de todas as espécies terrestres do planeta (incluindo cerca de 180 etnias indígenas); além de provocar o deslocamento de mais de 30 mil habitantes, a migração de 200 mil pessoas para a região de Altamira (Pará), a expulsão de 13 mil índios, comunidades tradicionais ribeirinhas e agricultores, o desvio de 80% das águas do rio Xingu, o desaparecimento de paisagens únicas, sítios arqueológicos e uma riquíssima biodiversidade.



O novo Código Florestal, por sua vez, possibilita a concessão de maior impunidade para os madeireiros da Amazônia; a legalização de áreas de risco (encostas, topos de morros e várzeas), aumentando a chance de tragédias ambientais; a aceleração do desmatamento e perda da biodiversidade, agravando os impactos sobre o meio ambiente e beneficiando, exclusivamente, os fazendeiros e proprietários de terra. A progressiva diminuição de mata ciliar no entorno dos rios já vem sendo sentida nas catástrofes provocadas pelas enchentes no Brasil inteiro e só tende a se agravar.


No mesmo dia em que essas mudanças foram aprovadas pela bancada ruralista da Câmara dos Deputados (ironicamente em 2011, eleito o Ano Internacional das Florestas), o país acordou com a notícia do assassinato do líder ambientalista João Carlos Ribeiro da Silva e sua esposa, mortos a tiros em defesa da Amazônia, da mesma forma que Chico Mendes e vários outros ambientalistas, escancarando para o mundo inteiro que, quando os interesses dos fazendeiros estão em jogo, quem dá as cartas nesse país, onde persistem fortes traços do coronelismo colonialista, é o agronegócio.



A intensificação de ocorrências de desastres ambientais, no Brasil e no mundo, torna cada vez mais evidente que o modelo de desenvolvimento baseado na exploração e consumo ilimitados dos recursos naturais atingiu uma situação-limite, colocando em risco a continuidade da vida no planeta e suscitando uma crescente retomada dos temas ambientais que marcaram os anos 70. As crises do petróleo, do abastecimento de água e de alimento, as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e outros dilemas do mundo contemporâneo, confirmam as tendências anunciadas no famoso livro Limits to Growth, de 1972, mostrando que o mundo seguiu exatamente a trajetória insustentável definida como cenário provável neste livro premonitório.



Atualmente, a “pegada ecológica” humana já ultrapassa em 30% a capacidade de regeneração do planeta. Se não reduzirmos substancialmente nosso consumo, a economia mundial entrará em colapso em meados deste século. Mas a causa principal desse quadro de agonia planetária (Edgar Morin) não reside na superpopulação de quase sete bilhões de habitantes, mas principalmente no enorme desequilíbrio na distribuição de renda, no desregramento econômico mundial e na relação predatória e irracional com a natureza, conduzindo-nos a uma situação de insustentabilidade do modus vivendi hegemônico.


Em contraposição a essa realidade trágica, a Floresta Amazônica poderia se tornar o ponto de partida para um desenvolvimento ecossocial do Brasil, que é uma potência ambiental por sua abundância em terra, água, sol e biodiversidade. Esses são os ingredientes que deveriam ser utilizados no aproveitamento econômico da biodiversidade da floresta com envolvimento da população local, tais como a fruticultura nativa, os diversos tipos de óleos e a imensa variedade de fitoterápicos e fármacos ainda não descobertos e com grande potencial de cura de diversas doenças.


Infelizmente, porém, nosso sentido de percepção da realidade ainda é muito falho e fragmentado. Como afirma Morin, “os indivíduos de hoje, consomem o presente, deixam-se fascinar por mil futilidades, tagarelam sem jamais se compreenderem na torre de Babel das bugigangas”. Na metáfora do Mito da Caverna, Platão demonstra que somos como um grupo de homens sentados em uma caverna, voltados o tempo todo para os fundos, percebendo apenas as sombras e imagens fantasmagóricas causadas pelo que acontece do lado de fora da caverna, mas não o que de fato acontece.


Acreditamos que essas imagens são verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. O que vemos são apenas reflexos, mas certos de que essa é a única realidade possível, permanecemos estáticos, sem mudar de posição. A mídia, com destaque para a televisão, representa hoje a parede no fundo da caverna e tem como função, como alerta Jean-Luc Godard, produzir o “esquecimento”, através de uma profusão de notícias desconectadas, que impedem a percepção clara da realidade.


A grande encruzilhada do século XXI parece residir na imperativa tomada de consciência da nossa identidade planetária. O que está em jogo é, de um lado, a preservação da diversidade cultural e natural ameaçados de homogeneização e destruição e, de outro, a transformação revolucionária das relações sociais e dos valores individuais e coletivos, a partir da liberação de nossos potenciais psíquicos, espirituais, éticos, culturais e sociais. Trata-se, enfim, da necessidade de substituirmos o conceito de desenvolvimento pautado na visão economicista por um conceito de desenvolvimento sustentável e multidimensional.


O desafio crucial da humanidade, nesse momento decisivo, é o do despertar da percepção coletiva em relação à urgência por atitudes e ações que minimizem a crise planetária. E é somente a partir da identificação e do enfrentamento dos grandes males do mundo contemporâneo – como a miséria, as guerras e o imenso desequilíbrio ecológico – que poderemos livrar nossa mãe Terra de um destino trágico.


Não há mais tempo para a inércia. Como nos adverte o Cacique Mutua: “O homem branco devia saber que nada cresce se não prestar reverência à vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o Vento que não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento para outros povos distantes do mundo.”



Sandra Mara Ortegosa é arquiteta, antropóloga e ativista. Seu artigo foi publicado originalmente no site Forum Século XXI.

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