domingo, 30 de março de 2014
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Rafael Bezerra
‘No Rio de Janeiro,
uma senhora dirigia seu automóvel com o filho ao lado. De repente foi assaltada
por um adolescente, que a roubou, ameaçando cortar a garganta do garoto. Dias
depois, a mesma senhora reconhece o assaltante na rua. Acelera o carro,
atropela-o e mata-o, com a aprovação dos que presenciaram a cena.”
No início do mês de
fevereiro do corrente ano, na mesma “locação”, na Avenida Rui Barbosa, no
bairro do Flamengo, um jovem negro é encontrado nu, orelha cortada com faca,
amarrado em um poste, numa espécie de pelourinho improvisado, após ser
espancado e torturado, acusado de praticar furtos na Zona Sul carioca, por três
homens que se denominaram “Os Justiceiros”.
O primeiro trecho
foi extraído de artigo do psicanalista pernambucano Jurandir Freire Costa,
professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no Instituto de
Medicina Social (IMS), publicado em 1993, na edição de 25 anos da revista
“Veja”, na seção “Reflexões para o futuro”, na qual o autor busca ilustrar a
“nova feição da cultura da violência” no Brasil. A segunda passagem narra a
banal e naturalizada violência racista de grupos de extermínio, a qual de
pronto encontrou eco no jargão midiático: “Tá com pena do marginalzinho? Adote
um bandido!”
Ambas situações
desafiam de forma radical os supostos consensos das sociedades ocidentais
contemporâneas, em especial a brasileira, que afirmam compartilhar princípios
como a igualdade e a dignidade da pessoa humana, bem como evidenciam a
dificuldade que enfrentamos quando tentamos convencer indivíduos adeptos da
violência de que o recurso aos meios legítimos da Justiça ainda é o melhor meio
que temos de eliminar conflitos.
Episódios como
estes expõem a cultura da violência, por nós já assimilada, fundada na
convicção e na aposta de que o crime e a brutalidade são inevitáveis, exigindo
assim dos “cidadãos de bem” a inexorável “justiça feita com as próprias mãos”.
Haveria explicação
para esta persistente sombra no imaginário brasileiro acerca do nosso pretenso
estado democrático de direito?
Uma linha
explicativa nos leva à discussão sobre a formação da sociedade brasileira e a
educação em direitos humanos. Neste sentido, observa-se que, a despeito do
discurso fácil e do que dispõem a Constituição e os tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário, não incorporamos culturalmente as noções de
igualdade e dignidade ontológica dos seres humanos.
Em contrapartida,
grassa a noção de “direito penal do inimigo”, a qual pressupõe que as condições
de titular de direitos humanos e até de pessoa não são ontológicas, ou seja,
não lhes seriam inerentes, derivando do simples fato de serem seres humanos,
mas sim circunstanciais, relativas.
A consequência
disso? O indivíduo não seria portador de direitos, mas estes lhe seriam
atribuídos pela comunidade. A prática de determinados crimes poderia levar à
exclusão do indivíduo da “comunidade de direitos” e gerar a perda da condição
de pessoa e da titularidade da dignidade e desses direitos.
Como pano de fundo
psicanalítico para esta histeria social — retornando a Jurandir Freire Costa —
temos o “medo social”, para o qual a expectativa do perigo iminente de ser alvo
da violência faz com que as vítimas potenciais aceitem facilmente a sugestão ou
a prática da punição ou do extermínio preventivo dos supostos agressores
potenciais. O “clima de persistente insegurança” torna os agredidos mais
dispostos a conceder aos “justiceiros” carta aberta para fazer o que quiserem,
alegando o que bem queiram.
E é neste contexto
de medo generalizado, em face dos níveis alarmantes de violência urbana em
nosso país, que o apelo humanitário não encontra apoio social, caindo no
discurso vazio do senso comum: “Direitos humanos para humanos direitos.” Talvez
aqui esteja o equívoco maior de nossa sociedade: imaginar que o tratamento
conferido a indivíduos com comportamentos tidos por nós como reprováveis não
repercute negativamente nela mesma.
Rafael Bezerra é Jornalista. Originalmente publicado em o Globo em 28 de Março de 2014.
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