Desde que o período brasileiro
de chuvas, de outubro a março, foi caracterizado por uma estiagem forte
e atípica entre 2013 e 2014, a associação do estado de São Paulo com um
cenário de crise hídrica começou a ser cada vez mais frequente. E não é
por menos: desde maio deste ano, São Paulo utiliza o volume morto –
reserva técnica de água que precisa ser puxada por bombas, abaixo do
volume útil – do sistema Cantareira, maior dos sistemas administrados
pela Sabesp, utilizado para abastecer 8,1 milhões de clientes da
Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
Porém, a
situação é mais grave e menos localizada. De acordo com um levantamento
baseado nos decretos reconhecidos pela Secretaria Nacional de Defesa
Civil (Sedec), até o começo do mês mais de 1,2 mil dos cerca de 5,5 mil
municípios brasileiros já decretaram situação de emergência por conta da
situação de seca.
O Nordeste concentra mais de 70% dos decretos de situação de
emergência, mas a situação de seca tem causado fortes problemas também
no Sudeste. Em Minas Gerais, já são 171 municípios em situação de
emergência devido à estiagem. O estado que mais está sofrendo com a seca é o Piauí, com mais de 200 municípios em situação de emergência.
A última vez que o sistema Cantareira chegou a 100% de sua capacidade
foi há 11 anos, em 1999, segundo dados da Sabesp. Nesta semana, com as
fortes chuvas na região dos reservatórios, o nível do sistema se manteve
estável em 10,8% da capacidade. No dia 22 de outubro, o nível era de
3,2%.
Outros sistemas que abastecem São Paulo também sofreram com a
estiagem. No Alto Tietê, que também sofre com a grave estiagem, o índice
recuou de 7,6% para 7,5%. No Guarapiranga, a queda foi de 35,3% para
35,1%. No Alto Cotia, o nível passou de 29,7% para 29,6% e, no Rio Claro
teve queda de 36,2% para 36%. O sistema Rio Grande, se manteve estável
em 65,9%. Chuvas interromperam queda na sistema Cantareira, mas quadro ainda é crítico
Várias medidas já foram avaliadas pelo governo de São Paulo para tentar evitar que a população
do estado ficasse sem água. Em uma dessas medidas, o governador
paulista Geraldo Alckmin declarou o desejo de buscar água no Paraíba do
Sul, com um projeto de R$ 500 milhões que interligaria as represas
Jaguari, da bacia do rio Paraíba do Sul, e Atibainha, no sistema
Cantareira.
O problema da proposta está justamente no fato de o Paraíba
do Sul ser a principal fonte de abastecimento do Rio de Janeiro, que
também enfrenta problemas de abastecimento em alguns pontos. O Paraíba
do Sul é responsável por abastecer cerca de 9,5 milhões de pessoas no
Rio.
No Rio, inclusive, o agravamento da questão hídrica vem castigando
sobretudo a região do Norte Fluminense, local onde o Rio Paraíba do Sul
deságua no mar. Na última quarta-feira (12), o município de São João da
Barra decretou situação de emergência, visto que o rio se encontra
muito abaixo dos níveis considerados normais – causando salinização da
água potável devido ao avanço do mar.
O nível mínimo do rio deveria ser
2,80 metros, mas no momento não atinge nem 2,20m. São Fidélis foi o
primeiro município do Rio a decretar emergência devido à seca e outros
locais, como São Francisco do Itabapoana também passam por situações
críticas.
“Floresta e água possuem uma relação muito íntima”
Com base em dados levantados pela Organização das Nações Unidas
(ONU), a Fundação S.O.S. Mata Atlântica acredita que a crise de água no
sistema Cantareira é apenas a ponta de um iceberg que deverá atingir Rio
e Minas, além de São Paulo, caso não sejam feitas mudanças na gestão
dos recursos hídricos.
Na última segunda-feira (10), a fundação lançou
um edital para seleção de áreas prioritárias para a restauração
florestal da Mata Atlântica, com propostas diretamente relacionadas com a
conservação e proteção dos recursos hídricos do sistema Cantareira. De
acordo com Rafael Fernandes, coordenador de restauração florestal da
fundação, projetos de recuperação de florestas em área de manancial são
fundamentais para reverter situações de crise hídrica.
“O
reflorestamento é uma das pontas, é preciso que haja também economia de
água, uma consciência do uso mais racional dela. Floresta e água têm uma
relação muito íntima e esse projeto seleciona um número de municípios
que de fato influenciam no sistema Cantareira”, explica. Aumento da urbanização agravou os problemas hídricos
Os projetos do edital irão beneficiar até 12 municípios de São Paulo e
Minas Gerais. A ideia é conseguir recuperar até 400 hectares de mata,
conservando, portanto, 4 milhões de litros de água por ano na área de
abrangência da Cantareira. O conjunto de bacias convive há 30 anos0 com
quase 80% de desmatamento de sua cobertura florestal nativa e possuindo
atualmente apenas 48,8 mil hectares de remanescentes, ou 21,5% de sua
área de Mata Atlântica original.
Através do programa Clickarvore, que
apoia iniciativas e projetos de restauração florestal, até R$ 2 milhões
serão investidos em propostas enviadas até o dia 15 de janeiro por
pessoas físicas ou jurídicas, associações, OSCIPs ou ONGs ambientalistas
ou por proprietários de terras. Até 1 milhão de mudas de espécies
florestais nativas da Mata Atlântica deverão ser doadas.
Rafael Fernandes lembra que iniciativas de reflorestamento atingem
ainda questões ambientais como a conectividade de fragmentos de mata
espalhados e o salvamento de corredores de biodiversidade. “Tivemos uma
seca muito atípica e a gente viu que faltou muito planejamento. Tratamos
a maioria dos nossos rios como esgotos a céu aberto. Lançamos uma carga
enorme de poluentes em rios que podiam ser fontes de abastecimento. Com
todos os holofotes voltados para essa causa, é uma oportunidade de pelo
menos fazer as pessoas”, acredita.
É importante ressaltar que a crise hídrica, principalmente em sua
manifestação na cidade de São Paulo, não é fruto apenas de aspectos
climáticos. Inúmeros outros fatores contribuíram para a atual situação.
O
aumento populacional cresce no Brasil em uma taxa de 0,9% ao ano –
enquanto que São Paulo cresceu em uma média de 1,1% na última década. A
urbanização galopante dos grandes centros também aumentou
consideravelmente a poluição de rios ao mesmo tempo em que dificultou o
acesso à água potável. Com crescimento urbano, aumenta ainda o
desmatamento, a impermeabilização do solo e a sobrecarga do sistema de
abastecimento e coleta – e todos esses fatores influem no quadro
hídrico.
Aliança pela água
A busca por soluções que resolvam a crise hídrica a longo e curto
prazo acaba sendo acelerada em situações complicadas como a atual. No
fim do último mês, foi lançada na capital paulista, uma associação
formada por mais de 20 organizações não governamentais que trabalham na
defesa do meio ambiente. O objetivo do projeto chamado Aliança pela Água
é trazer sugestões que ajudem a solucionar a falta de água em São
Paulo. A iniciativa teve início em um mapeamento feito junto a 281
especialistas, que enumeram propostas e chegaram a 20 ações principais,
de curto e longo prazo. O levantamento reuniu 368 organizações,
contextualizando cerca de 60 municípios atingidos pela crise.
Em relação às iniciativas de curto prazo, a Aliança pela Água sugere a
instalação de um comitê de gestão de crise e de salas de situação de
crise, pelo governo estadual, com ampla participação das prefeituras e
da sociedade. A transparência na gestão, ampliação da divulgação de
informações públicas, a promoção de campanhas que garantam acesso da
população aos horários e dias com risco de falta de água também foram
medidas consideradas importantes. ‘Em vez de usar e descartar a água, é preciso reutilizar’, diz especialista
O especialista em água Samuel Barreto, coordenador de ações da
organização internacional The Nature Conservancy (TNC) com água e
responsável pelo Movimento Água para São Paulo, acredita que a Aliança
pela Água significa a existência de um processo de co-responsabilidade e
participação de uma sociedade que está realmente preocupada com a
situação hídrica. “Essa aliança tem essa prerrogativa de gerar uma
sinergia e uma pressão social sobre decisões que devem ser tomadas a
curto e médio prazo. Essa coalizão de mais de 20 organizações da
sociedade civil vêm contribuir para uma plataforma de segurança hídrica,
incentivando ações existentes e fazendo com que novas medidas sejam
lançadas sem esperar só ações do governo”, explica.
Samuel acredita que é preciso voltar as atenções para medidas como a
recuperação dos mananciais. Mais de 80% da cobertura verde foi perdida
com o tempo e isso, segundo o especialista, tem impacto direto tanto na
qualidade quanto na quantidade da água que chegam às torneiras. “É
preciso rever o modelo atual, recuperar áreas de mananciais, aplicar
mecanismos melhores de gestão de oferta de forma a reduzir as perdas de
forma mais robusta. A média brasileira é que se perda 40% de tudo o que
produzimos. Em vez de usar e descartar a água, é preciso reutilizar. A
gente tem em média 60 metros cúbicos por segundo de esgoto sendo gerados
e essa água poderia ser reaproveitada para diversas finalidades”,
indica.
A especialista em gestão de recursos hídricos, sustentabilidade e
meio ambiente Marussia Whately, do Instituto socioambiental (Isa), que
assim como o TNC também integra o grupo de entidades da Aliança Pela
Água, explica ainda que hoje são três as principais fontes de degradação
da água: os esgotos urbanos, o desmatamento em várias áreas e o uso
indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes.
“Esses três fatores
trazem alto impacto de degradação dos recursos hídricos e não vêm sendo
tratados de uma forma integrada. Uma parte do território passa por uma
estiagem severa e a gente não tem visto respostas à altura: apesar da
existência de menos chuva não foram tomadas medidas para controlar a
água retida nos mananciais. Já era algo anunciado, a Agência Nacional de
Águas já apontava que em 2015 mais da metade das cidades brasileiras
poderiam ter problemas de abastecimento por conta de infraestrutura”,
lembra.
Marussia Whately diz ainda que, nesse momento, é necessário pensar em
ações emergenciais para garantir o acesso à água visto que, segundo a
especialista, as perspectivas de chuva não estão sendo animadoras. “De
forma imediata, não apenas em São Paulo, é preciso garantir
transparência para lidar com a crise. É preciso criar comitês de gestão
de crise envolvendo o governo, a sociedade, o segmento agrícola e o
industrial. É preciso trabalhar de forma integrada e fornecer
informações para as pessoas acerca da real dimensão da situação.
A
Cadesp vem fazendo há seis meses uma campanha de bônus na conta de água
para quem economizar e mesmo assim 25% dos contribuintes aumentaram o
consumo. É preciso outra forma de comunicar e de chegar a esses
consumidores”, afirma.
Na busca por água doce, muitos países esbarraram na técnica de
dessalinização. No Brasil, o sistema já é usado em nove estados, desde o
sertão do Ceará até Fernando de Noronha, que ainda depende
fundamentalmente da chuva para o abastecimento visto que 40% da água
consumida na ilha vêm de açude e de poços.
Marussia acredita que, em
momentos de crise, soluções que envolvem investimentos caríssimos
começam a ser apresentadas. “Dessalinização, fora alguns lugares, é uma
medida muito extrema quando se olha para o potencial hídrico que o
Brasil tem. O que precisamos aprender é a cuidar melhor da água e
recuperar nossas florestas, antes de começarmos a avançar em questões
dessa escala”, acredita.
Samuel Barreto também acredita que o contexto do Brasil pede outro
tipo de ações prioritárias. Para o especialista, é fundamental sempre
considerar novas tecnologias, mas que ações como a dessalinização podem
nem ser viáveis em determinadas situações. “Em São Paulo não é viável,
por conta da questão do nível do mar, por exemplo. Talvez seja algo que
poderia ser feito no Rio, mas, mesmo sendo viável, muita coisa pode ser
feita antes. Seja resolver o problema do uso ineficiente, resolver o
desgaste dos mananciais. Temos muita lição de casa para fazer antes
disso”, conta. *Do programa de estágio do JB
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