domingo, 30 de novembro de 2014

Guerrilheiros Verdes de NY propõem novo modelo de produção e consumo na metrópole

REDE BRASIL ATUAL



Assista ao curta sobre como algumas comunidades na cidade dos EUA se organizam para enfrentar os desafios da gentrificação e da indústria de alimentos, com a criação de hortas comunitárias
 

29/11/2014

 
Carolina Caffé
Guerrilheiros verdes



Em um mundo em que o número de pessoas cresce exponencialmente, junto aos danos ambientais e à saúde, procurar novos paradigmas de produção e consumo, alternativos ao modelo de desenvolvimento urbano atual, deixou de ser uma escolha. É preciso atuar com urgência, estratégia e criatividade – dentro e fora do sistema.


No coração da rica ilha de Manhattan, brotaram hortas comunitárias que fizeram pessoasparar suas corridas diárias e se perguntar: “Eu ainda sei o que é comer de verdade?”. Esses espaços verdes se multiplicaram na cidade, e hoje representam não apenas um símbolo de resistência à privatização do alimento, mas também à mercantilização do espaço, das relações humanas e da vida.


Assista ao curta produzido por Carolina Caffé para a Revista do Brasil

Nova York e os Guerrilheiros Verdes from Carolina Caffé on Vimeo.


No início dos anos 1970, em Nova York, a artista Liz Christy juntou-se a Donald Loggins e outros vizinhos. E resolveram fazer algo em relação ao quadro de abandono no qual a cidade vivia. Misturaram sementes e fertilizantes dentro de bexigas e camisinhas e jogaram por cima das cercas de terrenos baldios. Plantaram girassóis nos cruzamentos mais movimentados do bairro, frutas e legumes no parapeito de prédios abandonados.


Em pouco tempo, chamaram a atenção para um terreno na esquina das ruas Bowery e Houston: onde antes se via um terreno baldio cheio de entulhos, surgiu um enorme jardim comunitário.


E assim, em 1973, nasceu o Liz ChristyCommunity Garden, primeira horta comunitária de Nova York, e os Green Guerrillas (guerrilheiros verdes). Não tardou para o movimento ganhar novos ativistas e simpatizantes, entusiasmados com o poder de transformação urbana das hortas comunitárias.



O projeto foi reconhecido como ferramenta para recuperar terras da metrópole e fortalecer laços de vizinhança, além de fornecer uma alimentação justa e saudável.
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A pioneira Liz Christy faz poda no jardim que leva seu nome, em 1973


“Aos poucos as pessoas começaram a pedir instruções de como fazer as granadas verdes e replicar a mesma experiência nos seus bairros, no Brooklyn, no Bronx, no Harlem”, conta Donald Loggins, cofundador da comunidade.


“As pessoas sentem a necessidade de fazer algo assim pelas suas vidas e pela cidade, só precisam de algo que desperte nelas esse movimento.”


O jardim Liz Christy Community Garden tem um lago de 2,5 metros de profundidade, onde convivem peixes e tartarugas. Bancos de madeira e um caramanchão coberto de uvas oferecem abrigo para o saborear dos figos, peras e maçãs colhidos direto das árvores.


Dali se pode contemplar o bosque de bétulas chorando, e uma enorme metasequoia chinesa, além das flores silvestres. Na casa de ferramentas pode-se encontrar um glossário com informações dos tipos de pássaros que visitam o jardim. E na horta, legumes e ervas de tipos variados para levar para casa ou cozinhar ali mesmo, com a vizinhança nos finais de semana.

Terra e alimento

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Crianças de escola local trabalham no El Jardin del Pueblo, no Brooklyn. Contato com terra e produção de alimentos, perspectiva de vida melhor
Nova York conta hoje com mais de 600 jardins comunitários. Na maioria, eram terrenos abandonados que foram apropriados e trabalhados de forma voluntária e colaborativa pelos moradores dos seus bairros.


O movimento cresceu e hoje a cidade conta com programas, centros e fundos públicos dedicados à proteção e manutenção dos jardins. Judith Z. Miller é uma das mais fervorosas defensoras do Warren Street/St. MarksCommunity Garden, no Brooklyn.


O local tem 26 anos e, com o comprimento de um quarteirão inteiro, funciona como um verdadeiro oásis no meio do cenário urbano. Na horta é proibido o uso de pesticidas não-orgânicos, herbicidas ou fertilizantes. “Uma vez por mês todos vêm e trabalhamos juntos, no chamado work day. É ótimo, você acaba conhecendo seus vizinhos, sujando as mãos de terra, fazendo algo produtivo. Cada vez que a gente vem fica melhor e mais bonito”, conta Judith, que também usa o jardim para ler e meditar.


“Nós, que vivemos em centros urbanos, estamos muito desconectados da terra. Crianças acham que comidas vêm das latas, caixas e sacolas plásticas. Há crianças que moram a três quarteirões daqui e nunca entraram nesse jardim, nunca viram uma cenoura sendo puxada da terra”, diz a ativista. Judith diz acreditar que se elas não têm a experiência prática de, com as próprias mãos, tocar o alimento, nunca irão respeitar a comida e entender a importância de proteger o meio ambiente, além das demais questões, como a mudança genética do alimento, os pesticidas e venenos na comida, na água e no ar. “As crianças que tiverem essa experiência desenvolverão uma relação muito melhor com a alimentação.”


O professor Nicholas Freudenberg, especialista em saúde pública da Universidade da Cidade de Nova York, afirma que a maioria das doenças crônicas está diretamente relacionada ao hábito alimentar. Essas doenças estão crescendo rapidamente e hoje representam mais de 50% das causas de mortes em todo o mundo. São elas as cardiopatias, diabetes, câncer e hipertensão, todas relacionadas à ingestão de alimentos processados por uma indústria que lucra com produtos que possuem grande quantidade de açúcar, sal e gordura, além das substâncias químicas para realçar sabor e fazê-los durar mais tempo.

Melhores alimentos

“Devemos pressionar o setor público responsável, pois apenas o governo tem a autoridade e os recursos para colocar a pressão necessária sobre a indústria de alimentos e dizer: ‘Não, você não pode lucrar fazendo nossos filhos doentes, você não pode promover entre os pobres produtos que fazem mal à saúde lucrando sobre o fato de eles não terem acesso aos melhores alimentos’”, afirma o especialista.


Freudenberg aponta também a criação e o fortalecimento de um sistema alternativo de produção de alimentos como o segundo caminho estratégico. Os mercados de pequenos agricultores locais, os green cards, bancos de moedas sociais, as cooperativas de alimentos e as hortas comunitárias são todas peças desse sistema alternativo que acaba também por pressionar as forças do mercado, além de dar às pessoas comuns, e consumidores de baixa renda, uma forma mais direta de garantir uma comida saudável na mesa.
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Work day no Warren Street/St. Marks Community Garden: trabalho para o lugar onde se vive
Para a pesquisadora Ann Gaba, especialista em saúde pública da Hunter College, as hortas comunitárias oferecem uma alternativa positiva não apenas do ponto de vista nutricional, mas também social. É lugar onde o tempo desacelera, as relações humanas e coletivas acontecem sem a mediação dos aparelhos eletrônicos, e tudo isso acaba trazendo tantos benefícios quanto colher um alimento mais saudável.


“A transformação do problemático sistema alimentar atual deve começar pelo questionamento do próprio consumidor sobre os seus hábitos. As pessoas não prestam a atenção na qualidade do seu dia a dia”, observa Ann. “Muitas compram algo pronto pra comer e saem correndo, ou comem na frente da televisão ou do computador, e estão tão distraídas que nem prestam atenção no que estão comendo, nem ao menos se tem um gosto bom ou não.”


Tempo & dinheiro não é a única equação responsável pelo mau hábito alimentar, mas também a falta de informação, dos conhecimentos necessários para a conquista de um melhor estilo de vida. Para a especialista, muitas pessoas não desenvolvem sequer o desejo por uma comida fresca, pois experimentaram muito pouco, e aquilo já não faz parte do seu mundo. Passam pelas hortas comunitárias e não sabem o que fazer com aquilo, não possuem mais este conhecimento. “Aqui é também um lugar onde as pessoas podem se reunir para discutir o que mais está acontecendo no bairro, para além do jardim”, conta Donald Loggins, orgulhoso das conquistas e da diversidade do Liz Christy Community Garden.



“Já chegamos a passar noites inteiras no jardim debatendo questões do bairro. Se você faz isso nas ruas a polícia logo aparece pra te tirar dali. Outra coisa incrível é que o jardim reúne pessoas de diferentes lugares e formas de pensar. Vêm pessoas de bairros distantes. Temos jardineiros do Tibete cultivando vegetais tibetanos, outros de Beijing com suas receitas próprias, e também turistas, que vêm pesquisar para reproduzirem nas suas cidades.”
Donald lembra que quando começaram o Green Guerrilla, a cidade achou que eram revolucionários.


“Acharam que estávamos tirando as terras da propriedade do Estado. Mas acho que chegou uma hora em que entenderam que fazíamos o trabalho melhor do que eles. Manhattan, por exemplo, conta no total com 30 jardineiros para todas as áreas verdes da ilha, incluindo Central Park. Só aqui no Liz Christy Community Garden temos 24 jardineiros voluntários, entre eles arquitetos, escritores, babás, cineastas e jornalistas. É realmente um mix de diferentes pessoas e diferentes formas de colaborar com o espaço.”

Novos tempos

Os lotes abandonados da década de 1970, em uma cidade que ainda sofria pelos tempos das guerras mundiais e da Grande Depressão, passaram a ser os espaços mais disputados do mundo hoje. Os verdes oásis contribuem para a valorização do local, isso quando não são alvo dos interesses comerciais e imobiliários que pressionam o governo para retomar os espaços e erguer no lugar empreendimentos lucrativos.


Muitas das hortas comunitárias, que começaram por um movimento de ocupação civil, ainda lutam para conquistar um status diferente de “invasores”. Algumas ganham, outras perdem essa batalha. “Esse é o grande problema, as pessoas querem construir aqui. Esse pedaço de terra vale hoje milhões de dólares”, afirma Judith Z. Miller. “Lugares como esse não são populares entre os desenvolvimentistas, mas são essenciais para a comunidade.”


“Estamos perdendo alguns jardins comunitários, infelizmente”, afirma Donald, “e também deixei de ver novos jardins comunitários surgindo em Manhattan, e não acho que vai acontecer. Segundo ele, os guerrilheiros verdes vivem atualmente o desafio de conseguir o envolvimento e apoio do público, fazer a vizinhança se importar com a causa. “Fazemos churrascos e eventos de todo tipo aqui, e todos podem entrar. Chegamos a fazer uma campanha de postais, entregamos a todos que passavam para escrever mensagens de apoio para a permanência do jardim. Se você está com apoio e a opinião pública, o político não vai tirar o jardim de você.”


O Liz Christy é hoje parte do Departamento de Parques de Nova York, garantido por lei como bem público, e sua permanência dependerá se seus membros o mantiverem como horta comunitária. O Warren Street/St. Marks é uma área de propriedade privada, mas dedicada ao uso público e sem fins lucrativos, por uma associação comunitária do Brooklyn.


Comida

Novos paradigmas de produção e consumo

A filosofia progressista do “autofazer” por trás das experiências dos jardins comunitários corresponde às características tão presentes da era digital (user–generated era), das redes sociais e da democracia (direta, inclusiva e participativa). A tecnologia e a internet foram apontadas entre todos os entrevistados como campo estratégico na defesa das hortas comunitárias e da segurança alimentar e nutricional.


As hortas coletivas urbanas de Nova York se diferenciam dos tradicionais parques da cidade, como o Central Park e o Prospect Park, áreas verdes desenhadas pela “cidade para nós”, e se alinham mais com a ideia de fortalecimento local – desenhadas pelo “nós para nós”.


São espaços concebidos não só para o descanso, contemplação e lazer, mas também para promover um sentido de pertencimento e de vida em comunidade. Uma ideia que se alinha às teorias do desenvolvimento local, e que torna os usuários responsáveis pela concepção e funcionamento dos espaços públicos abertos.


A crise dos paradigmas neoliberais abre a possibilidade da criação de uma nova forma de articulação entre os diversos objetivos econômicos, sociais, ambientais e culturais. E em meio à crise moral e ética provocada pela ambição e avareza, as hortas urbanas exercem hoje o raro poder de indagar à comunidade: você tem fome de quê?


Carolina Caffé é socióloga, documentarista e freelancer em Nova York

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