Publicado em novembro 25, 2014 por Redação
Seis milhões de litros. É o volume usado em 2010 do inseticida metamidofós
em lavouras mato-grossenses. Ele está no topo de duas listas: o segundo
mais utilizado no estado e na classe mais perigosa à saúde. Uma gota
pode matar um homem adulto. O contato com o agrotóxico pode causar
paralisias, convulsões, perda de memória e levar até ao desenvolvimento
do Mal de Alzheimer.
Desde 2012 seu uso foi proibido, mas ele permanece no ambiente por
10, 20 anos, atingindo terra, água, plantas e animais. Incluindo o
Homem. Além disso, muitos outros defensivos agrícolas ainda ajudam a
sustentar a economia do maior produtor de soja do país.
E do centro deste problema de saúde pública começam a surgir soluções. Izabela Gutierrez, em seu mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT],
desenvolveu uma tecnologia barata e rápida para identificar a presença
do agrotóxico na água, terra e até no alimento. Antes disso, os estudos
precisavam ser feitos em laboratórios na região sudeste. Isso levava dez
dias. Com a invenção da cacerense, o teste sai em 30 minutos.
O sensor de fato é uma pequena peça de vidro recoberta de metal e feita artesanalmente (Foto: Bruna Maciel/Voluntária Fapemat Ciência) |
O perigo deste agrotóxico é que ele bloqueia uma enzima no cérebro,
atrapalhando as sinapses, que são os pulsos elétricos que fazem o
cérebro controlar tudo. Normalmente, esta enzima quebra algumas
moléculas, gerando íons. Mas o pesticida se gruda, segura a enzima e não
a deixa trabalhar. As moléculas que deveriam ser quebradas acabam se
acumulando, e começa o problema.
Mas foi justamente isto que o entregou. Utilizando a mesma enzima em uma fita, é possível ver a ação do metamidofós.
Se ele estiver ali, a enzima não vai trabalhar. E se ela não trabalha,
vai diminuir produção de íons do mesmo jeito que acontece no cérebro.
Daí é só medir e… pimba! Teste feito.
Mas será que é fácil assim medir? Pior que sim. Os íons causam uma
mudança de acidez, do pH. E medidor de pH já existe há um bom tempo. O
objetivo agora é compactar os equipamentos de leitura de precisão para
algo semelhante a um medidor de diabetes, barato e que caiba no bolso.
Alguns estudos já estão sendo feitos nos laboratórios do campus de São
Carlos da Universidade de São Paulo [USP-SC]. Segundo o orientador da dissertação e professor da UFMT, Romildo Ramos, isso é perfeitamente realizável. Só falta o investimento do setor público ou privado para alavancar o processo.
Izabela conta que o processo é bastante confiável. A enzima usada
[acetilcolinesterase] é bem específica. Isso significa que coisas como
sujeira e outros elementos não vão alterar o resultado. Além disso, os
pesquisadores fizeram mais de 50 testes e conseguiram o mesmo resultado
em diferentes laboratórios na UFMT e USP-SC. Eles ainda contam que
bastam novas baterias de testes e calibrações para que outros tipos de
agrotóxicos possam ser também identificados.
Reconhecimento
Sábados, domingos, feriados. O expediente começa cedo e não tem
hora para acabar. A marmita é o que salva nos 30 minutos de almoço. As
aulas na escola pública ajudam a sustentar a pesquisa, que sofre com o
financiamento ralo. Para alguns, o relato de Izabela e Romildo podem ser
bem chocantes. A gestação dessa tecnologia foi de 20 meses, e repleta
de duras penas. Mas valeu.
A pesquisa de Gutierrez e seu biossensor já carregam alguns títulos
invejáveis. A tecnologia ainda é a única patente da UFMT, mas deve
ganhar companhia logo, segundo o Escritório de Inovação Tecnológica
[EIT] da universidade. É também o único mestrado de Física da
universidade a publicar dois artigos em revistas internacionais. Mostras
da importância deste trabalho são os convites de um grande laboratório
francês e de uma pesquisadora espanhola para trabalhos em parceria.
O aparelho de medição ainda precisa ser compactado (Foto: Bruna Maciel/Voluntária Fapemat Ciência) |
A tecnologia ainda não foi testada para poder ser comercializada no
Brasil, mas o registro já garante que, quando ela for explorada, o
dinheiro dos direitos vai ser dividido entre as instituições e
pesquisadores que participaram do trabalho.
A tecnologia permite precisão nos dados obtidos (Foto: Bruna Maciel/Voluntária Fapemat Ciência) |
Para o professor Romildo, a criação de produtos é fundamental para a
universidade. “É nisso que deviam investir. A UFMT subiu no ranking com
ajuda da patente [leia mais].
Já pensou uma indústria dessas aqui em Mato Grosso? Nós não podemos
ficar dependendo só do agronegócio. E isso traz visibilidade para cá. E
melhora a qualidade de vida de todo mundo”.
A imagem do inventor gênio, que tem a ideia e constrói tudo
sozinho, não se encaixa muito bem na realidade. Izabela é matemática.
Seu orientador é físico. Seus parceiros na pesquisa incluem médicos,
químicos e biólogos. E “cada um teve um papel importante no trabalho,
não dá para fazer tudo sozinha”, conta Gutierrez.
Continuidade dos trabalhos
Enquanto o financiamento não vem, os pesquisadores ficam parados?
Não. Izabela agora cursa doutorado na USP-SC, onde procura aprimorar sua
criação. Apesar de manter os detalhes em segredo, ela revela que a
tecnologia deve se tornar ainda mais acessível e sustentável. Algo
envolvendo um abacate que corta a necessidade de importar enzimas. “É,
cada vez mais, uma tecnologia que vem da natureza para encontrar uma
coisa que faz mal à natureza”, conta empolgada a pesquisadora.
Passando o bastão. Três gerações de pesquisadores: Izabela, estagiária de Química e o professor Romildo (Foto: Bruna Maciel/Voluntária Fapemat Ciência) |
Izabela continua regularmente voltando e trazendo novos
conhecimentos para a UFMT. Nesse meio tempo, Romildo fortalece o Grupo
de Pesquisa em Materiais Moleculares, treinando universitários de várias
áreas e alunos do ensino médio que podem dar continuidade aos trabalhos
desenvolvidos hoje. Segundo ele, “é preciso investir na base. “Daqui
uns anos vai ter alguém para fazer mestrado nessa área, e quando ela
sair, já vamos ter outro capaz de continuar”.
Fonte: Revista Fapemat Ciência
Publicado no Portal EcoDebate, 25/11/2014
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