José Manuel Fernandes, articulista do jornal
português Observador, fala sobre a tragédia vivida pelas
esquerdas, que agora se chocam com a realidade. Quem acreditou em Dilma, no
Syriza ou em Hollande enfrenta - tardiamente, digo eu - uma grande desilusão.
Ah, os "puros" também são impuros - e agora pedem socorro ao
"neoliberalismo". Fernandes dá especial destaque à grande
manifestação do dia 15 de março:
Um
milhão de pessoas só em São Paulo. Talvez dois milhões no conjunto das grandes
cidades brasileiras. Desde a campanha pelas “directas”, que marcou o fim da
ditadura militar, que o Brasil não vivia uma jornada assim.
E, contudo, Dilma
tomou posse há apenas três meses. Não, nem chega: a posse foi a 1 de Janeiro,
são dois meses e meio. Nunca se tinha visto. Sem bandeiras de partidos, muitos
vestidos com as cores da bandeira brasileira, os “homens direitos”, como lhes
chamou um colunista da Veja, saíram à rua. Veio gente de todas as
classes, de todas as idades, de todas as mestiçagens possíveis no Brasil.
Vieram para exigir o fim da corrupção e a demissão de Dilma Roussef.
Não é preciso fazer
raciocínios complicados para perceber o que se passou e está a passar.
Primeiro, No Brasil de hoje os escândalos de corrupção entrelaçam-se uns nos
outros, envolvem cada vez mais políticos e cercam o PT, o lendário e impoluto
PT. O partido de Lula é o hoje o partido do “mensalão” e do “petrolão”. Há
gente de outros partidos envolvida, mas é sempre o PT que está no centro das
investigações. E que tem o seu tesoureiro acusado. E o pior é que a própria
Dilma esteve muitos anos na Petrobrás.
Depois, Dilma
mentiu para vencer as eleições. Mentiu sabendo que estava a mentir, pois
prometeu o que sabia que não podia cumprir. A economia brasileira está à beira
da recessão, a inflação é de novo uma ameaça e a queda dos preços do petróleo
secou o mealheiro do Governo. Dilma sabia tão bem que a economia estava mal que
uma das suas primeiras escolhas depois de reeleita foi ir buscar um ministro da
Fazenda, Joaquim Levy, que em qualquer outro lugar do mundo seria atacado como
um “perigoso neoliberal” – até porque o é de facto, se seguirmos a cartilha da
moda e olharmos para o seu currículo no FMI e no sector financeiro. Com ele não
vêm as promessas de campanha, vêm aqueles cortes orçamentais a que costumamos chamar
“austeridade”.
Este cocktail de
corrupção e logro é explosivo. Respira-se no ar das ruas de qualquer cidade
brasileira. Talvez Dilma se aguente, talvez não haja impeachment como
houve com Collor de Melo, talvez o PT resista – mas o que não sobrou foi
qualquer ilusão. Chegados ao poder, os “puros” foram tão impuros como os
outros. E quando o dinheiro se acabou, os milagreiros foram a correr pedir
ajuda aos piores inimigos, os neoliberais. Já não há heróis.
A desilusão
brasileira é, contudo, apenas a mais recente desilusão das esquerdas
eternamente românticas. Aqui pela Europa, nos últimos anos, a sua primeira
grande desilusão chamou-se François Hollande. Mal chegou ao Eliseu e se
confrontou com a realidade, o socialista esqueceu-se de todas as promessas
eleitorais e começou a tratar de fazer – mas enfrentando enormes resistências
–, as reformas que tinha prometido combater.
O homem que ia fazer frente a Merkel sucumbiu logo nos primeiros embates e a desordem criada na paisagem política francesa é hoje tal que o impensável – uma vitória da Frente Nacional – até já aconteceu, se bem que ainda só numas eleições europeias.
O homem que ia fazer frente a Merkel sucumbiu logo nos primeiros embates e a desordem criada na paisagem política francesa é hoje tal que o impensável – uma vitória da Frente Nacional – até já aconteceu, se bem que ainda só numas eleições europeias.
Mas Hollande, dirão os nossos românticos, não era senão “um frouxo”, um típico produto dos partidos socialistas e sociais-democratas que são cúmplices do “neoliberalismo” e demasiado acomodados para transportarem qualquer ousadia de esperança. Havia que encontrar um novo messias, e ele logo surgiu sob a forma de um jovem deus grego, Alexis Tzipras, e do seu Syriza. A sua vitória, garantiam-nos, ir mudar a Europa e “acabar com a austeridade”.
50 dias depois o
balanço é quase trágico.
A pouca confiança
que havia entre a Grécia e os seus credores desapareceu por completo. Por troca
com algumas variações semânticas, o governo do Syriza já começou a
comprometer-se na Europa com medidas que nem teve coragem de colocar à
discussão e votação no Parlamento onde tem a maioria.
Agora já se fala
abertamente de “suspender ou atrasar a implementação das
promessas [eleitorais]”, e todos sabemos como isso pode ser apenas um eufemismo face ao que
vai mesmo acontecer. Pior: em poucas semanas o mal feito à economia grega é já
enorme, pelo que a recuperação iniciada em 2014 deve estar comprometida. Isto
se tudo não acabar de forma ainda mais dolorosa no curto prazo, com uma saída
caótica do euro.
A cereja em cima
deste bolo de confusões e feiras de vaidades foi a sessão fotográfica do Paris
Match em casa de um cada vez mais narcísico Varoufakis. A França já conhecia a
sua “gauche caviar”, nós tínhamos a nossa “esquerda Lux”, chegou a vez de os
gregos conheceram a variedade “esquerda branco de Santorini”, ou “cachecol
Burberry”, dos seus líderes radicais. E o pior é que tudo isto não é encenação
ou bluff, é mesmo para levar a sério. O que faz com que a desilusão, na sua
variante grega, tenha mais a forma do susto – susto de que nos arrastem para o
abismo. Mas não deixa por isso de ser desilusão.
Sobrava, mesmo
assim, o Podemos, a encarnação por excelência do “movimento de cidadãos”,
nascido das “bases”, erguido a partir dos “indignados” sem partido e sem
interesses. É certo que boa parte da popularidade do líder, Pabro Iglésias, lhe
vinha se ser um dos “marcelos” das televisões espanholas, mas isso era um
detalhe. Afinal ele, com o seu rabo-de-cavalo e a roupa comprada na modesta
Zara, era o mais próximo que se arranjava da figura mítica do “descamisado”, e
o seu movimento parecia ter a espontaneidade dos que se indignavam genuinamente
com “la casta”, a elite dirigente espanhola.
Até que se soube
das ligações venezuelanas. Do dinheiro que o número três do Podemos, Juan
Carlos Monedero, tinha trazido de Caracas e escondido do fisco. E de como o
regime chavista alimentou anos a fio uma ONG de que o próprio Iglésias fora
também dirigente.
Num país em estado
de choque com o nunca mais acabar de casos de corrupção que minaram a credibilidade
dos seus grandes partidos – o PP, o PSOE, também a CiU da Catalunha – o golpe
está a revelar-se duro e a abrir caminho a um outro movimento, Ciudadanos, mais
moderado e mais centrista. A luz de Pablo Iglésias começa a esmorecer, o
estatuto de “pureza virginal” do Podemos, essa força política sem “pecado
original”, começa a desaparecer. Pelo que o Podemos pode ser a desilusão que
nem chegou a ser uma verdadeira ilusão.
Sendo todas estas
histórias muito diferentes, e representando estas forças políticas tradições
muito distintas na história da esquerda (da antiga e da moderna), a verdade é
que há um fio que as une. E esse fio é o do radical divórcio entre o desejo de
manter vivas as utopias que faziam sonhar as esquerdas do século XX – e que
fizeram com que muitas delas, as mais radicais, se revelassem não apenas uma
enorme ilusão, como uma tragédia para os povos que as conheceram no poder –, e
o mundo do século XXI.
Os sonhadores (ou
os oportunistas) que se julgavam sempre do lado da História e se imaginaram
sempre como detentores de uma inquestionável superioridade moral, vêm-se agora
em contrapé. E o drama (a desorientação?) atinge também a esquerda moderada.
É que se houve uma
esquerda que ajudou a salvar o capitalismo dos seus excessos muito contribuindo
para os nossos Estados Providência, aquilo de que hoje mais precisamos é de
quem nos ajude a salvar esse mesmo Estado Providência dos excessos de uma
esquerda que ainda não parece ter percebido que 2015 não é 1965 e ainda menos
1917.
Se não o entender,
se continuar a vender ilusões e a fazer promessas (ou apenas a tentar não se
comprometer), a esquerda romântica, tal como a esquerda que quer governar, não
sofrerá apenas desilusão atrás de desilusão – pode também, pelo efeito da
negação das expectativas criadas, reavivar as brasas dos extremismos que nunca
verdadeiramente se extinguiram nos subterrâneos das nossas sociedades. Em parte
já estamos a ver isso suceder.
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