Publicado em outubro 22, 2015 por Redação
“A primeira coisa que precisa acontecer para resolver a crise hídrica é um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos, assumir a responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas”, diz o membro da Executiva Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela Água.
Foto: EcoDebate |
De acordo com Poço, o relatório reuniu uma série de informações sobre a crise hídrica e foi entregue à Relatoria da ONU, a fim de dar repercussão internacional à questão. “O mecanismo da ONU permite que o relator, após receber essas denúncias, envie o documento intitulado ‘carta de alegações’ para o governo, requerendo informações sobre o que vem acontecendo e questionando quais medidas estão sendo adotadas com relação a essas violações. Esperamos que com isso consigamos mais uma força para, primeiro, dar visibilidade à crise hídrica e, segundo, para que possamos superar essa questão e, por fim, responsabilizar quem precisa ser responsabilizado pela situação”, explica à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
De acordo com Poço, do ponto de vista do planejamento, observou-se que o governo paulista “ignorou diversos materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos e da sociedade civil, que há mais de 10 anos estão alertando para a possibilidade de essa crise acontecer. São documentos desde a outorga do Sistema Cantareira, que já previam a diminuição da dependência do sistema, documentos sobre a questão hidrológica e climática, que poderia ter essa alteração”. Ele informa ainda que o “relatório mostra que os problemas gerados pela gestão de abastecimento vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil apontar o momento em que isso virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que a combinação de uma gestão equivocada, de uma falta de planejamento que considerasse inclusive os relatórios técnicos e as alterações climáticas, culminou na crise que existe hoje”.
Rafael Poço é membro da Executiva Nacional da Rede Sustentabilidade e da Aliança pela Água, uma coalizão da sociedade civil para contribuir com a construção de segurança hídrica em São Paulo.
Confira a entrevista.
Foto: outraspalavras.net |
Rafael Poço – A produção do relatório é fruto de um compromisso assumido entre a Aliança pela Água e oColetivo de Luta pela Água com o relator da ONU[Organização das Nações Unidas] sobre Água e Saneamento,Léo Heller.
No mês de abril deste ano fizemos uma reunião com ele e nos comprometemos a elaborar um relatório que organizasse ou sistematizasse algumas das possíveis violações a direitos humanos que estão acontecendo no estado de São Paulo neste período de enfrentamento da crise hídrica. A crise não acabou e as violações seguem acontecendo, portanto o relatório será permanentemente atualizado para acompanhar o que vem acontecendo aqui.
O relatório foi dividido de modo a apontar as violações relacionadas à falta de planejamento que levou a crise a ter a proporção que teve; as violações relacionadas a medidas de enfrentamento da crise, ou seja, medidas que foram adotadas no sentido de tentar dar respostas à crise; e as violações dos impactos das obras e outras ações adotadas pelo governo estadual para tentar resolver a crise.
IHU On-Line – Quais foram os principais direitos violados?
Rafael Poço – A relatoria da ONU estabelece alguns princípios, e a água e o saneamento são compreendidos como direitos, ou seja, as pessoas têm direitos à disponibilidade e acessibilidade à água. Então, do ponto de vista de planejamento, observamos que o governo do estado de São Paulo ignorou diversos materiais, inclusive documentos oficiais de técnicos e da sociedade civil, que há mais de 10 anos estão alertando para a possibilidade de essa crise acontecer.
São documentos desde a outorga do Sistema Cantareira, que já previam a diminuição da dependência do sistema, documentos sobre a questão hidrológica e climática, de que poderia haver essa alteração.
Com relação às medidas adotadas durante a crise, observaram-se os cortes de água não informados e negados, inclusive, pelo governo, que afetaram diretamente a dignidade da pessoa humana, fazendo com que as pessoas não tivessem nenhuma previsibilidade que permitisse que elas se organizassem e se preparassem para enfrentar a crise, para garantir higiene pessoal e necessidades básicas. Estamos pautando essa questão como uma violação do próprio acesso à água e ao saneamento, uma vez que as pessoas ficaram sem acesso à água.
Além disso, denunciamos as formas como novos contratos de venda de água foram feitos, com o governo de um lado negando a criticidade da situação, negando a própria crise e, de outro lado, fazendo contratações e fechandocontratos emergenciais com base no argumento da urgência; portanto, flexibilizando a legislação para contratações, flexibilizando legislação de licitações, que trouxeram prejuízos para a população em geral.
Na última semana fomos informados de que havia uma ação do Ministério Público contra a obra de transposição da Bile, no sistema Alto Tietê, porque durante o teste da obra aconteceu o que avisávamos que aconteceria: houve umassoreamento do rio.
“A crise não acabou e as violações seguem acontecendo” |
Rafael Poço – O relatório mostra que os problemas gerados pela gestão de abastecimento vêm ocorrendo desde 2003, mas é muito difícil apontar o momento em que isso virou uma grande crise. Mas 2013 foi o ano em que a combinação de uma gestão equivocada, de uma falta de planejamento que considerasse inclusive os relatórios técnicos e as alterações climáticas, culminou na crise que existe hoje. A partir de 2013 a crise começou a ter uma proporção muito maior e com efeitos mais agudos na vida da população. Nesse momento, inclusive, começaram os cortes sistemáticos de uma forma mais generalizada, digamos assim. Primeiro foram feitos cortes nas regiões mais vulneráveis e mais pobres, na periferia em geral e, depois, foram feitos cortes e redução de pressão da água em toda a cidade de São Paulo.
Seria equivocado apontarmos o momento do início da crise, mas ela de fato se inicia quando já não são adotadas as medidas que a previnem, mas podemos dizer que a partir de 2013 ela entrou nessa gravidade inédita na história e aí o governo se viu nessa situação de negação da crise. Foi isso o que nos colocou à beira de um colapso, do qual ainda não saímos.
Entendemos que a negação da crise, ou seja, negar a gravidade de um problema, leva em primeiro lugar a uma inação, uma imobilização no enfrentamento e na busca por alternativas, e é isso que o governo segue fazendo. Isso torna tanto a população quanto os órgãos governamentais muito amarrados para conseguir buscar soluções maduras e coletivas para enfrentar a crise.
IHU On-Line – Quais são motivos que levaram o governo a negar e depois tratar essa crise sem dar a devida gravidade?
Rafael Poço – Há uma combinação de dois fatores. Um deles é uma gestão equivocada, que é o principal fator, ou seja, há uma visão em relação aos recursos hídricos que é ultrapassada e equivocada, que lida apenas com a gestão da oferta. Ou seja, pensa-se em aumentar a oferta, sempre buscando água em locais mais distantes, com um custo maior, com maiores danos ambientais, com maior prejuízo a outras regiões. Acredito que esse é o aspecto mais chocante, ou seja, o governo segue um modelo de gestão segundo o qual os recursos naturais são vistos como algo quase sem fim.
Trata-se de um modelo de gestão que não consegue se preparar para imprevistos porque tem uma visão ingênua em relação aos recursos, como se eles fossem algo infinito. Essa visão leva a uma gestão que não se prepara para o que está cada vez mais recorrente no mundo inteiro, que são as mudanças climáticas, as alterações de ciclo hidrológico e o aumento de consumo de água natural devido ao aumento populacional.
Então, tentando resumir, esses dois fatores ocorrem um em decorrência do outro. Trata-se de um modelo que lida com os recursos naturais de forma insustentável e, a partir dele, se constitui uma gestão que é baseada nessa visão que não busca alternativas.
IHU On-Line – Qual foi a recepção do relatório?
Rafael Poço – Do ponto de vista da sociedade foi visto como algo muito relevante e fundamental para o processo que estamos vivendo, porque acionar o mecanismo internacional, ou seja, a relatoria da ONU, é uma alternativa para conseguirmos, ao menos, ter mais transparência para dar visibilidade para o que vem acontecendo em São Paulo.
Não recebemos reações do governo do estado em relação ao documento que foi endereçado à relatoria da ONU. Esse documento tem o caráter de organizar as informações que já estão disponíveis, que já estão presentes em outros documentos, e direcioná-las para a relatoria da ONU com a finalidade de buscar mecanismos da ONU para dar abrangência internacional e nacional para a crise hídrica que ocorre no estado de São Paulo.
O mecanismo da ONU permite que o relator, após receber essas denúncias, envie o documento intitulado “carta de alegações” para o governo, requerendo informações sobre o que vem acontecendo e questionando quais medidas estão sendo adotadas com relação a essas violações. Esperamos que com isso consigamos mais uma força para, primeiro, dar visibilidade à crise hídrica e, segundo, para que possamos superar essa questão e, por fim, responsabilizar quem precisa ser responsabilizado pela situação.
IHU On-Line – Qual é a expectativa de a ONU confirmar as violações de direitos humanos na gestão dos recursos hídricos do estado de São Paulo? Como se dará esse processo?
Rafael Poço – O próximo passo agora, segundo o relator Léo Heller – que participou do evento que fizemos de lançamento do relatório –, é elaborar uma carta de adequações que tem a finalidade de colher o máximo possível de informações. Depois há outros mecanismos, como de tentar constranger o país ou o estado a tomar providências e até ser responsabilizado.
“O governo segue um modelo de gestão segundo o qual os recursos naturais são vistos como algo quase sem fim” |
Rafael Poço – O primeiro aspecto é que qualquer crise precisa ser tratada com transparência, de maneira responsável e madura. Antes do aspecto técnico, de como se resolve isso tecnicamente, se se trata de trazer mais água de outros mananciais ou fazer novas obras para dar conta do abastecimento, a questão central é trabalhar com transparência, com maturidade e responsabilidade, ou seja, primeiro vamos encarar o problema.
Portanto, a primeira coisa que precisa acontecer é um gesto do governo de reconhecer a situação em que estamos, assumir a responsabilidade sobre medidas que não foram tomadas. Isso passa, primeiro, por dar mais informações para a sociedade; segundo, pela redução do consumo; terceiro, fazer exigências à Sabesp, que é a principal empresa do estado responsável pelo abastecimento de centenas de cidades, e à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – Arsesp, que é agência reguladora, para que elas assumam uma postura que cumpra as suas finalidades.
Depois disso, é preciso visualizar as condições para a adoção de um novo modelo e, a partir daí, poderemos discutir qual é o melhor modelo de abastecimento a adotar, como lidaremos com o número crescente da população e, portanto, do consumo, que relação queremos ter com os mananciais, ou seja, todas essas questões precisam estar envolvidas. Não é uma solução simples, de engenharia ou tecnológica apenas, é uma combinação de fatores: precisamos recuperar as áreas de manancial, respeitar as políticas que já existem e não são cumpridas, recuperar e preservar os mananciais, reduzir o consumo, estimular a redução de perdas de água na transmissão – em São Paulo a perda é de aproximadamente 30%.
A Aliança pela Água tem proposto que precisamos de uma nova cultura de cuidado com a água, com os recursos hídricos, que irá passar por diversas questões: a maneira como se cuida e se preserva, a maneira como se obtém a água.
Por Patricia Fachin
(EcoDebate, 22/10/2015) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário da revista eletrônica EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta enviar um email para newsletter_ecodebate+subscribe@googlegroups.com . O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário