Matheus Boni Bittencourt *
Congresso em foco.
Algumas notícias recentes sobre as medidas de segurança anunciam uma forte tendência à escalada autoritária e militarização da relação entre Estado e sociedade civil, sem que para isso tenha sido necessário um golpe de Estado.
O estado de exceção, antes aberto com golpes de ilegalidade, agora se incorpora mais intimamente à normalidade, tornando a exceção, de fato, uma regra. As medidas em nome da segurança ameaçam flexibilizar direitos civis, que já são regularmente violados pela intensa discriminação praticada por órgãos de segurança pública, sistema judiciário e pelo mercado.
Desde Cesare Beccaria, as tendências minimamente saudáveis do Direito Penal moderno apontam para a limitação e contrapeso ao poder punitivo do Estado, nem sempre de maneira coerente. Essas tendências se opõem ao argumento de que a defesa do Estado requer um poder absoluto permanente, orientado para a repulsão de ameaças internas e externas.
Ora, se o governo deve repousar sobre o apoio ativo do povo, como poderia identificar no povo um inimigo? Na democracia não existem inimigos internos. O cidadão é tratado de forma igualitária perante a lei, e é inocente de qualquer crime até que se prove o contrário. Se comprovada a sua culpa pessoal em uma ação criminosa, deve ser punido como manda a lei, mas não deixa de ser cidadão, nem se torna inimigo do Estado.
Ao incorrer numa expansão do poder punitivo e restrição seletiva e permanente de direitos, o governante está abandonando a lógica democrática, e se apoiando numa lógica inquisitorial e militar. É no sentido preciso de estabelecer uma relação militar com a sociedade civil, pautada pela lógica binária que vê apenas subordinados ou inimigos, que um governante está promovendo a militarização interna do Estado. Surge o “inimigo interno”.
Temos um exemplo de país que segue um extremo militarismo externo, mas o rejeita no plano interno: Estados Unidos da América. Este país que não emprega suas forças militares para o policiamento civil é um dos que mais pressionam e apoiam o militarismo interno em outros países.
As consequências esperadas são bastante conhecidas: transformação de ativistas, sindicalistas, sacerdotes, escritores, camponeses, artistas e professores que não são vistos com bons olhos pelo governo em “inimigos internos”, ou seja, alvos militares; a priorização da “contra-insurgência” em detrimento da defesa da integridade territorial (o que na prática pode deixar o país mais vulnerável externamente); alianças grotescas entre militares e “empresariado” (via de regra ligado a interesses do capital estrangeiro) para subjugar e reprimir o próprio povo; agravamento da violência policial, estimulada pela moldagem das forças policiais como forças de guerra; militarização de todas as questões relativas a segurança, do policiamento à defesa civil, passando pela aviação civil e comercial, Marinha mercante, sistema penitenciário e relações trabalhistas.
Os Estados Unidos possuem cerca de 800 bases militares espalhadas pelo mundo, um sistema de espionagem de internet e telefones em escala global e no mínimo 72 mil militares de forças especiais distribuídos por 132 países, realizando “operações secretas” em conjunto com grupos governantes ou opositores, de acordo com o contexto em cada país.
Na América Latina são 36 bases militares estadunidenses, 25 delas em torno do Brasil, complementadas pela base britânica nas Ilhas Malvinas, a IV Frota da Marinha estadunidense focada no Atlântico Sul, e sabem-se lá quantas “operações secretas” de forças especiais de combate ou espionagem.
Todos esses canhões estão apontados para nós, por um Estado que sabidamente atacou um outro país a cada dois anos no século 20, depois de se expandir para o Sul e Leste, às custas da República do México e de povos originários, por sinal exterminados no processo expansionista.
Esse país usou uma rede subterrânea de conspirações e espionagem para apoiar opositores golpistas e governantes ditatoriais, de acordo com a ocasião, chegando a ameaçar o Brasil de invasão direta em 1964, em apoio aos militares e empresários golpistas, aliados de Washington, caso o presidente eleito João Goulart resistisse à rebelião de oficiais vende-pátrias.
Graças ao ex-espião Edward Snowden, agora é público e oficial que há uma invasão da privacidade de milhões de brasileiros, através da espionagem dos computadores e telefones pela NSA (National Security Agency).
Enquanto esse cinturão de militar estruturado aponta sua armas para nós, no pior tipo de “diplomacia do canhão”, os “altos círculos da República” acham que a verdadeira ameaça ao país são mobilizações populares eventualmente atrapalharem os negócios privados da Fifa e seus sócios na realização da Copa do Mundo. Um documento do Ministério da Defesa, expressão das preocupações destes “altos círculos”, qualifica as organizações e movimentos populares como “forças oponentes”, fazendo coro a uma longa tradição que já os associou a “banditismo”, “subversão”, “terrorismo”, “vandalismo”, “arruaça” e “baderna”, definindo-os como “caso de polícia”, ou mesmo como “inimigo interno”.
Esse não é o primeiro ato que aponta para o recrudescimento autoritário e aprofundamento do estado de exceção que já se encontra em prática nas prisões, periferias urbanas e grotões rurais.
Anteriormente, ministros dos Esportes e da Justiça sugeriram que sejam instalados tribunais de exceção para a realização da Copa do Mundo. Segundo o governo federal, um efetivo de 10 mil policiais e bombeiros militares da Força Nacional da Segurança Pública serão treinados como “tropa de choque” para repressão de protestos e manifestações. Para completar a ação do aparelho repressivo, um forte incremento na espionagem eletrônica interna, como a possibilidade de a Polícia Federal requisitar dados cadastrais sem ordem judicial.
No Congresso Nacional, tramitam projetos de lei que tipificam o crime de “terrorismo”, em substituição à Lei de Segurança Nacional de 1984, mais um entre muitos resquícios da ditadura civil-militar. O conteúdo dessas proposições legislativas promete nos deixar com saudades da LSN/1984, caso seja aprovado qualquer um deles. Resumidamente, as propostas declaram definir o terrorismo… mas não definem o terrorismo. Ao invés disso, dão uma carta branca para a repressão policial e judicial a todo e qualquer movimento reivindicatório, de acordo com a vontade das autoridades políticas e judiciárias.
Há versões que estabelecem a legislação anti(?)terrorismo apenas durante a Copa do Mundo e Olimpíadas, ou para todo sempre, sempre estabelecendo penas de 15 a 30 anos para qualquer ação que se considere ter um conteúdo político ou uma “intenção” de “provocar terror ou pânico generalizado”.
Ainda que seu conteúdo seja obviamente inconstitucional, tais projetos tem tramitado, provocado polêmica aqui e ali, e corremos o risco de ter a Carta Magna e a Declaração Universal dos Direitos Humanos oficialmente rasgados e pisoteados pelo Congresso Nacional.
Estamos falando de repressão política explícita, é claro. Por mais que os porta-vozes e asseclas dos “altos círculos da República” digam que não foi muito bem o que eles queriam dizer, e que não é nem muito aqui, nem ali, nem lá, nem cá, sempre muito pelo contrário, a enrolação retórica não modifica a realidade inequívoca dos fatos.
A criminalização de movimentos sociais não começará com essas medidas. É uma realidade que vem acontecendo há décadas, de modo mais ou menos aberto, a depender da conjuntura. O que esses instrumentos prometem é radicalizar o processo, o que não deixará de provocar contrarreação, o que pode nos levar a um círculo vicioso e cada vez mais violento. Será que é esse o propósito dos governantes?
A militarização da segurança pública é velha conhecida dos brasileiros. A ditadura civil-militar deu-lhe um enorme reforço e aprofundamento, com a criação das Polícias Militares da forma que nós as conhecemos hoje, além do estabelecimento da presença militar em diversas áreas civis, além do policiamento ostensivo.
A organização dos órgãos de segurança pública, herdada do antigo regime, foi mantida intocada, e, em alguns aspectos, reforçadas durante o regime (semi)democrático, através de campanhas de “lei e ordem” que incluíram desde a adoção de métodos militares para a administração da segurança pública até o emprego direto das Forças Armadas em operações policiais.
As Unidades de Polícia Pacificadora são um exemplo paradigmático, mas não único, dessa remilitarização. Outro processo, mais nos bastidores, ocorre com a militarização dos serviços secretos, incluindo casos e mais casos de espionagem política de opositores e ativistas, nunca explicados por inteiro, e muito menos punidos.
Acima de tudo, permanecem estrutura de códigos formais e valores culturais que endossam o militarismo. Contribui para esse militarismo interno a campanha permanente contra os direitos humanos, muito presente na televisão, rádio e imprensa, mais ou menos articulados com atores da sociedade civil e das próprias forças policiais e militares.
A impunidade completa dos crimes de tortura e genocídio do regime ditatorial, garantida por decisão do Supremo Tribunal Federal, é outra prática de reprodução da mentalidade autoritária e militarista. Para além dos aspectos organizacionais da segurança pública (disciplina, hierarquia, treinamento, legislação), existe essa dimensão cultural contribuindo para legitimar verdadeiras operações de guerra nas periferias urbanas e em áreas de projetos econômicos (Copa, hidrelétricas etc).
É preciso lembrar que não tivemos uma transição democrática, mas antes uma negociação entre lideranças e opositores da ditadura sob intensa pressão popular antiautoritária e anticapitalista, que teve como resultado um regime híbrido de democracia capitalista e capitalismo autoritário, semidemocrático e semi-autoritário, onde o regime de exceção é latente.
A atuação dos órgãos de segurança pública e penitenciários são onde a continuidade é mais evidente e sentida cotidianamente pelas classes populares e grupos discriminados. O que temos diante de nós não é um retorno da ditadura e militarismo depois de um intervalo democrático. É a expansão e aprofundamento de uma continuidade entre o regime ditatorial-militar e o regime liberal-democrático.
Das “classes perigosas” espelhadas no perfil da população carcerária, temos agora esse poder punitivo militarizado avançando sobre a contestação política do status quo. E isso no momento em que o grito pela desmilitarização dos órgãos de segurança pública e da política em geral toma as ruas. Se já convivemos com a militarização da segurança pública, o que essas medidas evidenciam é a ameaça real e cada vez mais forte de uma militarização da governabilidade. Mais que nunca, é preciso desmilitarizar a polícia e a política, antes que o país inteiro se reduza a um campo de batalha.
* Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
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