Um artigo
do escritor e ex-presidente do IBGE Eurico Borba publicado hoje no
GLOBO toca com coragem em um assunto extremamente delicado: o voto dos
analfabetos. Merece aplausos por não temer trazer o tema à baila, em uma
época de profunda demagogia em que a voz do “povo” é vista como verdade
universal e qualquer consideração passa a ser “preconceito”. Diz ele
sobre o voto qualificado:
Há
50 anos não tive dúvidas em me alinhar àqueles que propugnavam pelo
direito de votar e de ser votado para toda a população,
independentemente do seu nível educacional — era o direito do voto para
os analfabetos. Hoje sou levado a rever minha certeza da juventude e
propor que os eleitores tenham, pelo menos, o equivalente ao atual
ensino médio para participar de eleições nacionais. Assumo essa posição
por um simples motivo: o povo sem formação acadêmica mínima, que lhe
permita exercer um pensamento crítico estruturado, neste mundo cada vez
mais interdependente e complicado, passa a ser presa fácil dos
marqueteiros, a serviço do poder econômico e político, que utilizam
eficientes técnicas de propaganda, com base no que se conhece da
psicologia social e da sociologia, impondo ao povo desprotegido formas
de pensar transitórias, vendendo desde sabonetes até candidatos. Por
isso, muitos partidos e políticos mentem, roubam e recebem propinas.
Assim procedendo, aparentemente, o ritual democrático é atendido, mas o
erro moral se instala, corrompendo a liberdade e a justiça. Os
escândalos políticos no Brasil, que nos envergonham e entristecem, são
fruto de ações políticas muitas vezes legais, mas evidentemente
ilegítimas.
Deixando a demagogia de lado, não é
difícil entender que ele tem um ponto. Para vários concursos e cargos é
exigido determinado nível de escolaridade. Por que na hora de escolher
nossos representantes isso seria ignorado? Não é algo importante? E não
se pressupõe que algum nível de alfabetização é fundamental para se ter
acesso às informações relevantes na hora dessa importante escolha?
Claro que alfabetização não é sinônimo de
sabedoria, ou garantia de conhecimento político. Também é verdade que
muitos universitários podem defender barbaridades políticas em nome de
ideologias, e mesmo doutores aplaudem tiranias por aí. Não é à toa que
dediquei um livro todo a essa gente.
Mas claro que a tendência é o eleitor ser
mais exigente à medida que possui mais escolaridade. Terá mais
capacidade para compreender o que está em jogo nos debates, e não será
facilmente presa dos oportunistas de plantão, que exploram a ignorância e
a miséria alheias. Os demagogos adoram o analfabetismo, pois encontram
nele um curral eleitoral para explorar.
Escrevi há alguns anos um artigo com base
nos pensamentos de Hayek, Prêmio Nobel de Economia, justamente sobre o
“dogmatismo democrático”, que lança luz sobre essa importante questão.
Segue:
O culto à democracia
“Se a
democracia é um meio para preservar a liberdade, então a liberdade
individual é não menos uma condição essencial para o funcionamento da
democracia.” (Hayek)
Atualmente,
existe uma espécie de “culto à democracia”, entendida aqui como
simplesmente o governo da maioria. Assume-se automaticamente que a
maioria tem direito de decidir sobre tudo, incluindo temas
totalmente restritos à esfera individual. Nesse contexto, vale a pena
resgatar o que Friedrich Hayek tinha a dizer sobre o tema. Em sua obra
clássica The Constitution of Liberty, ele dedica um capítulo ao assunto, explicando os riscos da democracia e lembrando que ela é apenas um meio para se obter determinados fins.
O
liberalismo, segundo Hayek, está preocupado basicamente em limitar o
poder coercitivo de qualquer governo, seja ele democrático ou não. Por
outro lado, o democrata dogmático reconhece apenas um limite aos poderes
do governo: a opinião atual da maioria. Hayek repete o que Aristóteles
já havia dito: que a democracia pode resultar em poderes totalitários. O
liberalismo é uma doutrina sobre o que a lei deveria ser,
enquanto a democracia é uma doutrina sobre a forma de determinar o que a
lei será. Enquanto o liberalismo prega a isonomia das leis, i.e., a
igualdade de todos perante das leis, a democracia é um meio para se
tentar alcançar tal finalidade.
Naturalmente,
esse meio pode falhar. Uma democracia pode facilmente criar inúmeras
leis injustas e ineficientes, concedendo privilégios e, portanto,
discriminando grupos. Mas, para o democrata dogmático, o fato de que a
maioria deseja algo é motivo suficiente para considerar este algo
desejável. Para ele, o desejo da maioria determina não apenas o que será
a lei, mas o que será uma boa lei. Se o liberalismo se preocupa com o
escopo e o propósito do governo, a democracia, por outro lado, nada tem a
dizer sobre as metas do governo em si. O liberalismo defende
princípios, enquanto a democracia oferece um método de escolha, que pode
ou não respeitar tais princípios.
O uso
indiscriminado do termo “democrático” representa muitas vezes um perigo à
própria liberdade individual. Essa falácia parte da premissa de que,
porque a democracia é uma coisa boa, então ela deve beneficiar a
humanidade sempre que for estendida. Trata-se de um non sequitur.
Como Hayek diz, existem pelo menos dois aspectos que podem servir para
estender a democracia: o tamanho do grupo encarregado de votar e os
temas que devem ser decididos pelo processo democrático. Em nenhum dos
dois aspectos é possível concluir que todo avanço na extensão da
democracia representa um ganho, ou que seria desejável estender
indefinidamente a democracia. No entanto, na maioria dos debates sobre
todo tema particular, o caso pela democracia é freqüentemente
apresentado como desejável.
Hayek cita o
próprio conceito de “sufrágio universal” para mostrar que há limites
arbitrários na democracia. O limite de idade é o mais óbvio. Assume-se
que há certa idade em que ainda não existe maturidade suficiente para
decidir sobre as coisas públicas. Ninguém razoável poderia defender o
método democrático para as escolhas de uma família com três filhos, por
exemplo. No entanto, existem outros limites, como criminosos, residentes
estrangeiros, etc.
Hayek
argumenta, então, que diferentes limites seriam igualmente arbitrários
caso fossem adotados. Por exemplo, o voto apenas de adultos com mais de
40 anos, ou somente os que possuem renda, ou apenas os alfabetizados.
Para Hayek, seria possível argumentar também que os ideais da democracia
estariam melhor servidos se os funcionários do governo fossem excluídos
do voto. Em resumo, o fato de que o sufrágio universal de “adultos” (no
caso brasileiro, jovens de 16 anos inimputáveis por crimes podem votar)
prevaleceu na maioria dos países não prova que essa deve ser a regra
com base em algum princípio básico.
Outro ponto
levantado por Hayek é o próprio limite arbitrário de nação. O direito da
maioria é normalmente reconhecido somente dentro de um determinado
país, mas o que define um país nem sempre é uma unidade óbvia ou
natural. Certamente ninguém considera um direito dos cidadãos de um país
grande dominar aqueles de um país vizinho menor, somente porque estão
em maior número. No entanto, muitos assumem que dentro de um país os
direitos da maioria são absolutos, o que carece de argumentação lógica. A
democracia não é um valor absoluto. Os poderes de uma maioria
temporária devem ser limitados por princípios de longo prazo, justamente
para evitar a tirania da maioria. Apenas a aceitação desses princípios
comuns torna um grupo de pessoas uma comunidade livre.
Para o liberal, existem coisas que ninguém tem
o direito de fazer, seja um rei, seja uma maioria democrática. Conforme
alerta Hayek, é quando se aceita que “na democracia o certo é aquilo
que a maioria decide”, que a democracia degenera em uma demagogia. De
fato, a democracia é o método mais pacífico para mudar governos que
existe.
Mas isso, sob hipótese alguma, quer dizer que as escolhas da
maioria serão sempre certas. Hayek destaca o importante papel da
democracia, de educar as massas ao longo do tempo, justamente porque
todos acabam participando do processo de formação de opinião. Esse
processo dinâmico é que garante o valor da democracia, não seu aspecto
estático, ou seja, a escolha pontual dos governantes. Seus benefícios,
portanto, costumam aparecer somente no longo prazo, enquanto suas
conquistas imediatas podem ser inferiores a de outras formas de governo.
A ditadura
do “politicamente correto” é outro risco do “culto à democracia”. A
concepção de que a opinião da maioria deve ditar os padrões seguidos por
todos representa o oposto do princípio que permitiu o avanço da
civilização. O avanço, como afirma Hayek, consiste em poucos convencendo
muitos. Novas visões devem antes surgir para depois se tornarem visões
majoritárias. Como ninguém sabe quem será o mais apto a moldar novas
visões, deixamos o processo de decisão aberto, sem controle da maioria. É
pela conduta diferente de uma minoria que a maioria pode
aprender algo novo e melhorar. A ditadura da visão majoritária, por
outro lado, assume uma postura estática, como se todo o conhecimento
necessário para o avanço futuro estivesse disponível. Isso acaba
destruindo a capacidade de evolução da civilização.
Por fim, não
é uma postura “antidemocrática” tentar convencer a maioria de que
existem limites que não devem ser ultrapassados pela própria democracia.
Para a sua sobrevivência mesmo, a democracia deve reconhecer que não é a
fonte da justiça. O perigo, como coloca Hayek, é quando confundimos um
meio de garantir a justiça com a própria justiça em si. Por essa ótica,
dois lobos e uma ovelha escolhendo democraticamente qual será o jantar
levaria a um resultado totalmente justo. O liberal discorda, pois
entende que a ovelha tem o direito de não virar janta de lobo, independente do que deseja a maioria do momento.
Rodrigo Constantino
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