terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Os analfabetos deveriam votar?



eleitor analfabeto
Um artigo do escritor e ex-presidente do IBGE Eurico Borba publicado hoje no GLOBO toca com coragem em um assunto extremamente delicado: o voto dos analfabetos. Merece aplausos por não temer trazer o tema à baila, em uma época de profunda demagogia em que a voz do “povo” é vista como verdade universal e qualquer consideração passa a ser “preconceito”. Diz ele sobre o voto qualificado:


Há 50 anos não tive dúvidas em me alinhar àqueles que propugnavam pelo direito de votar e de ser votado para toda a população, independentemente do seu nível educacional — era o direito do voto para os analfabetos. Hoje sou levado a rever minha certeza da juventude e propor que os eleitores tenham, pelo menos, o equivalente ao atual ensino médio para participar de eleições nacionais. Assumo essa posição por um simples motivo: o povo sem formação acadêmica mínima, que lhe permita exercer um pensamento crítico estruturado, neste mundo cada vez mais interdependente e complicado, passa a ser presa fácil dos marqueteiros, a serviço do poder econômico e político, que utilizam eficientes técnicas de propaganda, com base no que se conhece da psicologia social e da sociologia, impondo ao povo desprotegido formas de pensar transitórias, vendendo desde sabonetes até candidatos. Por isso, muitos partidos e políticos mentem, roubam e recebem propinas. Assim procedendo, aparentemente, o ritual democrático é atendido, mas o erro moral se instala, corrompendo a liberdade e a justiça. Os escândalos políticos no Brasil, que nos envergonham e entristecem, são fruto de ações políticas muitas vezes legais, mas evidentemente ilegítimas.



Deixando a demagogia de lado, não é difícil entender que ele tem um ponto. Para vários concursos e cargos é exigido determinado nível de escolaridade. Por que na hora de escolher nossos representantes isso seria ignorado? Não é algo importante? E não se pressupõe que algum nível de alfabetização é fundamental para se ter acesso às informações relevantes na hora dessa importante escolha?


Claro que alfabetização não é sinônimo de sabedoria, ou garantia de conhecimento político. Também é verdade que muitos universitários podem defender barbaridades políticas em nome de ideologias, e mesmo doutores aplaudem tiranias por aí. Não é à toa que dediquei um livro todo a essa gente.


Mas claro que a tendência é o eleitor ser mais exigente à medida que possui mais escolaridade. Terá mais capacidade para compreender o que está em jogo nos debates, e não será facilmente presa dos oportunistas de plantão, que exploram a ignorância e a miséria alheias. Os demagogos adoram o analfabetismo, pois encontram nele um curral eleitoral para explorar.


Escrevi há alguns anos um artigo com base nos pensamentos de Hayek, Prêmio Nobel de Economia, justamente sobre o “dogmatismo democrático”, que lança luz sobre essa importante questão. Segue:


O culto à democracia
“Se a democracia é um meio para preservar a liberdade, então a liberdade individual é não menos uma condição essencial para o funcionamento da democracia.” (Hayek)


Atualmente, existe uma espécie de “culto à democracia”, entendida aqui como simplesmente o governo da maioria. Assume-se automaticamente que a maioria tem direito de decidir sobre tudo, incluindo temas totalmente restritos à esfera individual. Nesse contexto, vale a pena resgatar o que Friedrich Hayek tinha a dizer sobre o tema. Em sua obra clássica The Constitution of Liberty, ele dedica um capítulo ao assunto, explicando os riscos da democracia e lembrando que ela é apenas um meio para se obter determinados fins.


O liberalismo, segundo Hayek, está preocupado basicamente em limitar o poder coercitivo de qualquer governo, seja ele democrático ou não. Por outro lado, o democrata dogmático reconhece apenas um limite aos poderes do governo: a opinião atual da maioria. Hayek repete o que Aristóteles já havia dito: que a democracia pode resultar em poderes totalitários. O liberalismo é uma doutrina sobre o que a lei deveria ser, enquanto a democracia é uma doutrina sobre a forma de determinar o que a lei será. Enquanto o liberalismo prega a isonomia das leis, i.e., a igualdade de todos perante das leis, a democracia é um meio para se tentar alcançar tal finalidade.


Naturalmente, esse meio pode falhar. Uma democracia pode facilmente criar inúmeras leis injustas e ineficientes, concedendo privilégios e, portanto, discriminando grupos. Mas, para o democrata dogmático, o fato de que a maioria deseja algo é motivo suficiente para considerar este algo desejável. Para ele, o desejo da maioria determina não apenas o que será a lei, mas o que será uma boa lei. Se o liberalismo se preocupa com o escopo e o propósito do governo, a democracia, por outro lado, nada tem a dizer sobre as metas do governo em si. O liberalismo defende princípios, enquanto a democracia oferece um método de escolha, que pode ou não respeitar tais princípios.


O uso indiscriminado do termo “democrático” representa muitas vezes um perigo à própria liberdade individual. Essa falácia parte da premissa de que, porque a democracia é uma coisa boa, então ela deve beneficiar a humanidade sempre que for estendida. Trata-se de um non sequitur. Como Hayek diz, existem pelo menos dois aspectos que podem servir para estender a democracia: o tamanho do grupo encarregado de votar e os temas que devem ser decididos pelo processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos é possível concluir que todo avanço na extensão da democracia representa um ganho, ou que seria desejável estender indefinidamente a democracia. No entanto, na maioria dos debates sobre todo tema particular, o caso pela democracia é freqüentemente apresentado como desejável.


Hayek cita o próprio conceito de “sufrágio universal” para mostrar que há limites arbitrários na democracia. O limite de idade é o mais óbvio. Assume-se que há certa idade em que ainda não existe maturidade suficiente para decidir sobre as coisas públicas. Ninguém razoável poderia defender o método democrático para as escolhas de uma família com três filhos, por exemplo. No entanto, existem outros limites, como criminosos, residentes estrangeiros, etc. 


Hayek argumenta, então, que diferentes limites seriam igualmente arbitrários caso fossem adotados. Por exemplo, o voto apenas de adultos com mais de 40 anos, ou somente os que possuem renda, ou apenas os alfabetizados. Para Hayek, seria possível argumentar também que os ideais da democracia estariam melhor servidos se os funcionários do governo fossem excluídos do voto. Em resumo, o fato de que o sufrágio universal de “adultos” (no caso brasileiro, jovens de 16 anos inimputáveis por crimes podem votar) prevaleceu na maioria dos países não prova que essa deve ser a regra com base em algum princípio básico.


Outro ponto levantado por Hayek é o próprio limite arbitrário de nação. O direito da maioria é normalmente reconhecido somente dentro de um determinado país, mas o que define um país nem sempre é uma unidade óbvia ou natural. Certamente ninguém considera um direito dos cidadãos de um país grande dominar aqueles de um país vizinho menor, somente porque estão em maior número. No entanto, muitos assumem que dentro de um país os direitos da maioria são absolutos, o que carece de argumentação lógica. A democracia não é um valor absoluto. Os poderes de uma maioria temporária devem ser limitados por princípios de longo prazo, justamente para evitar a tirania da maioria. Apenas a aceitação desses princípios comuns torna um grupo de pessoas uma comunidade livre.    


Para o liberal, existem coisas que ninguém tem o direito de fazer, seja um rei, seja uma maioria democrática. Conforme alerta Hayek, é quando se aceita que “na democracia o certo é aquilo que a maioria decide”, que a democracia degenera em uma demagogia. De fato, a democracia é o método mais pacífico para mudar governos que existe. 



Mas isso, sob hipótese alguma, quer dizer que as escolhas da maioria serão sempre certas. Hayek destaca o importante papel da democracia, de educar as massas ao longo do tempo, justamente porque todos acabam participando do processo de formação de opinião. Esse processo dinâmico é que garante o valor da democracia, não seu aspecto estático, ou seja, a escolha pontual dos governantes. Seus benefícios, portanto, costumam aparecer somente no longo prazo, enquanto suas conquistas imediatas podem ser inferiores a de outras formas de governo.


A ditadura do “politicamente correto” é outro risco do “culto à democracia”. A concepção de que a opinião da maioria deve ditar os padrões seguidos por todos representa o oposto do princípio que permitiu o avanço da civilização. O avanço, como afirma Hayek, consiste em poucos convencendo muitos. Novas visões devem antes surgir para depois se tornarem visões majoritárias. Como ninguém sabe quem será o mais apto a moldar novas visões, deixamos o processo de decisão aberto, sem controle da maioria. É pela conduta diferente de uma minoria que a maioria pode aprender algo novo e melhorar. A ditadura da visão majoritária, por outro lado, assume uma postura estática, como se todo o conhecimento necessário para o avanço futuro estivesse disponível. Isso acaba destruindo a capacidade de evolução da civilização.


Por fim, não é uma postura “antidemocrática” tentar convencer a maioria de que existem limites que não devem ser ultrapassados pela própria democracia. Para a sua sobrevivência mesmo, a democracia deve reconhecer que não é a fonte da justiça. O perigo, como coloca Hayek, é quando confundimos um meio de garantir a justiça com a própria justiça em si. Por essa ótica, dois lobos e uma ovelha escolhendo democraticamente qual será o jantar levaria a um resultado totalmente justo. O liberal discorda, pois entende que a ovelha tem o direito de não virar janta de lobo, independente do que deseja a maioria do momento.


Rodrigo Constantino

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