Frente ao cenário internacional,
Dilma coloca em risco legado de Lula ao entender que não é hora de
disputar vaga na primeira divisão global e delegar ao setor empresarial
decisões de Estado
por Fátima Mello (*)
publicado
13/02/2014 09:23,
Roberto Stuckert Filho/Planalto
A era Lula-Amorim deixou um rico legado para o
Brasil. Em menos de uma década o país se distanciou de sua posição
subalterna e passou a jogar na primeira divisão do sistema
internacional.
O cenário era favorável: a valorização das commodities impulsionava o crescimento e permitia alguma distribuição da renda; os Estados Unidos direcionavam suas prioridades para a agenda da guerra, enquanto na América Latina um novo ciclo político se abria, com a eleição de governos que recusavam os mandamentos do chamado Consenso de Washington reinantes nos anos 90.
Os emergentes apresentavam taxas surpreendentes de crescimento, e passavam a atuar de forma coordenada em fóruns econômicos, despontando também como potenciais atores políticos.
Lula e Amorim souberam surfar nessa onda. Apostaram no fortalecimento da articulação regional, nas coalizões Sul-Sul, disputaram protagonismo com as potências tradicionais em instâncias multilaterais, na cooperação internacional e até mesmo em agendas de 'gente grande' como no Oriente Médio.
Já o governo Dilma enfrenta um cenário espinhoso. A crise iniciada em 2008 ditou o novo rumo da inserção externa do país. A retração nos países centrais reduziu a demanda e encerrou o tempo das 'vacas gordas'. Os emergentes desaceleraram seu ritmo de crescimento.
Na Europa, a voracidade do sistema financeiro debilitou conquistas democráticas e do Estado de bem-estar. O multilateralismo passou a ser ainda mais desprezado e os acordos bilaterais e birregionais voltaram com força ao centro da agenda de comércio e investimentos. Teses do receituário privatizante dos anos 1990 que levaram países a bancarrota voltaram ao debate com ares de salvadores.
Hoje Europa e Estados Unidos negociam um mega acordo de livre comércio que inclui as áreas de bens, serviços, investimentos e harmonização de regras.
Se aprovado, redefinirá um novo protagonismo das potências tradicionais na ordem global. A esperança é que os trabalhadores dos países envolvidos sejam capazes de resistir a mais este rebaixamento de seus direitos e ao ataque aos direitos dos que serão impactados pelas transnacionais norte-americanas e europeias. Ao mesmo tempo, os EUA também desenham um novo e importante componente da geopolítica por meio da Parceria Trans-Pacífica.
Frente a esta onda, Dilma optou pelo recuo da bem-sucedida política ‘ativa e altiva’ construída por Lula e Amorim. Tem dado sinais de que para ela não é hora de fazer política nem de seguir disputando a vaga de titular na primeira divisão. Seria hora de se defender, acenando ao rentismo e às grandes potências que o Brasil não quer voar alto nem fazer nada que os ameace.
À Carta aos Brasileiros II anunciada em Davos se seguiu uma participação de baixo perfil na Celac, onde reafirmou o compromisso com a integração regional, porém sem expressar uma vontade política comprometida com uma agenda mais estratégica e à altura da importância da Cúpula em Havana. Nada que cutuque os Estados Unidos, nada que coloque força política para valer na articulação com os vizinhos.
O Brasil voltou a apostar nas negociações entre Mercosul e União Europeia, que desde 2004 estavam paralisadas pela avaliação de que o livre acesso de grandes corporações europeias ao espaço do Mercosul seria devastador para o projeto de desenvolvimento do bloco.
Dilma delegou ao setor empresarial um amplo poder nas decisões sobre importantes áreas da política externa, como é o caso da crescente cooperação brasileira.
Uma exceção a esta postura defensiva e favorável às teses privatizantes foi seu discurso na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2013, onde reagiu à altura da agressão ao escândalo da espionagem da NSA, ao que se seguiu importante iniciativa de apresentação, junto com a Alemanha, de proposta de governança democrática da internet e de direito a privacidade. Recuou, porém, frente ao pedido de asilo a Edward Snowden.
Esta postura coloca em risco o legado da era Lula-Amorim. Frente ao cenário adverso há que se investir em caminhos. A saída é pela política, e não pela administração da crise em patamar defensivo.
No plano das relações Sul-Sul, ainda há um longo percurso até que coalizões como os Brics possam se consolidar – seus membros guardam ampla heterogeneidade de sistemas políticos, volume e perfil de suas economias, relação com seus entornos regionais, o que torna complexa e demorada a construção de um nível suficiente de coesão que permita ao bloco tornar-se uma força contra-hegemônica de fato.
Sem a China e a Rússia, coalizões como o Ibas (Índia, Brasil, África do Sul) são mais homogêneas, porém sem a força econômica suficiente para terem peso na ordem global.
Por isso o investimento prioritário do Brasil deve ser na região e no sistema multilateral. No plano regional é preciso apoiar e investir no fortalecimento dos vizinhos.
Nosso destino está inexoravelmente ligado ao deles. Há que se jogar força na ação coletiva regional, na coordenação e harmonização de políticas, na integração entre cadeias produtivas e na integração social, política, cultural e comercial. Mercosul, Unasul, Celac e demais arranjos institucionais precisam ser turbinados e valorizados.
No plano global, o caminho deve ser o do reforço ao multilateralismo. Se o Brasil aposta nas regras da OMC – apesar de serem injustas e pró-transnacionais – não deveria investir no avanço das negociações para um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia que mina ainda mais a relevância da OMC.
No tema crucial da espionagem e do direito a privacidade, conceder asilo a Snowden será um passo decisivo para consolidar a liderança global do país numa agenda que tornou-se prioritária para a comunidade internacional.
O ideal é que o Brasil esteja ancorado no apoio do sistema multilateral, de países chave, e em especial da América do Sul – o que poderia inclusive tomar a forma da concessão de asilo coletivo.
Uma excelente notícia – esta sim um avanço louvável da era Dilma – é a atual disposição do Ministério das Relações Exteriores de acolher as pressões da sociedade pela criação de mecanismos institucionais de transparência e diálogo com a sociedade.
Desde 2003 existia a demanda pela criação de um Conselho Nacional de Política Externa, que agora começa a ser efetivada graças ao trabalho do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) - integrado por pesquisadores, militantes sociais e partidários – que organizou uma importante conferência em julho de 2013 e fez convergir esforços para tornar a criação do Conselho uma realidade e uma conquista histórica.
A política externa é o espelho das opções, conflitos e projetos nacionais de desenvolvimento. Oxalá a opção brasileira – aquela que saiu vitoriosa das urnas que elegeram Dilma há quatro anos – seja a de promover desenvolvimento com justiça social e ambiental, democracia substantiva e direitos humanos.
No mundo de hoje, esta opção requer ir à luta na política internacional.
(*) Fátima Mello é da Fase – Solidariedade e Educação. Integra Rede Brasileira Pela Integração dos Povos e o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)
O cenário era favorável: a valorização das commodities impulsionava o crescimento e permitia alguma distribuição da renda; os Estados Unidos direcionavam suas prioridades para a agenda da guerra, enquanto na América Latina um novo ciclo político se abria, com a eleição de governos que recusavam os mandamentos do chamado Consenso de Washington reinantes nos anos 90.
Os emergentes apresentavam taxas surpreendentes de crescimento, e passavam a atuar de forma coordenada em fóruns econômicos, despontando também como potenciais atores políticos.
Lula e Amorim souberam surfar nessa onda. Apostaram no fortalecimento da articulação regional, nas coalizões Sul-Sul, disputaram protagonismo com as potências tradicionais em instâncias multilaterais, na cooperação internacional e até mesmo em agendas de 'gente grande' como no Oriente Médio.
Já o governo Dilma enfrenta um cenário espinhoso. A crise iniciada em 2008 ditou o novo rumo da inserção externa do país. A retração nos países centrais reduziu a demanda e encerrou o tempo das 'vacas gordas'. Os emergentes desaceleraram seu ritmo de crescimento.
Na Europa, a voracidade do sistema financeiro debilitou conquistas democráticas e do Estado de bem-estar. O multilateralismo passou a ser ainda mais desprezado e os acordos bilaterais e birregionais voltaram com força ao centro da agenda de comércio e investimentos. Teses do receituário privatizante dos anos 1990 que levaram países a bancarrota voltaram ao debate com ares de salvadores.
Hoje Europa e Estados Unidos negociam um mega acordo de livre comércio que inclui as áreas de bens, serviços, investimentos e harmonização de regras.
Se aprovado, redefinirá um novo protagonismo das potências tradicionais na ordem global. A esperança é que os trabalhadores dos países envolvidos sejam capazes de resistir a mais este rebaixamento de seus direitos e ao ataque aos direitos dos que serão impactados pelas transnacionais norte-americanas e europeias. Ao mesmo tempo, os EUA também desenham um novo e importante componente da geopolítica por meio da Parceria Trans-Pacífica.
Frente a esta onda, Dilma optou pelo recuo da bem-sucedida política ‘ativa e altiva’ construída por Lula e Amorim. Tem dado sinais de que para ela não é hora de fazer política nem de seguir disputando a vaga de titular na primeira divisão. Seria hora de se defender, acenando ao rentismo e às grandes potências que o Brasil não quer voar alto nem fazer nada que os ameace.
À Carta aos Brasileiros II anunciada em Davos se seguiu uma participação de baixo perfil na Celac, onde reafirmou o compromisso com a integração regional, porém sem expressar uma vontade política comprometida com uma agenda mais estratégica e à altura da importância da Cúpula em Havana. Nada que cutuque os Estados Unidos, nada que coloque força política para valer na articulação com os vizinhos.
O Brasil voltou a apostar nas negociações entre Mercosul e União Europeia, que desde 2004 estavam paralisadas pela avaliação de que o livre acesso de grandes corporações europeias ao espaço do Mercosul seria devastador para o projeto de desenvolvimento do bloco.
Dilma delegou ao setor empresarial um amplo poder nas decisões sobre importantes áreas da política externa, como é o caso da crescente cooperação brasileira.
Uma exceção a esta postura defensiva e favorável às teses privatizantes foi seu discurso na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2013, onde reagiu à altura da agressão ao escândalo da espionagem da NSA, ao que se seguiu importante iniciativa de apresentação, junto com a Alemanha, de proposta de governança democrática da internet e de direito a privacidade. Recuou, porém, frente ao pedido de asilo a Edward Snowden.
Esta postura coloca em risco o legado da era Lula-Amorim. Frente ao cenário adverso há que se investir em caminhos. A saída é pela política, e não pela administração da crise em patamar defensivo.
No plano das relações Sul-Sul, ainda há um longo percurso até que coalizões como os Brics possam se consolidar – seus membros guardam ampla heterogeneidade de sistemas políticos, volume e perfil de suas economias, relação com seus entornos regionais, o que torna complexa e demorada a construção de um nível suficiente de coesão que permita ao bloco tornar-se uma força contra-hegemônica de fato.
Sem a China e a Rússia, coalizões como o Ibas (Índia, Brasil, África do Sul) são mais homogêneas, porém sem a força econômica suficiente para terem peso na ordem global.
Por isso o investimento prioritário do Brasil deve ser na região e no sistema multilateral. No plano regional é preciso apoiar e investir no fortalecimento dos vizinhos.
Nosso destino está inexoravelmente ligado ao deles. Há que se jogar força na ação coletiva regional, na coordenação e harmonização de políticas, na integração entre cadeias produtivas e na integração social, política, cultural e comercial. Mercosul, Unasul, Celac e demais arranjos institucionais precisam ser turbinados e valorizados.
No plano global, o caminho deve ser o do reforço ao multilateralismo. Se o Brasil aposta nas regras da OMC – apesar de serem injustas e pró-transnacionais – não deveria investir no avanço das negociações para um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia que mina ainda mais a relevância da OMC.
No tema crucial da espionagem e do direito a privacidade, conceder asilo a Snowden será um passo decisivo para consolidar a liderança global do país numa agenda que tornou-se prioritária para a comunidade internacional.
O ideal é que o Brasil esteja ancorado no apoio do sistema multilateral, de países chave, e em especial da América do Sul – o que poderia inclusive tomar a forma da concessão de asilo coletivo.
Uma excelente notícia – esta sim um avanço louvável da era Dilma – é a atual disposição do Ministério das Relações Exteriores de acolher as pressões da sociedade pela criação de mecanismos institucionais de transparência e diálogo com a sociedade.
Desde 2003 existia a demanda pela criação de um Conselho Nacional de Política Externa, que agora começa a ser efetivada graças ao trabalho do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) - integrado por pesquisadores, militantes sociais e partidários – que organizou uma importante conferência em julho de 2013 e fez convergir esforços para tornar a criação do Conselho uma realidade e uma conquista histórica.
A política externa é o espelho das opções, conflitos e projetos nacionais de desenvolvimento. Oxalá a opção brasileira – aquela que saiu vitoriosa das urnas que elegeram Dilma há quatro anos – seja a de promover desenvolvimento com justiça social e ambiental, democracia substantiva e direitos humanos.
No mundo de hoje, esta opção requer ir à luta na política internacional.
(*) Fátima Mello é da Fase – Solidariedade e Educação. Integra Rede Brasileira Pela Integração dos Povos e o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)
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