Brasília: obras que desconstroem a memória da cidade
Por Chico Sant’Anna
Pessoalmente, prefiro outra figura de linguagem: a cidade não pode ficar engessada, tem que se modernizar, mas este processo não pode deixar fraturas expostas. Recentemente, o aeroporto internacional de Brasília teve uma nova ala inaugurada. Bonita, vistosa, toda de metal e vidro.
O estacionamento foi ampliado, mas ai já começa a primeira fratura. A Praça Santos Dumont, que ficava à frente do Aeroporto Internacional JK é a mais recente vítima do avanço desmedido e impensado das obras projetadas para adaptar a Capital Federal à Copa do Mundo. Onde antes existiam espelho d’água, palmeiras, árvores do cerrado e até um busto do Pai da Aviação, agora prevalece um grande e árido cimentado construído pelo consórcio Infraero/InfrAmérica.
O estacionamento ganhou duas mil novas vagas, quase todas sem uma sombrinha sequer. As obras de ampliação do estacionamento podiam muito bem ter garantido a presença do busto em bronze. Nem que fosse uma pequena ilha para garantir a manutenção do monumento. Perder duas ou três vagas a menos no estacionamento não faria nenhuma diferença no faturamento dos empresários que o exploram.
Mas não, o processo de apagar as memórias é mais forte do que os de sua preservação.
Assim, o busto de Santos Dumont, que estava lá desde os tempos do barracão de madeira que foi o primeiro aeroporto da Nova Capital, desapareceu, ninguém sabe onde foi parar a escultura. A única lembrança, sãoas imagens do google maps.
Também a Praça 21 de abril – alguém ai sabe onde fica? É na 707 Sul -, abrigava um busto em Bronze de Santos Dumont, o Pai da Aviação. A obra de arte voou há muitos anos e dela ninguém tem notícia. Parace que Brasília não tem muito apreço pelo inventor do aeroplano.
Espaço Cósmico 81
O Bambolê de Dona Sarah foi detonado pelas obras da Copa – mais um ícone na cidade que foi desconstruído. Mesmo que venha ser reajardinadocomo antes, não mais poderá contar com as cinquentenárias árvores que o adornava, pois poucos metros abaixo da terra há uma enorme laje de concreto do mergulhão feito pelo GDF para atender as exigências da Fifa.
No extinto Balão do Aeroporto, havia uma escultura, denominada Monumental Espaço Cósmico 81, de Yutaka Toyota.
Exposta desde 1980, a obra em forma de cubo foi retirada para realização de reformas no local em meados de 2005 e nunca mais se viu.
Agora, com o fim das obras do mergulhão da Fifa, uma perguta que não quer calar: A escultura retornará ao seu local?
Brasília é uma cidade jovem, mas já tem sua história, uma história intensa para seus poucos anos de vida. O problema é que Brasília, como todo jovem, não dá valor e não preserva sua própria história. A cada dia, a cada obra, a cada mudança urbanística, lembranças de um passado não tão distante vão se evaporando.
Quem passeia no Núcleo Bandeirante, a antiga Cidade Livre, dificilmente irá encontrar lá um único exemplar dos barracos de dois andares que se espremiam pela cidade, colados um a um. Sobrados de madeira imortalizados no filme Bye Bye Brasil.
Na Vila Planalto, as antigas casas de madeira dão lugar a casarões de alvenaria, comércio e até hotel. O bucólico encanto particular da Vila vai se perdendo pela ação da especulação imobiliária. A cidade perde sua personalidade e se igual a qualquer outro emanhanrado de casas e sobrados existentes no país.
Também na área tombada do Plano Piloto, a saga especulativa transforma em casarões que mal cabem em seus lotes as antigas casas construídas na W.3 Sul pela Fundação da Casa Popular – o BNH de Juscelino.Casas que construíram um modelo de convivência harmônica entre os vizinhos.
Esta borracha que vai apagando a história da Nova Capital, principalmente de seus primórdios, fica mais afoita toda vez que o GDF dá início a obras viárias. E isso não é privilégio da atual administração, parece mais uma tradição.
Foi assim, também, quando interligaram as avenidas W.3 Sul e Norte. O parque de recreação, com rinque de patinação, pistas de aeromodelismo e tanques de navalmodelismo deram lugar ao viaduto atual.
Os moradores perderam um local de lazer e recreação. Também quando da duplicação da Avenida das Nações, que os tecnocratas insistem em chamar apenas de L.4, apagando da memória das futuras gerações a denominação definida por Lúcio Costa para a principal via do Setor de Embaixadas, desapareceu um pequeno monumento.
Era pequeno, mas importante: um bloco de mármore branco trifacetado. Ele registrava a visita a Brasília, em fevereiro de 1960 – quatro meses antes da inauguração da nova capital -, do então presidente dos Estados Unidos, Dwigh Eisenhower, e o compromisso do mandatário norte-americano de nela construir a representação diplomática de seu país.
O marco desapareceu. Informações não oficiais indicam que no governo de José Roberto Arruda, seu vice, Paulo Otávio, a pedido da Embaixada dos Estados Unidos, retirou o monumento de onde foi inaugurado por Juscelino e Eisenhower e o cedeu à representação diplomática.
Se for verdade, trata-se de um ato de privatização e desnacionalização de um monumento que deveria ser de toda a sociedade e não apenas dos poucos e raros brasileiros que entram na embaixada.
Cidade Monumental
Brasília, cidade monumental, não cuida bem de seus monumentos.
Um mau exemplo é a Praça dos Próceres, em frente ao gabinete do governador do Distrito Federal, ao lado da Praça do Buriti.
Criada na atmosfera da Nova República por José Aparecido de Oliveira, tinha por objetivo homenagear lideranças que trouxeram a liberdade de seus povos no mundo inteiro, em especial os heróis latino-americanos.
Originalmente eram dez estátuas e bustos construídos com material robusto, como bronze e concreto, mas se deterioraram e viraram alvo de todo tipo de vandalismo e abandono. Três imagens já não existem mais.
Segundo levantamento do jornal Metro, apenas o busto de José de San Martin, libertador de Argentina e do Peru, e Simón Bolivar contam com placas e bustos intactos. Simon Bolívar, o pai da Grã-Colômbia, foi um presente a Brasília do falecido presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Da peça em homenagem a Miguel Hidalgo, que libertou o México, só sobrou a placa. Coisa que o busto do ex-presidente chileno, Salvador Allende, perdeu junto com parte da armação dos óculos. O local está se transformando num ponto de uso de drogas, nas barbas do Poder.
Pouco mais acima, em frente ao memorial JK, até Juscelino Kubitschek virou alvo de agressões na cidade que criou, conforme documentou o Correio Braziliense, em maio de 2012.
Os símbolos religiosos também são alvo da depredação. É o caso do conjunto de orixás instalados na Prainha do Lago Paranoá, réplicas de outro conjunto existente em Salvador.
As imagens foram recentemente recuperada após terem sido incendiadas com ajuda de pneus. Mesmo após a restauração, a imagem fixada na entrada de Santa Maria, é alvo constante de depredação.
Solarius
Talvez o maior exemplo de descaso e abandono das obras de artes e monumentos seja o Solarius, popularmente conhecido como Chifrudo.
Com seus dezesseis metros de altura, ele marca, às margens da BR-40, a entrada do Distrito Federal. Trata-se de uma obra do escultor francês Ange Falchi em homenagem aos candangos que vieram construir a Capital Federal.
O Solarius, doado em 1967 pelo governo francês a Brasília, foi idealizado a partir das informações vinculadas pela imprensa francesa sobre o movimento de migração dos brasileiros de todas as regiões a fim de construírem a Capital Federal.
Feita em aço, ferro, chapas galvanizadas, lã de vidro e plástico, a escultura foi considerada por seu autor como sendo o “símbolo do Pioneiro Indômito, que conquistou a região agreste e pungente do Planalto Central”.
Como muitas outras obras de arte, o Solarius está abandonado e não há nenhum esforço das autoridades educacionais e culturais em fazer com que o brasiliense tenha noção do significado que aquela obra de arte simboliza para a Capital Federal: além de uma homenagem aos pioneiros, é o reconhecimento internacional da importância de Brasíia.
O GDF não sabe quantos são e onde estão as imagens e estátuas existentes no Distrito Federal. Não há um cadastro de monumentos. O jornal Correio Braziliense, em 2012, contabilizou 31 imagens apenas no Plano Piloto. “A maioria encontra-se em péssimo estado. Algumas esculturas estão com rachaduras e partes quebradas. Também tiveram pedaços arrancados ou acabaram destruídas” afirmou o jornal à época.
Como diz o dito popular, “povo sem história, é povo sem memória, é povo sem futuro” e o segredo do futuro de Brasília, talvez esteja em suas raízes em sua razão de ter sido construída e de ser.
Olhar e preservar o passado pode ser a melhor maneira de se preservar a qualidade de vida no futuro.
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