A isenção é mercadoria valiosa no
mercado profissional. Médicos, advogados, jornalistas, administradores e
até mesmo químicos, engenheiros e matemáticos são vistos com bons olhos
se não deixam suas visões pessoais influenciarem nas atividades que
exercem.
Essa valorização, nos últimos tempos,
espalhou-se para as convicções pessoais e políticas. Hoje ser uma pessoa
“isenta” ideologicamente e nas relações familiares e interpessoais
parece ser o objetivo buscado por muitos. É compreensível. O isento
ideológico ou afetivo mantém-se em uma zona de conforto onde os
conflitos e embates ficam à distância segura, sob responsabilidade de
outros, os emotivos, os radicais, os impetuosos.
Sem tomar posições com ao menos uma
ressalva que garanta ao outro lado seu quinhão de virtude ou razão, o
isento não confronta, não é confrontado, fica (sob o ponto de vista
dele) bem quisto por todos, sem deixar de dar sua opinião. São estes os
valores aceitos como corretos por boa parte dos bem-pensantes atuais,
principalmente se este “bom-pensamento” for de viés progressista.
O progressismo de esquerda conseguiu, ao
menos nos meios de comunicação, na política e na burocracia estatal,
firmar-se como centro médio dos valores que regem esses setores,
deixando de fora deste “senso comum”, à esquerda, apenas alguns poucos
radicais sectários que abandonaram o “centro adernado à esquerda” por
conta própria (mas que atuam como linha auxiliar sempre que as
circunstâncias apresentam alguma ameaça ao “status quo”) e, à direita,
todos os que não lhe prestarem as devidas homenagens e reconhecimentos.
Nos últimos 12 anos, os formadores e
frequentadores desse campo de isenção viveram em zona de conforto sem
precedentes: suas pautas eram as únicas em discussão no país; o
autoritarismo e o clientelismo nelas embutidos eram meros efeitos
colaterais, inevitáveis em um país “atrasado, injusto e com uma dívida
social de 500 anos para com seu povo”; as roubalheiras, falcatruas e
desmontes realizados em nome deste “resgate da justiça social”,
contingências impostas a seus autores, vítimas de seu altruísmo ante a
perversidade das elites e do sistema político falido; os poucos
adversários, membros ressentidos da elite que espoliou o país desde
1500, deslegitimados inclusive de seu papel de opositores (no que esses
opositores aquiesceram com uma servidão das mais repulsivas). Uma zona
de conforto construída metodicamente, mas sempre com muita isenção.
Eis que, em algum momento, a redoma
retórica que protege esse isentismo de críticas e contraditas começa a
apresentar fissuras. Falas e textos conservadores começam a aparecer na
imprensa sem pagar pedágio ideológico ao progressismo; discursos outrora
incensados como o ápice da inteligência são questionados e ironizados;
pautas executadas sem óbices começam a ser confrontadas com suas
incongruências e efeitos, propostas alternativas à direita surgem no
debate político. O desvio do prumo ideológico começa a aparecer.
Aos que pouco vivenciaram situação
diversa, estes questionamentos ao senso comum progressista,
indevidamente levado ao centro do espectro ideológico, causa profundo
desconforto. A reação vem em forma de desqualificação. Quem não reza
pela cartilha progressista é atrasado, ignorante, autoritário, elitista,
excludente, em suma: reaça.
Heureca! Encontrou-se uma expressão, um
termo, capaz de resumir e rotular os inimigos do povo. Talvez com isso
eles aquietem e deixem os progressistas continuarem a sua obra de
justiça social reparadora de séculos de iniquidades.
Mas aí os “reaças” assumem a expressão,
tomam as rédeas da construção do seu significado, agrupam pessoas sob o
termo e resolvem construir suas próprias pautas. Sem pagar pedágio
ideológico a progressismos ou esquerdismos para ficar bem com a turma da
opinião sensata.
Não contentes, os reaças começam a fazer
paródias sarcásticas do discurso progressista. Perfis notórios das redes
sociais por seu progressismo inflamado são analisados e suas
fragilidades teóricas, retóricas e morais são expostas por análises
absolutamente não isentas. O filtro conservador começa a tomar forma e
ser utilizado por cada vez mais pessoas. É um ruído que, paulatinamente,
mostra onde de fato está o centro da prumada ideológica e qual a
verdadeira posição que cabe ao progressismo nesse espectro.
O incômodo, cada vez maior e menos
silente, ainda é residual. Os reaças são vistos como outsiders quase
que benéficos ao “status quo”, pois ao existirem sem ameaçar, acabam
comprovando a tolerância e capacidade de convívio com a diversidade do
“establishment”, além de ser mais um indício do vigor de nossa
democracia.
Alguns textos geram muxoxos aqui, uns
questionamentos geram grita e “blocks” acolá, o humor sarcástico é visto
como “coisa de mau gosto”, mas nada que demande maiores reações.
Até que ocorrem as eleições, Dilma vence
e, para surpresa de muitos, surge uma militância popular, espontânea, de
reaças indignados com a vitória de uma campanha suja, imoral, que se
valeu de mentiras disseminadas no horário político, nas redes sociais,
em panfletos, cartazes, por telefone, mensagens de texto e carros de som
para difamar adversários, pregar o medo da mudança e chantagear os
eleitores mais vulneráveis, tudo com o objetivo de garantir mais quatro
anos de poder aos protagonistas dos maiores desmandos e escândalos de
corrupção desde a redemocratização.
Aí os reaças já estavam abusando. Quem
essa turma pensa que é para questionar a presidente reeleita, seu
partido e seus áulicos, uma vez que as urnas lhes deram a vitória? Para
os progressistas, urna é tribunal, confessionário e lavanderia de
reputações (menos quando seus adversários vencem).
Se a reaçada vai protestar, pedir
apuração dos escândalos, pedir o impeachment da presidente se comprovado
seu conhecimento sobre os bilionários escândalos de corrupção na
Petrobrás, o que resta aos isentistas senão desqualificar, de todas as
formas possíveis (de preferência, as piores) esses agitadores?
Ocorre que os progressistas, em especial
os mais novos, são lenientes, mal-preparados, presunçosos, folgados. Não
participaram do processo de construção da pauta hegemônica, nem do
partido que a executa, mas são beneficiários diretos do processo.
Resultado: consideram a conjuntura o estado natural das coisas. Não se
atentam para a imoralidade inerente a boa parte do que defendem, e a
replicam. Não levam a sério a legitimidade da oposição e a liberdade de
expressão. Daí consideram, por raciocínio reverso, que qualquer
estratégia é legítima para combater o outro, ilegítimo por natureza e
destino histórico.
Quando são pegos com a boca na botija,
aproveitando-se de suas funções profissionais, para, coordenadamente,
executar uma missão político-partidária, fazem o papel da vítima com
maestria; os colegas de profissão, por corporativismo e por afinidade
ideológica, fazem coro às reclamações de perseguição, apontando um
“macartismo à brasileira” de difícil compreensão (posto que o
macartismo, por essência, é a defesa, por métodos questionáveis, do
“status quo” por gente do “status quo”); os profissionais do ramo, os
servos voluntários e os acólitos de diversos matizes fazem sua parte e
reverberam a grita, acusando os reaças de perseguidores que ameaçam a
liberdade de imprensa, brandindo denúncias a entidades de classe,
pedidos de processo e todo o tipo de ação que consiga, de algum modo,
calar aqueles que apontam a atuação deliberada e coordenada desses
falsos isentos, que agora fingem-se de vítimas para acobertar sua
pusilanimidade.
Tempos estranhos estes em que a exposição
de posicionamentos ideológicos de simpatizantes do governo (simpatia
esta só conhecida porque eles fizeram questão de expô-la nas redes
sociais) gera tamanha comoção, como se a vinculação de pessoas ao
petismo fosse uma ofensa grave. Talvez seja.
Talvez o isentismo progressista, cada vez
mais estridente em textos e matérias jornalísticas, em posts de redes
sociais, em conversas de bar, não esteja mais resistindo como dantes à
introspecção, ao silêncio que dá espaço à consciência, àqueles valores
mais profundos que foram renegados em nome de um projeto mas que, de
alguma forma, teimam em lhe dizer quando algo está profundamente errado,
mas você faz ouvidos moucos.
Talvez essa reação toda seja um pedido de
socorro, uma súplica para que todas essas incongruências entre discurso
e prática sumam e a mentira em que todos se enredaram, e que ainda
beneficia a muitos, permaneça sem resistências. Se for isso, não contem
conosco.
Agora, se o maior incômodo for o conflito
de consciência, e a reclamação seja porque vocês não sabem como sair
dessa enrascada sem parecerem os imorais que estão sendo, fiquem
tranquilos. Vai acabar. Já está acabando. Aí vocês terão muito tempo
para entender as consequências desse bom-mocismo isento e repensar o que
fizeram de suas vidas.
3 comentários para “O “ethos” reaça e o fim da farsa do isentismo.”
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Carvalho Bacana o comentário da Vera. Nascido em 1971, acho que fui criado dessa forma, com o “É proibido proibir.” E agora sofro um pouco para impor limites às minhas filhas. Essa inversão de valores que corresponde à agenda esquerdista no mundo todo está entranhada em todos nós mesmo. É importante ter espaços onde possamos alertar e ser alertados para isso, nos ajuda a manter a sanidade nesse mundo sem eira nem beira de hoje. Esse site ajuda muito nisso, está de oarabéns. Como sugestão, acho que poderia falar um pouco mais sobre valores também. É algo muito importante que está sendo constantemente agredido pela agenda esquerdopata. -
Vera Resende Após o fim do militarismo, surgiu um monstro chamado excesso de liberdade. “Proibido proibir” era, e ainda é, a máxima que rege o convívio brasileiro. “Abaixo qualquer tipo de autoridade”; “Naõ ao limite, que interdita, cerceia e retira a livre expressão do pensamento”; Não questione, aceite; não pense, faça adesões, se não quiser ser visto como gente da direita reacionária. Para evitar isto, as pessoas se fecharam no bom mocismo. Mas, agora não dá mais para ficar em cima do muro. As urnas mostraram isto. -
Luiz Não sou sociólogo, mas acredito se isso uma reverberação das revoluções estudantis de Maio de 1968 na França. Essa exata frase que você usou era um dos motes do movimento: “Il est interdit d’interdire”
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