quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O “ethos” reaça e o fim da farsa do isentismo.



A isenção é mercadoria valiosa no mercado profissional. Médicos, advogados, jornalistas, administradores e até mesmo químicos, engenheiros e matemáticos são vistos com bons olhos se não deixam suas visões pessoais influenciarem nas atividades que exercem.


Essa valorização, nos últimos tempos, espalhou-se para as convicções pessoais e políticas. Hoje ser uma pessoa “isenta” ideologicamente e nas relações familiares e interpessoais parece ser o objetivo buscado por muitos. É compreensível. O isento ideológico ou  afetivo mantém-se em uma zona de conforto onde os conflitos e embates ficam à distância segura, sob responsabilidade de outros, os emotivos, os radicais, os impetuosos.


Sem tomar posições com ao menos uma ressalva que garanta ao outro lado seu quinhão de virtude ou razão, o isento não confronta, não é confrontado, fica (sob o ponto de vista dele) bem quisto por todos, sem deixar de dar sua opinião. São estes os valores aceitos como corretos por boa parte dos bem-pensantes atuais, principalmente se este “bom-pensamento” for de viés progressista.


O progressismo de esquerda conseguiu, ao menos nos meios de comunicação, na política e na burocracia estatal, firmar-se como centro médio dos valores que regem esses setores, deixando de fora deste “senso comum”, à esquerda, apenas alguns poucos radicais sectários que abandonaram o “centro adernado à esquerda” por conta própria (mas que atuam como linha auxiliar sempre que as circunstâncias apresentam alguma ameaça ao “status quo”) e, à direita, todos os que não lhe prestarem as devidas homenagens e reconhecimentos.


Nos últimos 12 anos, os formadores e frequentadores desse campo de isenção viveram em zona de conforto sem precedentes: suas pautas eram as únicas em discussão no país; o autoritarismo e o clientelismo nelas embutidos eram meros efeitos colaterais, inevitáveis em um país “atrasado, injusto e com uma dívida social de 500 anos para com seu povo”; as roubalheiras, falcatruas e desmontes realizados em nome deste “resgate da justiça social”, contingências impostas a seus autores, vítimas de seu altruísmo ante a perversidade das elites e do sistema político falido; os poucos adversários, membros ressentidos da elite que espoliou o país desde 1500, deslegitimados inclusive de seu papel de opositores (no que esses opositores aquiesceram com uma servidão das mais repulsivas). Uma zona de conforto construída metodicamente, mas sempre com muita isenção.


Eis que, em algum momento, a redoma retórica que protege esse isentismo de críticas e contraditas começa a apresentar fissuras. Falas e textos conservadores começam a aparecer na imprensa sem pagar pedágio ideológico ao progressismo; discursos outrora incensados como o ápice da inteligência são questionados e ironizados; pautas executadas sem óbices começam a ser confrontadas com suas incongruências e efeitos, propostas alternativas à direita surgem no debate político. O desvio do prumo ideológico começa a aparecer.


Aos que pouco vivenciaram situação diversa, estes questionamentos ao senso comum progressista, indevidamente levado ao centro do espectro ideológico, causa profundo desconforto. A reação vem em forma de desqualificação. Quem não reza pela cartilha progressista é atrasado, ignorante, autoritário, elitista, excludente, em suma: reaça.


Heureca! Encontrou-se uma expressão, um termo, capaz de resumir e rotular os inimigos do povo. Talvez com isso eles aquietem e deixem os progressistas continuarem a sua obra de justiça social reparadora de séculos de iniquidades.
Mas aí os “reaças” assumem a expressão, tomam as rédeas da construção do seu significado, agrupam pessoas sob o termo e resolvem construir suas próprias pautas. Sem pagar pedágio ideológico a progressismos ou esquerdismos para ficar bem com a turma da opinião sensata.


Não contentes, os reaças começam a fazer paródias sarcásticas do discurso progressista. Perfis notórios das redes sociais por seu progressismo inflamado são analisados e suas fragilidades teóricas, retóricas e morais são expostas por análises absolutamente não isentas. O filtro conservador começa a tomar forma e ser utilizado por cada vez mais pessoas. É um ruído que, paulatinamente, mostra onde de fato está o centro da prumada ideológica e qual a verdadeira posição que cabe ao progressismo nesse espectro.


O incômodo, cada vez maior e menos silente, ainda é residual. Os reaças são vistos como outsiders  quase que benéficos ao “status quo”, pois ao existirem sem ameaçar, acabam comprovando a tolerância e capacidade de convívio com a diversidade do “establishment”, além de ser mais um indício do vigor de nossa democracia.


Alguns textos geram muxoxos aqui, uns questionamentos geram grita e “blocks” acolá, o humor sarcástico é visto como “coisa de mau gosto”, mas nada que demande maiores reações.


Até que ocorrem as eleições, Dilma vence e, para surpresa de muitos, surge uma militância popular, espontânea, de reaças indignados com a vitória de uma campanha suja, imoral, que se valeu de mentiras disseminadas no horário político, nas redes sociais, em panfletos, cartazes, por telefone, mensagens de texto e carros de som para difamar adversários, pregar o medo da mudança e chantagear os eleitores mais vulneráveis, tudo com o objetivo de garantir mais quatro anos de poder aos protagonistas dos maiores desmandos e escândalos de corrupção desde a redemocratização.


Aí os reaças já estavam abusando. Quem essa turma pensa que é para questionar a presidente reeleita, seu partido e seus áulicos, uma vez que as urnas lhes deram a vitória? Para os progressistas, urna é tribunal, confessionário e lavanderia de reputações (menos quando seus adversários vencem).


Se a reaçada vai protestar, pedir apuração dos escândalos, pedir o impeachment da presidente se comprovado seu conhecimento sobre os bilionários escândalos de corrupção na Petrobrás, o que resta aos isentistas senão desqualificar, de todas as formas possíveis (de preferência, as piores) esses agitadores?


Ocorre que os progressistas, em especial os mais novos, são lenientes, mal-preparados, presunçosos, folgados. Não participaram do processo de construção da pauta hegemônica, nem do partido que a executa, mas são beneficiários diretos do processo. Resultado: consideram a conjuntura o estado natural das coisas. Não se atentam para a imoralidade inerente a boa parte do que defendem, e a replicam. Não levam a sério a legitimidade da oposição e a liberdade de expressão. Daí consideram, por raciocínio reverso, que qualquer estratégia é legítima para combater o outro, ilegítimo por natureza e destino histórico.


Quando são pegos com a boca na botija, aproveitando-se de suas funções profissionais, para, coordenadamente, executar uma missão político-partidária, fazem o papel da vítima com maestria; os colegas de profissão, por corporativismo e por afinidade ideológica, fazem coro às reclamações de perseguição, apontando um “macartismo à brasileira” de difícil compreensão (posto que o macartismo, por essência, é a defesa, por métodos questionáveis, do “status quo” por gente do “status quo”); os profissionais do ramo, os servos voluntários e os acólitos de diversos matizes fazem sua parte e reverberam a grita, acusando os reaças de perseguidores que ameaçam a liberdade de imprensa, brandindo denúncias a entidades de classe, pedidos de processo e todo o tipo de ação que consiga, de algum modo, calar aqueles que apontam a atuação deliberada e coordenada desses falsos isentos, que agora fingem-se de vítimas para acobertar sua pusilanimidade.


Tempos estranhos estes em que a exposição de posicionamentos ideológicos de simpatizantes do governo (simpatia esta só conhecida porque eles fizeram questão de expô-la nas redes sociais) gera tamanha comoção, como se a vinculação de pessoas ao petismo fosse uma ofensa grave. Talvez seja.


Talvez o isentismo progressista, cada vez mais estridente em textos e matérias jornalísticas, em posts de redes sociais, em conversas de bar, não esteja mais resistindo como dantes à introspecção, ao silêncio que dá espaço à consciência, àqueles valores mais profundos que foram renegados em nome de um projeto mas que, de alguma forma, teimam em lhe dizer quando algo está profundamente errado, mas você faz ouvidos moucos.


Talvez essa reação toda seja um pedido de socorro, uma súplica para que todas essas incongruências entre discurso e prática sumam e a mentira em que todos se enredaram, e que ainda beneficia a muitos, permaneça sem resistências.  Se for isso, não contem conosco.


Agora, se o maior incômodo for o conflito de consciência, e a reclamação seja porque vocês não sabem como sair dessa enrascada sem parecerem os imorais que estão sendo, fiquem tranquilos. Vai acabar. Já está acabando. Aí vocês terão muito tempo para entender as consequências desse bom-mocismo isento e repensar o que fizeram de suas vidas.

3 comentários para “O “ethos” reaça e o fim da farsa do isentismo.

  1. Carvalho
    Bacana o comentário da Vera. Nascido em 1971, acho que fui criado dessa forma, com o “É proibido proibir.” E agora sofro um pouco para impor limites às minhas filhas. Essa inversão de valores que corresponde à agenda esquerdista no mundo todo está entranhada em todos nós mesmo. É importante ter espaços onde possamos alertar e ser alertados para isso, nos ajuda a manter a sanidade nesse mundo sem eira nem beira de hoje. Esse site ajuda muito nisso, está de oarabéns. Como sugestão, acho que poderia falar um pouco mais sobre valores também. É algo muito importante que está sendo constantemente agredido pela agenda esquerdopata. 

     
  2. Vera Resende
    Após o fim do militarismo, surgiu um monstro chamado excesso de liberdade. “Proibido proibir” era, e ainda é, a máxima que rege o convívio brasileiro. “Abaixo qualquer tipo de autoridade”; “Naõ ao limite, que interdita, cerceia e retira a livre expressão do pensamento”; Não questione, aceite; não pense, faça adesões, se não quiser ser visto como gente da direita reacionária. Para evitar isto, as pessoas se fecharam no bom mocismo. Mas, agora não dá mais para ficar em cima do muro. As urnas mostraram isto.

    • Luiz
      Não sou sociólogo, mas acredito se isso uma reverberação das revoluções estudantis de Maio de 1968 na França. Essa exata frase que você usou era um dos motes do movimento: “Il est interdit d’interdire”

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