Num dos últimos ambientes selvagens do planeta, desenrola-se uma luta de vida e morte entre homens e animais. De um lado, o mais bem-sucedido predador da Terra, o homem. Do outro, o mais imponente carnívoro das Américas e um dos ícones da biodiversidade ameaçada: a onça-pintada, o terceiro maior felino do mundo. O cenário é o Pantanal. O final feliz seria uma luta sem perdedores. E o seu resultado, lições para o desenvolvimento sustentável, cada vez mais necessárias como indica a enxurrada de notícias pessimistas apresentadas por todo canto neste Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado hoje.
O Pantanal, uma das reservas da Biosfera Mundial e Patrimônio Natural da Humanidade, é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do mundo e o local apropriado para quem quer ver animais selvagens no Brasil. Seu maior símbolo, a onça-pintada, quase desapareceu nas décadas de 1970 e 1980 por conta da intensa comercialização de sua pele para a indústria da moda. Hoje, elas estão de volta como marca do renascimento da natureza pantaneira, mas trazem consigo ameaças.
Bela, rara, esquiva e feroz, a onça-pintada se tornou o objeto de um estudo pioneiro sobre conservação, em que homens e animais tenham seus habitats respeitados. Pesquisadores do projeto Bichos do Pantanal, realizado pelo Instituto Sustentar de Responsabilidade Social com patrocínio da Petrobras, contabilizaram 52 onças numa extensão de 450 quilômetros às margens do Rio Paraguai, perto do município de Cáceres, no Mato Grosso. Desde 2008, o aumento do turismo na região e a maior proximidade com seres humanos acarretou o maior número de ataques contra humanos registrados no Brasil. Foram quatro investidas. Duas fatais.
É uma relação paradoxal. Se a presença da onça significa uma ameaça, representa também a base e o equilíbrio do ecossistema de onde os ribeirinhos retiram seu sustento. Sem as onças, o maior predador do Pantanal, animais como capivaras e veados proliferam, destroem a vegetação e deflagram uma cascata de desequilíbrios.
— O projeto Bichos do Pantanal foi lançado em 2013, mas a minha pesquisa na região tem cerca de oito anos. A minha grande preocupação é que mesmo com os ataques as pessoas continuam a dar comida para as onças e elas acabam por associar o homem a alimento — conta Douglas Trent, ecólogo que coordena o projeto. — Esse local é onde elas se reproduzem. É fácil ver filhotes por aqui e é por isso que elas ficam ainda mais agressivas. Monitorar as onças-pintadas é um desafio. Além de se locomover rapidamente, o felino não costuma permanecer muito tempo no mesmo lugar. A cada semana, animais diferentes aparecem.
Para saber quem é quem, Trent utiliza o padrão das manchas na testa do animal como uma impressão digital. São fotos tiradas por ele, mas qualquer cidadão comum com uma máquina fotográfica na mão pode ajudar. Com a plataforma Naturalist, hospedada no site do projeto, os cientistas têm acesso a qualquer imagem de animais da região postadas em mídias sociais.
— É uma forma fácil de colocar todos os dados do projeto na web. Todo mundo pode visualizar as fotos e os lugares onde foram tiradas. Isso facilita o trabalho de professores especializados na investigação dos animais — explica Chris Brown, chefe do Departamento de Ciências da Universidade do Kansas, parceira do projeto. — Antigamente, os cientistas tinham que capturar o bicho, usando tranquilizantes para colocar um colar de GPS e isso aumentava o risco de que caçadores utilizassem essas informações para matar os animais.
Com essa plataforma, organizamos os dados de forma que podemos entender o comportamento de animais e ajudar na sua preservação.
É com o conhecimento sobre o animal que eles esperam melhorar a convivência com os humanos. Mas, para isso, é preciso trabalhar também a educação ambiental. Além de buscar a proximidade com os moradores através de reuniões que visam a entender o que a comunidade precisa para se desenvolver economicamente aliando a preservação da natureza, há três meses Trent iniciou um projeto nos colégios da região. Por enquanto são cinco monitores que dão aulas para crianças de duas escolas municipais de Cáceres e fazem palestras em cerca de 80 instituições. Com binóculos, eles ensinam as espécies de pássaros e fazem passeios para mostrar a beleza da natureza que os cerca e que, muitas vezes, passa despercebida.
— O Brasil tem 80% de sua população vivendo nas cidades, mas 50 anos atrás a maior parte vivia no campo. De lá para cá houve uma desconexão completa com a natureza e isso não faz mal apenas para o meio ambiente, mas para a própria saúde dos homens — ressalta Trent. — Numerosas pesquisas mostram que o contato com a natureza estimula a inteligência e diminui o risco de depressão. Mas as pessoas não enxergam isso. No Rio, por exemplo, existem 410 espécies de aves, mas se você perguntar para algum morador da cidade qual a sua preferida, ele não vai saber dizer nenhuma. Temos que ensinar e destacar que somos parte da natureza e o desconhecimento sobre ela é a principal causa de sua agressão. Quando conhecemos, nos reconectamos e voltamos a ter o sentido de preservação
Para comemorar o Dia Mundial do Meio Ambiente, o barco do projeto, que geralmente fica a cerca de 200 quilômetros do centro da cidade, ancorou em Cáceres. Além de mostrar para a população local alguns resultados da pesquisa, Trent e sua equipe levaram cerca de 500 mudas nativas da região pantaneira doadas pelo Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) num trabalho de reflorestamento das margens do rio Paraguai, um dos principais do Pantanal e que enfrenta problemas com o assoreamento devido ao desmatamento de suas matas ciliares.
Por se tratar da maior planície alagável do mundo, o que significa que o seu cenário está em constante mudança, é difícil entender os limites e as subdivisões dentro do Pantanal mato-grossense. Como consequência, os trabalhos de manejo na região se baseiam em uma certa subjetividade, tornando os esforços para a manutenção do ecossistema menos contundentes.
Num trabalho para estabelecer critérios de mapeamento, um grupo de pesquisa liderado pelo Instituto de Geociência da Universidade de São Paulo (IGc/USP) se debruçou nos 200 mil quilômetros da região. A pesquisa, que tem apoio da Fapesp, utilizou imagens e dados de pluviosidade, armazenamento e evaporação de água de satélites da Nasa, estudos de movimentos tectônicos, métricas fenológicas (floração e brotação de plantas) e amostras de solo do período entre 2011 e 2012. Os resultados ainda não estão prontos, mas de acordo com Teodoro Almeida, coordenador do estudo, já foi possível perceber que as áreas que mais sofrem alterações ao longo do ano são as terras mais elevadas a norte e a leste, que recebem o maior volume de água.
Embora uma grande parte do Pantanal seja inundada anualmente, outras não conseguem reter a água durante o período de estiagem, o que faz com que a região tenha características de charcos, savanas, florestas e grandes áreas com predominância de uma única espécie vegetal. É dessa diversidade que nasce sua exuberância. •
Por Maria Clara Serra
Fotos: Douglas Trent
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