domingo, 7 de dezembro de 2014

O que a imprensa do Recife não conta sobre o Estelita



Grande parte dos veículos estaduais ignora a mobilização social contra o projeto Novo Recife e a ocupação nos armazéns do Cais José Estelita. 
 
 
No Intervozes 
 
por Intervozes — publicado 29/05/2014 00:05, última modificação 29/05/2014 10:19 
 
 
Vi o Mundo
Ocupe Estelita
A ocupação no cais Estelita, no Recife

Por Mariana Martins e Mariana Moreira*
Um dos professores mais antigos do curso de comunicação social da Universidade Federal de Pernambuco, Paulo Cunha, postou em sua página no Facebook: “Acho que amanhã vou no cemitério de Santo Amaro, fazer uma visita ao túmulo do jornalismo pernambucano”. 


Esta frase, escrita ainda no dia 22 de maio, pela manhã, dizia muito sobre o silêncio da imprensa de Pernambuco a respeito do início da demolição do Cais José Estelita, área histórica e um dos principais cartões-postais do Recife, e da ocupação feita por manifestantes, que impediram a demolição completa dos armazéns de açúcar, no fim da noite do dia 21. Atividades estão sendo realizadas e, último no fim de semana, a ocupação recebeu visitas e manifestações de apoio de recifenses ilustres. 


Pode-se dizer que a postagem de Cunha foi também um presságio do que viria. A ocupação já entra no seu sétimo dia, e o comportamento da maior parte da mídia local é o de ignorar a mobilização social contra o projeto Novo Recife e o acampamento permanente de dezenas de pessoas na área. Apenas um dos três jornais da capital noticiou linhas descontextualizadas sobre o fato. Nenhuma das matérias passava de seis parágrafos, insuficientes para contextualizar a história que existe desde 2008, e que em 2012 tomou novos rumos e ganhou novos atores.


Breve contextualização (tentando dar conta do que a mídia não conta)
O Recife está entre as cidades do Brasil em que houve maior valorização imobiliária nos últimos cinco anos. Esta valorização fez com que áreas antes “desvalorizadas”, do ponto de vista imobiliário, fossem alvo de especulações, principalmente áreas históricas e de preservação ambiental, como o Cais José Estelita e as poucas áreas de mangue que ainda sobreviviam na cidade. 


O Projeto Novo Recife prevê a construção de 12 torres de até 40 pavimentos no Cais José Estelita. O empreendimento é uma ação de um consórcio de grandes construtoras do estado, também chamado Consórcio Novo Recife, formado pelas empresas Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos. Assim como vários outros empreendimentos de grande impacto na capital pernambucana, o Projeto Novo Recife não foi antecedido do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), que, após feito, deve ser apresentado à população, para que possibilite o exercício da gestão democrática, como manda o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001.). 


Quando o Projeto Novo Recife chegou a conhecimento público, pessoas e organizações sociais passaram a se mobilizar para discutir formas de intervenções populares na discussão dos rumos e nos processos de ocupação da cidade. Desde 2012, o grupo “Direitos Urbanos – Recife”, de caráter não partidário, tem aglutinado e mobilizado manifestações, ocupações, audiências públicas, denúncias ao Ministério Público, dentre outras atividades para defender a área do Cais José Estelita. 


A área toda, além de sua beleza estética e de representar parte da identidade visual da cidade, tem grande valor histórico por permitir, ainda hoje, uma percepção de qual foi o padrão de ocupação da cidade que se consolidou ao longo do tempo. Em poucas palavras, o Cais José Estelita, sejamos contra ou a favor da sua demolição, é parte da história do Recife e uma discussão sobre os seus rumos não pode ser tangenciada exclusivamente pelos interesses do capital imobiliário e sem a devida transparência pública e participação social. Isso pode até soar démodé, mas ficou conhecido como democracia.



Para além da sociedade organizada, Ministério Público Federal, Estadual, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e alguns parlamentares também fazem parte da luta para que o poder do capital imobiliário não atropele os direitos urbanos da capital pernambucana, e defendem a ampliação do debate do entre poder público e sociedade na decisão dos rumos da cidade. Mesmo com uma constante mobilização social e com o projeto sendo questionado social e judicialmente, o Projeto Novo Recife avançou sombreado pelos interesses políticos e econômicos dos diversos atores envolvidos no processo e sob o silêncio cúmplice e conivente da mídia local. 



Na noite do último dia 21, foi iniciada a demolição dos armazéns de açúcar do Cais José Estelita. Imediatamente, manifestantes foram para o local e impediram a continuidade da demolição. No dia seguinte, a demolição foi oficialmente embargada por força de uma liminar do IPHAN, que alega descumprimento da celebração do Termo de Ajuste de Conduta entre o empreendedor e o instituto, que tenta garantir a proteção dos registros referentes à produção de conhecimento sobre a área em questão. O Ministério Público Federal, por sua vez, questiona a validade do leilão que deu ao consórcio a propriedade da referida área. 


Cobertura on-line dos principais jornais locais
Seguindo a linha da falta de informação dos jornais locais, nacionalmente as notícias sobre os manifestantes que montaram acampamento na área a ser demolida foram insignificantes, para não dizer inexistentes – visto que não houve, a princípio, um monitoramento dos veículos, mas também não há notícias de que o fato foi noticiado nacionalmente pelos principais veículos tradicionais. Dentro e fora do Recife, com exceção das redes sociais e blogs da imprensa alternativa, as pessoas seguem desinformadas sobre o que acontece em uma das áreas mais emblemáticas da cidade. 


Vale também uma contextualização sobre os principais veículos de mídia do Recife, e da força política que esta capital tem para a estrutura de comunicação regional de grandes emissoras do país. É no Recife que se encontra a sede da Rede Globo Nordeste, que é uma das cinco concessões da Rede Globo de Televisão no país, a única na região. São três os principais jornais locais: Jornal do Commercio, ligado ao grupo João Carlos Paes Mendonça (JCPM), um dos maiores grupos econômicos do Estado; Diário de Pernambuco, ligado aos Diários Associados; e a Folha de Pernambuco, ligada ao grupo EQM, que tem suas bases no setor sucroalcooleiro.


O Jornal do Commercio, único dos três principais jornais locais a noticiar o fato em sua versão eletrônica, deu ao todo, desde o último dia 21, cinco matérias em sua página na internet, sendo uma no dia 21, três no dia 22 e uma no dia 23.


Nas edições eletrônicas dos jornais Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco, as buscas pelas palavras-chave “Estelita”, “Cais José Estelita” e “Ocupe Estelita” não obtiveram como respostas matérias entre os dias 21 e 27 de maio.
As únicas cinco matérias do Jornal do Commercio, por sua vez, passam longe de informar sobre o que está acontecendo no Cais José Estelita e a mobilização contra o projeto Novo Recife. Apenas uma matéria tem um vídeo que mostra pessoas que estão no movimento “Ocupe Estelita”, mas o texto não traz uma declaração sequer de qualquer integrante do movimento. 



Uma das matérias afirma que os manifestantes não quiseram dar entrevista. Contudo, matérias do mesmo dia no site do G1 Pernambuco trazia declarações e documentos publicados pelo grupo. De uma forma geral, as matérias do JC são curtas e citam apenas o IPHAN, a exposição de motivos do órgão para suspender as obras, e o Consórcio Novo Recife por meio de notas emitidas pelo grupo. O mesmo não foi feito com as notas divulgadas pelo outro lado.



Apesar de não ter sido pauta de nenhum dos jornais locais, no domingo o Cais foi ocupado por dezenas de pessoas e foram organizadas atividades lúdicas e shows com apoiadores da ocupação. Outro fato importante ignorado pelos jornais foi a campanha que artistas locais estão promovendo nas redes sociais, com cartazes em apoio ao movimento e em defesa do patrimônio histórico. 


A cobertura da Globo Nordeste e seus veículos
Ao contrário dos jornais locais, o G1 Pernambuco foi o site com matérias mais contextualizadas, trazendo depoimentos e a exposição de motivos dos manifestantes do Ocupe Estelita. Contudo, a postura da TV não foi a mesma.
Uma das matérias mais questionáveis do ponto de vista jornalístico foi a exibida no NE TV 1ª Edição do dia 24 de maio, com o título Arquitetos do Novo Recife mostram vantagens do projeto para o Recife


A matéria é uma propaganda do projeto, em que somente os arquitetos do consórcio falam sem que nenhuma opinião divergente tenha sido ouvida. Inúmeros arquitetos e urbanistas também já se manifestaram publicamente contra a intervenção. Depois de três dias sem matérias sobre o fato, na tarde do dia 27, o NE TV 1ª Edição trouxe notícias das manifestações que ocorreram na véspera no acampamento. O foco da cobertura foi o engarrafamento causado pela mobilização na avenida em que fica o Cais.


O direito à informação e o lucro dos jornais
Uma breve análise sobre a infeliz constatação da morte do jornalismo pernambucano passa, logicamente, por uma leitura política dos fatos, mas, sobretudo, por uma leitura econômica do modelo de negócio do jornalismo. Esse modelo, que já dava sinal de inanição, deu sinal de falência, perdeu por completo a linha e sobrepôs desmedidamente o financiamento à atividade fim dos veículos, que é a notícia. 


Aqui, vale ressaltar, que não apenas o jornalismo pernambucano sofre desse mal, é verdade, mas este episódio foi capaz de revelar um amadorismo e uma subserviência inaceitáveis até mesmo ao que se pode chamar de padrões mínimos (se é que isso existe) do jornalismo. 


Não dar nenhuma linha sobre o ocorrido em suas páginas na internet (pois nesse veículo não se tem sequer a desculpa do espaço), como aconteceu em dois jornais citados, é deliberadamente o maior vexame que um veículo de comunicação pode acumular em sua história (vide contos da ditadura). 


Veicular descontextualizada e propagandisticamente a notícia, como fizeram dois outros veículos, é o segundo maior vexame que um veículo de comunicação pode dar. Nem mesmo a sofisticação da censura de outrora foi reivindicada por estes míseros e submissos veículos de propagada. A cobertura foi tão amadora que uma abordagem parcial passou a ser quase que louvável diante do silêncio. Constrangedor até para quem admite tal feito.


Felizmente, muitos comunicadores e jornalistas, censurados e mutilados nos veículos em que trabalham, estão bravamente apoiando a ocupação nas redes sociais e produzindo para sites alternativos. E, para além dos jornalistas, cidadãos/as do Recife que apoiam a causa tornaram-se cada um e cada uma produtores e difusores de informação em uma escala de dignidade incalculável pela mídia tradicional.


Enquanto isso, o silêncio dos veículos da capital pernambucana segue diretamente proporcional à quantidade de anúncios das imobiliárias nos classificados e por todos os lados, cantos e recantos dos folhetins do Recife.


* Mariana Martins é jornalista recifense e membro do Intervozes; Mariana Moreira é jornalista recifense.


Nenhum comentário: