Grande parte dos veículos estaduais ignora a mobilização social contra o
projeto Novo Recife e a ocupação nos armazéns do Cais José Estelita.
No
Intervozes
por Intervozes
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publicado
29/05/2014 00:05,
última modificação
29/05/2014 10:19
Vi o Mundo
Por Mariana Martins e Mariana Moreira*
Um dos professores mais antigos
do curso de comunicação social da Universidade Federal de Pernambuco,
Paulo Cunha, postou em sua página no Facebook: “Acho que amanhã vou no
cemitério de Santo Amaro, fazer uma visita ao túmulo do jornalismo
pernambucano”.
Esta frase, escrita ainda no dia 22 de maio, pela manhã,
dizia muito sobre o silêncio da imprensa de Pernambuco a respeito do
início da demolição do Cais José Estelita, área histórica e um dos
principais cartões-postais do Recife, e da ocupação feita por
manifestantes, que impediram a demolição completa dos armazéns de
açúcar, no fim da noite do dia 21. Atividades estão sendo realizadas e, último no fim de semana, a ocupação recebeu visitas e manifestações de apoio de recifenses ilustres.
Pode-se dizer que a postagem de Cunha foi também um presságio do que viria. A ocupação já entra no seu sétimo
dia, e o comportamento da maior parte da mídia local é o de ignorar a
mobilização social contra o projeto Novo Recife e o acampamento
permanente de dezenas de pessoas na área.
Apenas um dos três jornais da capital noticiou linhas
descontextualizadas sobre o fato. Nenhuma das matérias passava de seis
parágrafos, insuficientes para contextualizar a história que existe
desde 2008, e que em 2012 tomou novos rumos e ganhou novos atores.
Breve contextualização (tentando dar conta do que a mídia não conta)
O Recife está entre as cidades do Brasil em que
houve maior valorização imobiliária nos últimos cinco anos. Esta
valorização fez com que áreas antes “desvalorizadas”, do ponto de vista
imobiliário, fossem alvo de especulações, principalmente áreas
históricas e de preservação ambiental, como o Cais José Estelita e as
poucas áreas de mangue que ainda sobreviviam na cidade.
O Projeto Novo Recife prevê a construção de 12
torres de até 40 pavimentos no Cais José Estelita. O empreendimento é
uma ação de um consórcio de grandes construtoras do estado, também
chamado Consórcio Novo Recife, formado pelas empresas Moura Dubeux,
Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos. Assim como
vários outros empreendimentos de grande impacto na capital pernambucana,
o Projeto Novo Recife não foi antecedido do Estudo de Impacto de
Vizinhança (EIV), que, após feito, deve ser apresentado à população,
para que possibilite o exercício da gestão democrática, como manda o
Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de Julho de 2001.).
Quando o Projeto Novo Recife
chegou a conhecimento público, pessoas e organizações sociais passaram a
se mobilizar para discutir formas de intervenções populares na
discussão dos rumos e nos processos de ocupação da cidade. Desde 2012, o
grupo “Direitos Urbanos – Recife”, de caráter não partidário, tem
aglutinado e mobilizado manifestações, ocupações, audiências públicas,
denúncias ao Ministério Público, dentre outras atividades para defender a
área do Cais José Estelita.
A área toda, além de sua beleza estética e
de representar parte da identidade visual da cidade, tem grande valor
histórico por permitir, ainda hoje, uma percepção de qual foi o padrão
de ocupação da cidade que se consolidou ao longo do tempo. Em poucas
palavras, o Cais José Estelita, sejamos contra ou a favor da sua
demolição, é parte da história do Recife e uma discussão sobre os seus
rumos não pode ser tangenciada exclusivamente pelos interesses do
capital imobiliário e sem a devida transparência pública e participação
social. Isso pode até soar démodé, mas ficou conhecido como democracia.
Para além da sociedade
organizada, Ministério Público Federal, Estadual, Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e alguns parlamentares
também fazem parte da luta para que o poder do capital imobiliário não
atropele os direitos urbanos da capital pernambucana, e defendem a
ampliação do debate do entre poder público e sociedade na decisão dos
rumos da cidade. Mesmo com uma constante mobilização social e com o
projeto sendo questionado social e judicialmente, o Projeto Novo Recife
avançou sombreado pelos interesses políticos e econômicos dos diversos
atores envolvidos no processo e sob o silêncio cúmplice e conivente da
mídia local.
Na noite do último dia 21, foi
iniciada a demolição dos armazéns de açúcar do Cais José Estelita.
Imediatamente, manifestantes foram para o local e impediram a
continuidade da demolição. No dia seguinte, a demolição foi oficialmente
embargada por força de uma liminar do IPHAN, que alega descumprimento
da celebração do Termo de Ajuste de Conduta entre o empreendedor e o
instituto, que tenta garantir a proteção dos registros referentes à
produção de conhecimento sobre a área em questão. O Ministério Público
Federal, por sua vez, questiona a validade do leilão que deu ao
consórcio a propriedade da referida área.
Cobertura on-line dos principais jornais locais
Seguindo a linha da falta de
informação dos jornais locais, nacionalmente as notícias sobre os
manifestantes que montaram acampamento na área a ser demolida foram
insignificantes, para não dizer inexistentes – visto que não houve, a
princípio, um monitoramento dos veículos, mas também não há notícias de
que o fato foi noticiado nacionalmente pelos principais veículos
tradicionais. Dentro e fora do Recife, com exceção das redes sociais e
blogs da imprensa alternativa, as pessoas seguem desinformadas sobre o
que acontece em uma das áreas mais emblemáticas da cidade.
Vale também uma contextualização
sobre os principais veículos de mídia do Recife, e da força política que
esta capital tem para a estrutura de comunicação regional de grandes
emissoras do país. É no Recife que se encontra a sede da Rede Globo
Nordeste, que é uma das cinco concessões da Rede Globo de Televisão no
país, a única na região. São três os principais jornais locais: Jornal do Commercio, ligado ao grupo João Carlos Paes Mendonça (JCPM), um dos maiores grupos econômicos do Estado; Diário de Pernambuco, ligado aos Diários Associados; e a Folha de Pernambuco, ligada ao grupo EQM, que tem suas bases no setor sucroalcooleiro.
O Jornal do Commercio, único
dos três principais jornais locais a noticiar o fato em sua versão
eletrônica, deu ao todo, desde o último dia 21, cinco matérias em sua
página na internet, sendo uma no dia 21, três no dia 22 e uma no dia 23.
Nas edições eletrônicas dos jornais Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco,
as buscas pelas palavras-chave “Estelita”, “Cais José Estelita” e
“Ocupe Estelita” não obtiveram como respostas matérias entre os dias 21 e
27 de maio.
As únicas cinco matérias do Jornal do Commercio,
por sua vez, passam longe de informar sobre o que está acontecendo no
Cais José Estelita e a mobilização contra o projeto Novo Recife. Apenas
uma matéria tem um vídeo que mostra pessoas que estão no movimento
“Ocupe Estelita”, mas o texto não traz uma declaração sequer de qualquer
integrante do movimento.
Uma das matérias afirma que os manifestantes
não quiseram dar entrevista. Contudo, matérias do mesmo dia no site do G1 Pernambuco trazia declarações e documentos publicados pelo grupo. De uma forma geral, as matérias do JC
são curtas e citam apenas o IPHAN, a exposição de motivos do órgão para
suspender as obras, e o Consórcio Novo Recife por meio de notas
emitidas pelo grupo. O mesmo não foi feito com as notas divulgadas pelo
outro lado.
Apesar de não ter sido pauta de
nenhum dos jornais locais, no domingo o Cais foi ocupado por dezenas de
pessoas e foram organizadas atividades lúdicas e shows com apoiadores da ocupação. Outro fato importante ignorado pelos jornais foi a campanha que artistas locais estão promovendo nas redes sociais, com cartazes em apoio ao movimento e em defesa do patrimônio histórico.
A cobertura da Globo Nordeste e seus veículos
Ao contrário dos jornais locais, o G1 Pernambuco
foi o site com matérias mais contextualizadas, trazendo depoimentos e a
exposição de motivos dos manifestantes do Ocupe Estelita. Contudo, a
postura da TV não foi a mesma.
Uma das matérias mais questionáveis do ponto de vista jornalístico foi a exibida no NE TV 1ª Edição do dia 24 de maio, com o título Arquitetos do Novo Recife mostram vantagens do projeto para o Recife.
A matéria é uma propaganda do projeto, em que somente os arquitetos do
consórcio falam sem que nenhuma opinião divergente tenha sido ouvida.
Inúmeros arquitetos e urbanistas também já se manifestaram publicamente
contra a intervenção. Depois de três dias sem matérias sobre o fato, na
tarde do dia 27, o NE TV 1ª Edição trouxe notícias das
manifestações que ocorreram na véspera no acampamento. O foco da
cobertura foi o engarrafamento causado pela mobilização na avenida em
que fica o Cais.
O direito à informação e o lucro dos jornais
Uma breve análise sobre a
infeliz constatação da morte do jornalismo pernambucano passa,
logicamente, por uma leitura política dos fatos, mas, sobretudo, por uma
leitura econômica do modelo de negócio do jornalismo. Esse modelo, que
já dava sinal de inanição, deu sinal de falência, perdeu por completo a
linha e sobrepôs desmedidamente o financiamento à atividade fim dos
veículos, que é a notícia.
Aqui, vale ressaltar, que não apenas o
jornalismo pernambucano sofre desse mal, é verdade, mas este episódio
foi capaz de revelar um amadorismo e uma subserviência inaceitáveis até
mesmo ao que se pode chamar de padrões mínimos (se é que isso existe) do
jornalismo.
Não dar nenhuma linha sobre o
ocorrido em suas páginas na internet (pois nesse veículo não se tem
sequer a desculpa do espaço), como aconteceu em dois jornais citados, é
deliberadamente o maior vexame que um veículo de comunicação pode
acumular em sua história (vide contos da ditadura).
Veicular
descontextualizada e propagandisticamente a notícia, como fizeram dois
outros veículos, é o segundo maior vexame que um veículo de comunicação
pode dar. Nem mesmo a sofisticação da censura de outrora foi
reivindicada por estes míseros e submissos veículos de propagada. A
cobertura foi tão amadora que uma abordagem parcial passou a ser quase
que louvável diante do silêncio. Constrangedor até para quem admite tal
feito.
Felizmente, muitos
comunicadores e jornalistas, censurados e mutilados nos veículos em que
trabalham, estão bravamente apoiando a ocupação nas redes sociais e
produzindo para sites alternativos. E, para além dos jornalistas,
cidadãos/as do Recife que apoiam a causa tornaram-se cada um e cada uma
produtores e difusores de informação em uma escala de dignidade
incalculável pela mídia tradicional.
Enquanto isso, o silêncio dos
veículos da capital pernambucana segue diretamente proporcional à
quantidade de anúncios das imobiliárias nos classificados e por todos os
lados, cantos e recantos dos folhetins do Recife.
* Mariana Martins é jornalista recifense e membro do Intervozes; Mariana Moreira é jornalista recifense.
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