Nós sempre pensamos que as pessoas vão para o crime porque não conseguem um trabalho legal. Mas a chance maior em um país como o Brasil é que as pessoas vão para mercado de trabalho legal porque não conseguem uma vaga no crime.
Sim, o que eu disse é chocante. Mas se você acompanhar meu raciocínio verá que todos os indícios apontam nesta direção.
Caso 1
Vamos supor que você seja, sei lá, padeiro e confeiteiro há dez anos. Hoje de manhã cedo você chegou em seu local de trabalho e recebeu a notícia de que a padaria faliu. Você voltou para casa preocupado, porque o dinheiro que tem de reserva numa gaveta não é suficiente nem para cobrir o próximo aluguel. E tratou de já no primeiro dias procurar outra padaria onde trabalhar.Dois meses depois, trinta e poucos currículos distribuídos depois, você está sem um centavo no bolso, já vendeu a sua bicicleta para um amigo que prometeu revendê-la de volta pelo mesmo preço se você quiser e o seu celular já está pai-de-santo, só recebe.
Você vai pegar uma arma, sair caminhando por algum bairro pouco movimentado, abordar um desconhecido e “perdeu, perdeu, cala a boca, me passa a carteira, o celular e o relógio e sai fora, vamos, vamos, vamos!”?
Acho que não, né?
Mas vamos supor que fosse o caso.
Quanto tempo você acha que conseguiria repetir o mesmo golpe antes de encontrar pela frente uma vítima que reaja, um policial à paisana, uma viatura que ia passando por perto e foi informada ou os criminosos que já dominam a região?
As cidades já estão completamente loteadas pelo crime organizado. Existem mapas de posse de território e pontos de crime estabelecidos. Ladrões, receptadores, traficantes e trambiqueiros controlam e defendem pelas armas estes territórios.
Nem mesmo a prostituição de rua trabalha
sem pagar proteção ao dono da quadra, sejam prostitutas, michês ou travestis.
Muito menos o crime organizado haveria de permitir a presença de “empreendedores independentes” explorando a mesma clientela.
Você teria sorte se fosse mandado sumir do mapa ao invés de ser sumido do mapa.
Isso acontece porque o mercado do crime já está saturado. Não é que não vá aumentar – vai – mas todo aumento nas vagas do crime pressupõe uma pressão de demanda por território e por defesa de território – uma competição que no caso do crime só pode ser resolvida pela violência, uma vez que o sistema judiciário nacional é legalmente incompetente para dirimir conflitos de natureza ilegal (você não pode ir ao PROCON reclamar que o traficante lhe vendeu chá de macela ao invés de maconha e exigir a substituição da mercadoria ou a devolução do dinheiro).
Se você insistir em tentar sobreviver do crime, ou você será morto, ou terá que se embrutecer muito para defender o seu espaço, ou terá que se contentar com um “mercado” extremamente marginal e paupérrimo, como um descuidista-ambulante-quase-mendigo. E digo “quase” porque até entre mendigos existe competição violenta pelos territórios e pontos de esmola.
Chega uma hora que só resta mesmo procurar um biscate ou um (argh!) emprego, que em geral é a opção mais trabalhosa, mais exigente, mais subserviente, mais limitante de horários, menos rentável financeiramente e menos realizadora de todas, tanto que do ponto de vista de muitos é pior até que ser mendigo, porque mendigo não leva broncas humilhantes nem punições disciplinares por chegar tarde ao trabalho ou por cometer algum erro.
Você sabe quem são estes indivíduos.
Muito menos o crime organizado haveria de permitir a presença de “empreendedores independentes” explorando a mesma clientela.
Você teria sorte se fosse mandado sumir do mapa ao invés de ser sumido do mapa.
Isso acontece porque o mercado do crime já está saturado. Não é que não vá aumentar – vai – mas todo aumento nas vagas do crime pressupõe uma pressão de demanda por território e por defesa de território – uma competição que no caso do crime só pode ser resolvida pela violência, uma vez que o sistema judiciário nacional é legalmente incompetente para dirimir conflitos de natureza ilegal (você não pode ir ao PROCON reclamar que o traficante lhe vendeu chá de macela ao invés de maconha e exigir a substituição da mercadoria ou a devolução do dinheiro).
Se você insistir em tentar sobreviver do crime, ou você será morto, ou terá que se embrutecer muito para defender o seu espaço, ou terá que se contentar com um “mercado” extremamente marginal e paupérrimo, como um descuidista-ambulante-quase-mendigo. E digo “quase” porque até entre mendigos existe competição violenta pelos territórios e pontos de esmola.
Chega uma hora que só resta mesmo procurar um biscate ou um (argh!) emprego, que em geral é a opção mais trabalhosa, mais exigente, mais subserviente, mais limitante de horários, menos rentável financeiramente e menos realizadora de todas, tanto que do ponto de vista de muitos é pior até que ser mendigo, porque mendigo não leva broncas humilhantes nem punições disciplinares por chegar tarde ao trabalho ou por cometer algum erro.
Você sabe quem são estes indivíduos.
É o auxiliar de pedreiro que rouba o celular do dono da casa em que o pedreiro está trabalhando.
É o funcionário da lancheria que leva um bife para casa enrolado dentro de um saco plástico transportado dentro da cueca.
É a doméstica que furta uma lata de leite condensado da despensa da patroa e a leva para casa na bolsa.
É aquele trabalhador que nunca está contente em serviço nenhum, não faz nada com boa vontade, não cumpre determinações direito e acaba sendo dispensado ou está permanentemente de licença-saúde no bar da esquina, sem camisa, de bermudas frouxas e havaianas, jogando sinuca com um cigarro na mão e um copo de cerveja na borda da mesa.
É gente que não presta nem para o crime, então vai entulhar o mercado legal com sua mão-de-obra sem qualidade, sem vontade e sem confiabilidade.
Caso 2
Agora vamos percorrer o caminho inverso.Vamos supor que você seja, sei lá, traficante há dez anos.
Já puxou uma cana de dois anos e meio, voltou com moral pra boca porque nunca abriu o bico pra falar nada de ninguém e sempre foi camarada com os manos enquanto estava “guardado”.
Mas um dia sumiu um pacote de pedra e dois de pó, preju pra mais de duzentos contos de réis, e a responsabilidade era sua. Alguém te sacaneou legal, normalmente você seria morto, mas você teve sorte porque sempre foi de confiança e foi apenas mandado desaparecer pra sempre. Hoje.
Aí você foge com a roupa do corpo para a casa de uma tia que mora numa vila-satélite de um bairro industrial lá na casa do capeta, na Conchinchina do Mato Adentro.
Como a única padaria da vila não faz confeitos e você por acaso foi criado por uma falecida tia que fazia salgadinhos e confeitos para festas, você começa a fazer alguns salgadinhos e confeitos e vendê-los como ambulante, próximo à parada de ônibus da vila industrial.
E, puxa!, o padeiro não vem meter bala na sua cara.
Você pede um alvará e recebe uma visita do fiscal da prefeitura, não da polícia para lhe dar uns safanões e tomar toda a sua mercadoria.
Você trabalha à luz do dia, sóbrio, lúcido, tem sua carteira de identidade no bolso, fica anos e anos com o mesmo número de celular, tem residência fixa, conta no banco e crédito para comprar um carrinho popular.
Mas principalmente você tem uma perspectiva de vida. Você provavelmente estará vivo daqui a vinte anos, e seus filhos também.
O que tem de errado nessa história?
Não sei se você percebeu, mas nos dois casos hipotéticos acima você se daria muito mal no mundo do crime e muito melhor – ainda que não ficasse completamente satisfeito – no mundo civilizado. E a tendência realmente é sempre essa.Então, por que na realidade é fácil verificar que a demanda reprimida do crime é muito maior que a demanda reprimida do trabalho honesto?
Repetindo: é fácil verificar que a demanda reprimida do crime é muito maior que a demanda reprimida do trabalho honesto.Basta você se perguntar o seguinte: se os padeiros se matassem entre si e fossem mortos pela polícia na mesma proporção com que os criminosos se matam entre si e são mortos pela polícia, você acha que ainda existiriam padeiros no Brasil?
Quem seria auxiliar de pedreiro se os auxiliares de pedreiro se matassem entre si ou fossem mortos pela polícia nas mesmas proporções que os traficantes se matam entre si ou são mortos pela polícia?
Quem seria entregador de pizza se os entregadores de pizza se matassem entre si ou fossem mortos pela polícia nas mesmas proporções que os assaltantes se matam entre si ou são mortos pela polícia?
Ninguém, né?
Mas traficantes e assaltantes são mortos em taxas estratosfericamente superiores em relação a qualquer outra atividade e mesmo assim a demanda por vagas no tráfico e no roubo é tanta que ninguém jamais ouviu falar de uma boca de tráfico que tenha fechado por falta de funcionários ou de um bairro em que que ninguém nunca tenha sofrido um assalto por falta de ladrões.
Já no setor legal da economia…
Falta de mão de obra especializada se agrava e atinge 91% das empresas
“Uma pesquisa da Fundação Dom Cabral mostra que 91% das companhias pesquisadas têm dificuldade na contratação de profissionais, especialmente para vagas de compradores, técnicos, administradores, gerente de projetos e trabalhador manual.”
Texto completo: Estadão.
Falta mão de obra qualificada no mercado
“Ainda segundo os dados da pesquisa do CNI, as empresas têm enfrentado o problema de diversas formas, por exemplo; 78% das empresas pesquisadas capacitam o profissional dentro da própria companhia, 40% delas fortaleceram suas políticas de retenção de talentos, 33% delas buscam a capacitação de seus profissionais fora da empresa, através de empresas de Educação e Treinamento Profissional.”
Texto completo: TecHoje.
Falta de mão de obra qualificada afeta 65% das empresas, diz CNI
“De acordo com a pesquisa, 68% das empresas afirmaram ter dificuldade para encontrar profissionais preparados na área administrativa, 67% informaram déficit de contratação de engenheiros, 61% de profissionais de venda e marketing, 60% para postos gerenciais e 59% para trabalhadores na área de pesquisa e desenvolvimento.
Para superar a escassez de mão de obra qualificada, segundo a CNI, as empresas têm investido na capacitação dos próprios funcionários. De acordo com o levantamento, 81% das empresas informaram que desenvolvem programas de treinamento, 43% investem na política de retenção do trabalhador, com oferta de bons salários e benefícios, e 38% promovem capacitações fora das empresas.
Algumas empresas (24%) adotam a estratégia de substituir a mão de obra humana por máquinas. Essa solução é usada por 26% entre as de pequeno porte, 24% entre as médias e 21% entre as grandes.”
Texto completo: Brasil Econômico (iG).
Escancarando o absurdo
Você percebeu?Existe uma imensa demanda por vagas no crime, a ponto de o setor se permitir o luxo de matar dezenas de milhares de funcionários por ano.
O crime não têm contrato de trabalho escrito, não têm férias remuneradas, não têm décimo-terceiro, não têm plano de saúde, não tem vale-alimentação, não tem vale-transporte, não tem seguro-desemprego, não tem nem garantia de vida – pelo contrário, o crime mata seus próprios funcionários o tempo todo – e mesmo assim é procurado por dezenas de milhares de novos interessados em suas vagas todos os dias.
Já as empresas oferecem todas estas vantagens e estão desesperadas à cata de funcionários, com dezenas de milhares de vagas abertas e não preenchidas.
O crime tem muito mais demanda que o trabalho honesto.
Por quê?
Porque o Brasil é uma imensa fábrica de criminosos.
A Fábrica de Criminosos Brasil S. A.
O moleque pobre nasce em um ambiente degradado moral, física e economicamente. Ele não recebe nutrição adequada, bebe leite materno com álcool e cocaína; não recebe estímulos intelectuais adequados, só ouve funk e outros lixos pornográficos e apologéticos da violência; não cresce em uma família estruturada, normalmente é criado só pela mãe ou pela avó, com alguma ajuda das tias e irmãos mais velhos; não recebe assistência alguma do Estado, tudo que ele tem de serviço estatal é a polícia lhe dando uma dura sempre que o vê. E isso tudo é apenas a ponta do iceberg.O moleque pobre tem esfregadas no nariz desde criança sua completa miséria e falta de valor.
Sua cidadania não é apenas negada, ela não é sequer lembrada.
Nunca existiu, a não ser na forma de pequenos lampejos de oportunidade devidos ao interesses da cambada de canalhas e ladrões que infectam e dominam os Três Poderes da União, o Quarto Poder e boa parte do Terceiro Setor. Vale-Gás. Bolsa-Família. Desarmamento. Cotas. Copa do Mundo.
Enquanto isso o moleque pobre cresce sem valores e sem valor. Não é só a falta de recursos materiais. É a falta de respeito em cada minuto de seu cotidiano e a falta de perspectiva em cada minuto de sua vida.
É a comparação entre como ele é tratado e como outros estratos da sociedade são tratados. É o pé na porta e a invasão de sua casa, enquanto em outras casas a polícia só entra com mandato. É o Estado mentir e matar o seu cachorrinho para o BOPE poder subir o morro à noite sem que ninguém diga que isso é errado, enquanto qualquer vira-latas de rua é defendido ardorosamente na internet. É o bar da favela ser fechado aos pontapés à meia-noite enquanto o bar da avenida não é incomodado.
É a escola não ter giz na sala de aula, não ter água no banheiro, não ter calçamento no pátio e não ter utilidade nenhuma para a vida. É a rua não ter saneamento básico. É viver no meio do lixo. É ter que acordar às três da madrugada para disputar uma ficha de atendimento num posto de saúde.
É ir para o trabalho em pé e apertado em um ônibus lotado até o teto e quente como o inferno. É só poder comprar smartphone marca Diabo, de camelô. É ver todos os dias na TV dezenas de objetos de desejo que ele sabe que nunca poderá comprar com o que chamam de “salário honesto”, mas que ele poderá comprar com o dinheiro do crime.
É ter necessidades e desejos e não conseguir satisfazê-los por mais que se esforce. É não ter perspectivas nem esperanças. É ter a frustração cíclica de ver os políticos prometerem que vai começar a viver melhor antes de cada eleição e ver sua vida permanecer a mesmíssima porcaria depois de cada eleição.
É não ter um bom exemplo em casa, nem na comunidade em que vive, nem uma orientação decente na escola. É ser exposto a todo tipo de pornografia, de violência e de desregramento desde a mais tenra infância. É não ter a menor oportunidade de imaginar um mundo decente porque os valores a seu redor ou são corrompidos ou são inexistentes.
É a completa falta de cidadania desde o berço.
Um indivíduo que é mal nutrido, mal orientado, mal educado, mal amado, mal tratado e desrespeitado assim desde criança, cuja visão de mundo se forma em um ambiente degradado, sob os piores exemplos da família, das amizades, da vizinhança, da escola, do mercado e do Estado, sem ver nenhuma recompensa pela honestidade a não ser um salário miserável, submissão, humilhação e frustração, enquanto o crime lhe dá muito maior acesso econômico, liberdade e autonomia, vai se tornar um cidadão honesto e produtivo como e por quê?
Dadas as informações que ele tem sobre o mundo, ir para o crime é tanto a tendência natural quanto a decisão mais racional. Ele não tem como tirar do nada a idéia inimaginável de fazer um curso de mecatrônica para disputar uma vaga técnica. (Meca-o-quê?)
Se tivesse a idéia, não teria nem o desenvolvimento cognitivo nem a disciplina necessária para se dedicar a um projeto de tão longo prazo. Se tivesse estas características, não teria tempo para fazer o curso, pois não teria como estudar e se sustentar durante o curso.
Se tivesse condições para tudo isso e conseguisse se formar, não teria jamais o acesso econômico, a liberdade e a autonomia que o crime proporciona, nem qualquer motivação para sacrificar sua melhor oportunidade para garantir a segurança e o conforto de quem nunca lhe garantiu nada.
É óbvio que ele vai para o crime.
E você achava que a tendência era que os mais capazes e competentes fossem para o mercado de trabalho legal e os menos capazes e competentes fossem para o crime. Nada disso. Quem é fabricado sem cidadania tem o crime como primeira ou única opção.
26 de fevereiro de 2014
Arthur Golgo Lucas
BLOG Lorotas políticas e verdades efêmeras
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