Periferia
Apesar do discurso oficial, não é saudável sentir
cheiro de esgoto, viver em área de risco, conviver com ratos e demorar 3
horas para chegar ao subemprego
por Joseh Silva
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publicado
26/02/2014 12:09 Carta Capital
Na edição de domingo 23, o programa semanal Fantástico,
da Rede Globo, exibiu uma reportagem que revelava o resultado da
pesquisa aplicada pelo Instituto Data Popular sobre pessoas que não
querem sair de suas comunidades. Moradores de 66 favelas de 10 estados
do País responderam às questões.
A matéria fez recortes de histórias e personagens que
dialogam diretamente com a falácia da nova classe média – o legado do
governo Lula e a garantia de reeleição de Dilma Rousseff. Claramente é
um apontamento para maquiar o que de fato acontece em favelas de todo o
Brasil.
O tom da narrativa da reportagem é de fora para
dentro. Sem novidades. Na prática, é uma apresentação institucional das
favelas para os gringos que já estão embarcando para a “pátria amada”:
“olha como eles comem”, “vejam como se divertem”, “casas assim são
comuns”. Pois é: eles não mordem (não precisa fechar o vidro dos
carros), gostam de onde moram, não vão sair do gueto, da senzala. Não
irão mexer com vocês.
Desde a confirmação de que a Copa do Mundo
aconteceria no Brasil, a emissora vem fazendo constantes esforços para
mostrar que a favela é formidavelmente exótica.
Apela para a produção de
novelas nos morros do Rio e mostra histórias surpreendentes de pessoas
de comunidades em programas como Caldeirão do Huck, Esquenta e Faustão.
E
opta por não evidenciar que só o fato de a favela existir já é um
sintoma social: as coisas não estão da forma como deveriam estar.
O Brasil passa por um momento de hipocrisias. A mídia
convencional cumpre à risca o plano de manipulação de massa. O governo
federal não se pronuncia sobre questões contemporâneas de expressão
social: o genocídio da juventude pobre e negra; a desmilitarização da
Policia Militar, as demarcações de terras indígenas e quilombolas.
Não assumindo posicionamentos, o governo corrobora
com a violência institucionalizada que vem acontecendo diariamente nas
periferias, que passam por tempos de cárcere social. Quem mora nas
favelas não pode ficar na rua depois das 22 horas, pois corre o risco de
morte, de apanhar, de sumir e de ser agredido psicologicamente.
Na
mesma sexta-feira em que policias agredem jovens negros na periferia, na
Vila Madalena, em Pinheiros, nos Jardins se pode ficar a noite inteira
na rua.
Isso ilustra uma situação. Há, no mínimo, duas formas
de tratamento da população no estado de São Paulo: para a burguesia, a
policia serve e protege; para a periferia, age com opressão e violência.
Ainda sobre a reportagem, o que chama a atenção são os personagens.
Um nordestino que foi tentar a vida no Rio
de Janeiro e conseguiu estruturar dois restaurante com uma “generosa
clientela” na Rocinha, maior favela da América Latina. Favela onde
circulam mais turistas no estado. Um jovem que vive de eventos
organizados nas comunidades. Uma moradora que instalou uma piscina no
fundo da casa.
É a afirmação do paradigma: o dinheiro traz felicidade.
Se a sensação implantada é essa, reclamar pra quê?
Obviamente, quem vive nesta condições em numa favela não
vai sair. Mas é só questionar uma senhora que teve seus filhos agredidos
ou assassinados se ela deseja continuar na favela. Será que quem passa
por ameaça de remoção por conta da Copa, ou está pagando absurdo de
aluguel, quer morar na favela?
O plano segue com perfeição: os 11 anos de incentivo pesado
na inclusão pelo consumo têm efeitos colaterais desanimadores. O
discurso do senso comum é disseminado em qualquer roda de conversa:
"Lógico, tio. Quem não quer fazer um 'rolezinho' com as
novinhas, por um tênis dos mais caro, boné e camisa pesadona, colar no
fluxo pesadão, tá ligado. E carro? E moto? Tudo zero, 'fião´'”, diz o
Adolescente Renan Cordeiro, 17 anos, Morador da Vila Calú, extremo sul
de São Paulo.
Maria da Dores, a Dorinha, sente orgulho ao olhar
para a casa e observar tudo o que conquistou. “Esse armário comprei em
10 prestações, terminei de pagar faz três meses e já está todo mofado.
Aqui não tem ventilação. O sofá paguei em três vezes e a geladeira
consegui numa promoção junto com a máquina de lavar, dei muita sorte.
Não é com todo mundo que isso acontece não.”
Renan parou de estudar na sétima série. Apesar de andar na “picadilha”,
mora com a mãe e mais três irmãos em um barraco de um cômodo dividido
por um guarda-roupas. O fogão é sustentado por blocos. Perto da sua
porta há um córrego. Saneamento básico nunca existiu. Mesmo assim tem
sonhos de consumo: “tio, quero uma Hornet, ai ninguém me segura”.
Assim como Renan, Dorinha também parou de estudar no
ensino fundamental, mas pensa em concluir os estudos. O maior desejo é
"comprar uma casinha fora da favela".
Apesar da casa mobiliada com a linha branca e
televisão de 46",queixa-se das escadarias que precisa subir e descer
todos os dias para sair e chegar em casa, das dores nas pernas, do som
alto do vizinho adolescente; do medo de desabamento em dia de chuva - o
lugar onde ela mora, aconteceu um desmoronamento em 2004, e do preço do
aluguel: "homi, é muita caro, né? Uma casa de três cômodos na favela,
neste lugar, custando 500 reais. E o dono ainda quer aumentar. Só não
fez porque é gente boa".
A inquietação de Maria da Dores não é pontual nem
restrita à situação de uma favela. A especulação imobiliária vem
sistematicamente afastando cada vez mais quem não tem condições de pagar
aluguéis astronômicos para as bordas das grandes cidades. Hoje, ter
casa na favela para alugar é garantia de aposentadoria.
A felicidade pautada na perspectiva do consumo é o
reflexo de um modelo de desenvolvimento que prioriza as relações com
grandes empresas, multinacionais e bancos. Ou seja, onde tem capital há
interesse. Segundo o Data Popular, as favelas geram por ano cerca 63
bilhões de reais. Por isso vale a pena mostrar a favela como um lugar
formidável.
Os recursos não permanecem nas favelas. O ciclo da
economia gira em torno das grandes redes. Vale a pena colocar uma Besni,
um Itaú e uma Casas Bahia em uma favela: em alguns estados o governo
oferece como contrapartida isenção de imposto para as empresas - uma
espécie de insalubridade, a mão de obra é barata, o povo paga as contas
em dia, mesmo com a geladeira, adquirida por pressão no intervalo da
novela, que anunciava a redução do IPI, vazia.
Encher a geladeira nova ainda é um sonho, e para
realizá-lo, há pessoas que continuam pegando resto de comida em lixos de
condomínios – dias de terça, quarta e sexta-feira, Dona Rute, moradora
do Capão Redondo, fica até 2h da madrugada vasculhando lixos em busca de
materiais recicláveis, e torcendo para achar comida. Adolescentes estão
olhando carros nas feiras de rua para ajudar no orçamento da família –
nas pontas das feiras, há sempre jovens esperando um veículo encostar
para dar uma olhada.
Pessoas ainda estão morando em áreas de mananciais e
de risco – haja vista as ocupações em regiões da represa Guarapiranga e
Billings.
O crescimento desordenado continua. A juventude periférica
ainda é tratada com preconceitos e vem sendo exterminada com o aval do
governo – segundo a Secretaria de Segurança Pública, mais de 500 jovens
foram assassinados em 2012. Há comunidades onde não tem saneamento
básico – como o bairro Chácara Bandeirantes, distrito do Jardim Ângela.
É de extrema crueldade maquiar fatos tão importantes
sobre a vida em favelas do Brasil. Pois é necessária a presença dos
governos nas comunidades para executar políticas públicas de segurança,
educação, cultura, saúde e lazer. Não dá para ficar à mercê
do "jeitinho brasileiro". Não é saudável acordar sentindo cheiro de
esgoto, viver em uma casa que a qualquer momento pode desmoronar,
dividir espaço com ratos, demorar três horas para chegar a um
subemprego.
A periferia não pode aceitar o discurso mentiroso
sobre a nova classe média. Não tem como ignorar o fato de que a educação
é um negócio, que é importante ter um sistema público educacional ruim
para favorecer o mercado da rede particular de ensino (o mesmo vale para
o sistema público de saúde).
Ninguém está falando de uma elite que
explora 80% da população. Mentiras não devem ser transformadas em
verdades: a nova classe média é utópica.
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