quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A nova classe média é utópica



Periferia


Apesar do discurso oficial, não é saudável sentir cheiro de esgoto, viver em área de risco, conviver com ratos e demorar 3 horas para chegar ao subemprego 
 
por Joseh Silva publicado 26/02/2014  12:09     Carta Capital

Na edição de domingo 23, o programa semanal Fantástico, da Rede Globo, exibiu uma reportagem que revelava o resultado da pesquisa aplicada pelo Instituto Data Popular sobre pessoas que não querem sair de suas comunidades. Moradores de 66 favelas de 10 estados do País responderam às questões.

A matéria fez recortes de histórias e personagens que dialogam diretamente com a falácia da nova classe média – o legado do governo Lula e a garantia de reeleição de Dilma Rousseff. Claramente é um apontamento para maquiar o que de fato acontece em favelas de todo o Brasil.

O tom da narrativa da reportagem é de fora para dentro. Sem novidades. Na prática, é uma apresentação institucional das favelas para os gringos que já estão embarcando para a “pátria amada”: “olha como eles comem”, “vejam como se divertem”, “casas assim são comuns”. Pois é: eles não mordem (não precisa fechar o vidro dos carros), gostam de onde moram, não vão sair do gueto, da senzala. Não irão mexer com vocês.

Desde a confirmação de que a Copa do Mundo aconteceria no Brasil, a emissora vem fazendo constantes esforços para mostrar que a favela é formidavelmente exótica. 

Apela para a produção de novelas nos morros do Rio e mostra histórias surpreendentes de pessoas de comunidades em programas como Caldeirão do Huck, Esquenta e Faustão. 

E opta por não evidenciar que só o fato de a favela existir já é um sintoma social: as coisas não estão da forma como deveriam estar.

O Brasil passa por um momento de hipocrisias. A mídia convencional cumpre à risca o plano de manipulação de massa. O governo federal não se pronuncia sobre questões contemporâneas de expressão social: o genocídio da juventude pobre e negra; a desmilitarização da Policia Militar, as demarcações de terras indígenas e quilombolas.

Não assumindo posicionamentos, o governo corrobora com a violência institucionalizada que vem acontecendo diariamente nas periferias, que passam por tempos de cárcere social. Quem mora nas favelas não pode ficar na rua depois das 22 horas, pois corre o risco de morte, de apanhar, de sumir e de ser agredido psicologicamente. 

Na mesma sexta-feira em que policias agredem jovens negros na periferia, na Vila Madalena, em Pinheiros, nos Jardins se pode ficar a noite inteira na rua.

Isso ilustra uma situação. Há, no mínimo, duas formas de tratamento da população no estado de São Paulo: para a burguesia, a policia serve e protege; para a periferia, age com opressão e violência.

Ainda sobre a reportagem, o que chama a atenção são os personagens. 

Um nordestino que foi tentar a vida no Rio de Janeiro e conseguiu estruturar dois restaurante com uma “generosa clientela” na Rocinha, maior favela da América Latina. Favela onde circulam mais turistas no estado. Um jovem que vive de eventos organizados nas comunidades. Uma moradora que instalou uma piscina no fundo da casa.

É a afirmação do paradigma: o dinheiro traz felicidade. Se a sensação implantada é essa, reclamar pra quê?

Obviamente, quem vive nesta condições em numa favela não vai sair. Mas é só questionar uma senhora que teve seus filhos agredidos ou assassinados se ela deseja continuar na favela. Será que quem passa por ameaça de remoção por conta da Copa, ou está pagando absurdo de aluguel, quer morar na favela?

O plano segue com perfeição: os 11 anos de incentivo pesado na inclusão pelo consumo têm efeitos colaterais desanimadores. O discurso do senso comum é disseminado em qualquer roda de conversa:  "Lógico, tio. Quem não quer fazer um 'rolezinho' com as novinhas, por um tênis dos mais caro, boné e camisa pesadona, colar no fluxo pesadão, tá ligado. E carro? E moto? Tudo zero, 'fião´'”, diz o Adolescente Renan Cordeiro, 17 anos, Morador da Vila Calú, extremo sul de São Paulo.


Maria da Dores, a Dorinha, sente orgulho ao olhar para a casa e observar tudo o que conquistou. “Esse armário comprei em 10 prestações, terminei de pagar faz três meses e já está todo mofado. Aqui não tem ventilação. O sofá paguei em três vezes e a geladeira consegui numa promoção junto com a máquina de lavar, dei muita sorte. Não é com todo mundo que isso acontece não.”

Renan parou de estudar na sétima série. Apesar de andar na “picadilha”, mora com a mãe e mais três irmãos em um barraco de um cômodo dividido por um guarda-roupas. O fogão é sustentado por blocos. Perto da sua porta há um córrego. Saneamento básico nunca existiu. Mesmo assim tem sonhos de consumo: “tio, quero uma Hornet, ai ninguém me segura”.

Assim como Renan, Dorinha também parou de estudar no ensino fundamental, mas pensa em concluir os estudos. O maior desejo é "comprar uma casinha fora da favela".

Apesar da casa mobiliada com a linha branca e televisão de 46",queixa-se das escadarias que precisa subir e descer todos os dias para sair e chegar em casa, das dores nas pernas, do som alto do vizinho adolescente; do medo de desabamento em dia de chuva - o lugar onde ela mora, aconteceu um desmoronamento em 2004, e do preço do aluguel: "homi, é muita caro, né? Uma casa de três cômodos na favela, neste lugar, custando 500 reais. E o dono ainda quer aumentar. Só não fez porque é gente boa".


A inquietação de Maria da Dores não é pontual nem restrita à situação de uma favela. A especulação imobiliária vem sistematicamente afastando cada vez mais quem não tem condições de pagar aluguéis astronômicos para as bordas das grandes cidades. Hoje, ter casa na favela para alugar é garantia de aposentadoria.


A felicidade pautada na perspectiva do consumo é o reflexo de um modelo de desenvolvimento que prioriza as relações com grandes empresas, multinacionais e bancos. Ou seja, onde tem capital há interesse. Segundo o Data Popular, as favelas geram por ano cerca 63 bilhões de reais. Por isso vale a pena mostrar a favela como um lugar formidável.


Os recursos não permanecem nas favelas. O ciclo da economia gira em torno das grandes redes. Vale a pena colocar uma Besni, um Itaú e uma Casas Bahia em uma favela: em alguns estados o governo oferece como contrapartida isenção de imposto para as empresas - uma espécie de insalubridade, a mão de obra é barata, o povo paga as contas em dia, mesmo com a geladeira, adquirida por pressão no intervalo da novela, que anunciava a redução do IPI, vazia.


Encher a geladeira nova ainda é um sonho, e para realizá-lo, há pessoas que continuam pegando resto de comida em lixos de condomínios – dias de terça, quarta e sexta-feira, Dona Rute, moradora do Capão Redondo, fica até 2h da madrugada vasculhando lixos em busca de materiais recicláveis, e torcendo para achar comida. Adolescentes estão olhando carros nas feiras de rua para ajudar no orçamento da família – nas pontas das feiras, há sempre jovens esperando um veículo encostar para dar uma olhada. 

Pessoas ainda estão morando em áreas de mananciais e de risco – haja vista as ocupações em regiões da represa Guarapiranga e Billings.

 O crescimento desordenado continua. A juventude periférica ainda é tratada com preconceitos e vem sendo exterminada com o aval do governo – segundo a Secretaria de Segurança Pública, mais de 500 jovens foram assassinados em 2012. Há comunidades onde não tem saneamento básico – como o bairro Chácara Bandeirantes, distrito do Jardim Ângela.


É de extrema crueldade maquiar fatos tão importantes sobre a vida em favelas do Brasil. Pois é necessária a presença dos governos nas comunidades para executar políticas públicas de segurança, educação, cultura, saúde e lazer. Não dá para ficar à mercê do "jeitinho brasileiro". Não é saudável acordar sentindo cheiro de esgoto, viver em uma casa que a qualquer momento pode desmoronar, dividir espaço com ratos, demorar três horas para chegar a um subemprego. 

A periferia não pode aceitar o discurso mentiroso sobre a nova classe média. Não tem como ignorar o fato de que a educação é um negócio, que é importante ter um sistema público educacional ruim para favorecer o mercado da rede particular de ensino (o mesmo vale para o sistema público de saúde). 

Ninguém está falando de uma elite que explora 80% da população. Mentiras não devem ser transformadas em verdades: a nova classe média é utópica.

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