Por Jailton de Carvalho
Num movimento sem precedente na história da Polícia Federal, agentes,
escrivães e papiloscopistas estão se rebelando contra o suposto domínio
dos delegados sobre a estrutura da instituição. Na guerra por cargos,
salários e reforma da polícia, agentes estão se recusando abertamente a
cumprir ordens de delegado para situações que vão do simples ato de
dirigir um carro numa operação a produzir relatórios de inteligência de
grandes investigações criminais. ...
Os atos de resistência contra o que chamam de feudo dos bacharéis vão
além dos limites de uma simples rixa de corporações. Os embates entre os
grupos, quase sempre pontuais, mas recorrentes, trincaram os pilares da
disciplina em alguns setores e já estão afetando o número e a qualidade
das operações de combate à corrupção. O clima é tão pesado que em
alguns casos, policiais das categorias litigantes mal trocam
cumprimentos.
As pequenas rebeliões, que se multiplicam em várias direções, podem
complicar parte do esquema de segurança da Copa e repercutir até mesmo
nas eleições presidenciais em outubro deste ano. Com a policia
conflagrada, a presidente Dilma Rousseff teria dificuldade de apresentar
a instituição como modelo de luta contra os desvios de verbas da
administração pública como aconteceu durante as campanhas eleitorais de
2006 e 2010.
Numa reação também sem precedentes, delegados estão preparando um
manual de procedimentos com regras detalhadas sobre obrigações de cada
policial numa investigação. Segundo um dos responsáveis pela organização
das normas, agentes, escrivães e papiloscopistas que saírem da linha
depois da aprovação destas regras serão levados à temida
Corregedoria-Geral, ao Ministério Público e ao Judiciário.
- É uma situação grave e irreversível. Não se trata apenas de uma
questão corporativa. Trata-se de uma questão de interesse de toda
sociedade brasileira, que é a modernização da polícia - afirma o
presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República,
Alexandre Camanho.
O procurador acompanha de perto os embates cotidianos entre agentes e
delegado. O trabalho da polícia sempre tem reflexo na atividade do
Ministério Público. É a partir de indícios e provas obtidos nas
investigações, quase sempre conduzidas pela polícia, que procuradores
preparam as peças de acusação contra criminosos. A tensão entre
delegados e agentes se estende também ao Instituto Nacional de
Criminalística (INC). Peritos também reclamam do suposto exclusivismo
dos delegados.
- As coisas estão se agravando. Delegados não cedem em ponto nenhum.
Não vejo luz no fim do túnel - afirma um experiente perito.
As disputas de agentes, escrivães e papiloscopistas contra delegados
são antigas, mas se tornaram ainda mais acirradas depois da fracassada
greve dos policiais federais em 2012.
Depois de 72 parados, agentes,
escrivães e papiloscopistas voltaram ao trabalho sem os reajustes
salarias reivindicados, mas decididos a esticar a corda até o limite da
força. A partir de então, começaram a pipocar país afora os atos de
desobediência explícita.
No Distrito Federal, um agente disse "não" quando a delegada Andreia
Albuquerque, que estava à frente da Operação Miquéas, pediu um relatório
analítico sobre escutas e movimentação financeira dos investigados.
Segundo relato de um policial ao GLOBO, o agente disse que repassaria os
dados brutos Andreia. Caberia a delegada, e não a ele, fazer os
cruzamentos de informações e extrair as devidas conclusões sobre as
supostas ligações de políticos com um famoso doleiro local.
Para se proteger contra eventuais punições, o agente se escudou na
portaria 523/89, que estabelece as atribuições dos policiais. Na visão
da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), a portaria não
inclui entre as tarefas de um agente a análise crítica de uma
investigação. Pelo entendimento deles, se não está na lei, a ordem do
delegado perderia a eficácia.
- Antes, agentes faziam relatório de inteligência (com cruzamento de
dados) e os delegados assinavam. Hoje eles não fazem mais. Não aceitamos
a apropriação (indevida) de propriedade imaterial. Hoje os agentes
fazem a investigação, fazem a análise parcial dos dados. O relatório,
com as conclusões finais, quem faz é o delegado - afirma Flávio Werneck,
presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Distrito Federal.
Em São Paulo, um dos atos de resistência teve desfecho trágico. Um
grupo de 20 policiais de Ribeirão Preto e Bauru, especializados em ações
contra o narcotráfico, se recusou a participar da interceptação de um
avião que, depois de sair do Paraguai, pousaria numa fazenda em Bocaina
carregado de armas e cocaína.
Os policiais cruzaram os braços com o
argumento de que não tinham fuzis potentes, visores noturnos e carros
blindados para enfrentar os criminosos, conforme determina as normas de
segurança
Fonte: Jornal O Globo - 03/02/2014 BLOG do SOMBRA
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