23/04/2014
às 5:04Ou: A soma perigosa de todos os equívocos. Ou: Os fundadores na antropologia da violência. Ou ainda: Imprensa, pare de chamar bandidagem de “comunidade”
Quando as
coisas ficam muito atrapalhadas, também as palavras perdem o sentido.
Vocês viram o caos em Copacabana, no Rio, que se seguiu à morte de
Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG. Em todas as
reportagens que se produziram a respeito, o rapaz ganhou um aposto, uma
expressão explicativa: “dançarino do programa ‘Esquenta’, de Regina
Casé”. Como consequência dos confrontos, produziu-se um segundo morto:
No Globo Online, leio o seguinte (em vermelho, com destaques meus):
A morte de um dançarino, numa favela pacificada, provocou, nesta terça-feira, um violento protesto em Copacabana. A Avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma das principais do bairro, teve o trecho entre as ruas Almirante Gonçalves e Sá Ferreira completamente interditado após virar praça de guerra, com barricadas montadas com fogo. A confusão, que também provocou o fechamento do Túnel Sá Freire Alvim, da Rua Raul Pompeia, de lojas e de um dos acessos à estação do metrô da General Osório, começou após a descoberta do corpo de Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG, em uma creche no Pavão-Pavãozinho. Inconformados com a morte do rapaz de 26 anos, que fazia parte do elenco do programa “Esquenta”, da TV Globo, moradores desceram para o asfalto e, acusando policiais da UPP de terem espancado Douglas, começaram o tumulto, por volta das 17h30m, provocando pânico na região e atrapalhando a volta para casa dos trabalhadores que não emendaram o feriadão. Parte da comunidade ficou sem luz. O Batalhão de Choque da PM e o Corpo de Bombeiros foram para o local, assim como policiais do 23º BPM (Leblon). Com o reforço no policiamento, começou um intenso tiroteio dentro da comunidade, por volta das 18h30.”
Há coisas
que não entendo, por mais que tentem me explicar. Há coisas com as quais
não me conformo, por mais que tentem vender como corriqueiras. Há
coisas que ofendem a minha inteligência, por mais que tentem demonstrar
que são normais.
Se a
favela está “pacificada”, como diz o Globo Online, como é que se explica
a guerra? Nesse caso, o vocábulo “pacificada” quer dizer o quê, já que,
obviamente, paz não é? Eu sei: quer dizer apenas que a UPP, a tal
Unidade de Polícia Pacificadora, lá se instalou. Então por que não somos
todos, na imprensa, mais precisos? Em vez de “pacificada”, podemos
dizer que a área está dotada de uma UPP. E pronto! Não se ofendem nem os
fatos nem o dicionário.
Há mais:
leio no texto, também, que, às 18h30, começou um “intenso tiroteio”. Mas
esperem aí: a tal revolta não era de moradores, da comunidade? Desde
quando trabalhadores, pessoas normais, comuns, enfrentam a polícia a
tiros? Não resta evidente que a reação foi, então, organizada pelo
tráfico de drogas, não pela população? Você que me lê aí no Rio, em São
Paulo, onde quer que seja: se a gente fizer de conta que o que aconteceu
não aconteceu, a realidade muda? Mais: é possível haver um grupo
organizado que enfrenta a polícia a bala numa “comunidade pacificada”?
Acusações contra a polícia
Ninguém sabe o que aconteceu direito. O laudo feito pelo IML indica que Douglas Rafael da Silva Pereira morreu em razão de “hemorragia interna decorrente de laceração pulmonar decorrente de ferimento transfixante do tórax. Ação pérfuro-contundente”. Segundo o comando da UPP, haveria ainda fraturas no corpo, compatíveis com uma queda.
Ocorre que
se espalhou rapidamente o boato de que ele teria sido assassinado pela
Polícia. Na madrugada de terça, nesta dita “comunidade pacificada”, para
falar em carioquês — em português, quer dizer “favela com UPP — houve
um tiroteio entre policiais e traficantes. Quando a Polícia Civil chegou
para fazer a perícia, encontrou o corpo de Douglas. O fato de ele
trabalhar no programa de Regina Casé, obviamente, amplificou o boato e a
reação. Carlos Henrique Júnior, que a imprensa chama de líder
comunitário — seja lá o que isso signifique —, postou numa rede social
que o rapaz tinha sido morto pela polícia. O resto vocês já conhecem.
Durante o confronto na noite desta terça, um outro homem levou um tiro
na cabeça e morreu.
A polícia
pode ter sido a responsável? Pode, sim, é claro! O histórico não é dos
melhores. Mas há elementos suficientes para que se chegue a essa
conclusão agora? É claro que não! A polícia tem de apurar obsessivamente
esse caso e punir exemplarmente o culpado, seja quem for, de farda ou
não. Mas estará cometendo um erro terrível se não for atrás daqueles que
organizaram a baderna.
Desculpem:
tenho apreço pelas palavras. Acho que a precisão deve ser uma obsessão
do jornalismo, o que descarta a demagogia politicamente conveniente.
Notem que não uso a expressão “politicamente correta”. Aliás, eu vou
bani-la do meu vocabulário. Doravante será mesmo “politicamente
conveniente”, que corresponde à escolha da imprecisão para não ficar mal
com grupos influentes.
“Comunidade”
não enfrenta a polícia a tiros. Também não sai botando fogo em bens
públicos nem fazendo barricadas. Isso é coisa de bandido, própria de
áreas que ainda estão submetidas à ditadura do crime organizado e que,
portanto, pacificadas não estão.
A imprensa
precisa parar de glamorizar ações criminosas, chamando-as de reação
popular. Povo gosta de ordem. Quem gosta de desordem é bandido e
subintelectual do asfalto, metido a intérprete do pobres. Em São Paulo,
eles existem também às pencas. No Rio, no entanto, essa gente do miolo
mole se considera fundadora de uma nova antropologia.
Quanto mais as teses desses iluminados triunfam, mais a violência se alastra. A bandidagem sorri.
Cadeia para os assassinos de Douglas! E cadeia para os que promoveram a baderna. O que lhes parece?
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