Na
história do pensamento socialista sempre imperou uma visão salvacionista e
quase religiosa, como se ela pudesse curar todas as doenças da sociedade,
resolver todos os problemas e criar um homem-novo.
Artigo
no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por
Carlos I. S. Azambuja
Diz-se que o
socialismo é parte da luta pelo aprofundamento e extensão da democracia a todas
as áreas da vida; que seu avanço não está inscrito em nenhum processo histórico
pré-ordenado, mas é o resultado de uma pressão constante, desde baixo, pela
expansão da democracia; e que essa pressão baseia-se no fato de que a grande
maioria, localizada no ponto mais baixo da pirâmide social, necessita desses
direitos para resistir e limitar o poder ao qual está sujeita.
Isso,
no entanto, não é verdade. Ou melhor, não é toda a verdade. O socialismo não
procura apenas a limitação do poder, mas a eliminação do poder; a erradicação
do capitalismo como princípio organizador da vida social.
Apenas
30 ou 40 anos após a chegada de Lenin à estação Finlândia, em Petrogrado, um
terço da humanidade já vivia sob regimes diretamente derivados dos “dez
dias que abalaram o mundo”.
No
entanto, a prática dos regimes onde o socialismo foi implantado - em todos os
lugares sempre pela força das armas - foi não a afirmação, mas a negação do seu
significado. Nos regimes ditos socialistas, os meios de atividade econômica -
denominados meios de produção - foram colocados sob a propriedade de
um Estado todo-poderoso dirigido por um partido-único e, sem democracia, tudo
não passou de um coletivismo autoritário, eliminando qualquer noção de
igualdade. As diversas esquerdas e a mídia, em todo o mundo, durante 70 anos,
classificaram esses regimes de socialistas.
É
bem verdade que o domínio da minoria, com o poder firmemente concentrado em um
relativamente pequeno número de pessoas, sempre foi uma característica
inevitável da condição humana em todos os tempos. Essa asserção sobre a
inevitabilidade do domínio das minorias repousa em algumas proposições. Uma
delas é que em qualquer sociedade existe uma divisão natural entre uma minoria,
destinada pela virtude de seus atributos a dirigir a maioria ou a torná-la
subordinada.
Esses atributos podem variar com os tempos: o poder físico, a
coragem, a habilidade mental, o conhecimento especializado, a riqueza, a
astúcia, o roubo e a trapaça – como faz no Brasil o Partido dos Trabalhadores -
ou uma combinação de todos. Essa minoria poderá ser derrubada mas, historicamente,
o resultado será sempre a substituição de uma minoria por outra. A questão
verdadeira é saber se o Estado dispõe de meios legítimos de controle sobre as
pessoas a quem está atribuído o Poder.
Na
história do pensamento socialista sempre imperou uma visão salvacionista e
quase religiosa, como se ele pudesse curar todas as doenças da sociedade,
resolver todos os problemas, acabar com os conflitos e, finalmente, criar
um homem-novo. Mas, para isso, a condição primeira seria varrer do mapa a velha
ordem, ou seja, o capitalismo, única base material possível para o surgimento
do socialismo. Afinal, segundo Marx, “Nenhuma ordem social é jamais
destruída antes que todas as forças produtivas sejam plenamente desenvolvidas”.
Ora,
o socialismo, onde quer que tenha sido imposto, não seguiu essa premissa
básica, a começar pela Rússia czarista de 1917, “uma sociedade atrasada e
medieval; uma Rússia primitiva e amorfa”, segundo Gramsci. As condições para a
transformação do regime político não existiam na Rússia de 1917, um país
camponês que era sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o
proletariado industrial, o predestinado coveiro do capitalismo, era apenas
uma minúscula minoria.
Hoje,
parece que a absoluta maioria dos socialistas de todos os matizes deixou de
acreditar na viabilidade de uma não-economia de mercado e na possibilidade e
conveniência de uma economia estatal de planejamento centralizado do tipo da
desenvolvida na União Soviética. O fato é que alguns nunca acreditaram nela
mas, mesmo os que acreditaram, hoje perderam a fé. Os socialistas, no passado,
a começar por Marx, sonharam com uma sociedade comunista sem mercado e talvez
até sem moeda. Essa utopia, hoje, não pode mais ser sustentada, nem o é.
O
debate entre liberais e socialistas, hoje, ao que tudo indica, não é sobre o
mercado sem controle versus o Estado que tudo controla; não é sobre ser a favor
ou contra o planejamento econômico - sem o qual nenhuma grande corporação
poderia funcionar -; não é sobre ser a favor ou contra a empresa pública ou
privada. O debate entre liberais e socialistas não mais diz respeito ao
socialismo e sim aos limites do capitalismo, do liberalismo e do mercado sem o
controle da ação pública.
O debate atual é sobre se uma sociedade, onde não
haja lugar específico para a ética, para a justiça social e para a moralidade
poderá sobreviver. Segundo Eric Hobsbawn, considerado o maior intelectual
marxista vivo, “Se essa ação pública e de planejamento não for iniciada
por pessoas que acreditam nos valores da liberdade, razão e civilização, será
iniciada por pessoas que não acreditam nesses valores. O certo é que terá que
ser iniciada por alguém”.
Recorde-se
que logo após a queda da Bastilha, em 1789, na França, foi instalada uma
Assembléia Nacional Constituinte, onde os partidários do antigo regime
sentavam-se à direita do plenário e os defensores da nova ordem à
esquerda.
A
partir daí, a direita passou a ser identificada com as teses
conservadoras da sociedade, com a manutenção dos sistemas vigentes.
A esquerda, por seu turno, sempre se caracterizou por integrar os que
almejam a derrubada (ou, como se diz atualmente de uma forma light,
a“superação”) da ordem vigente.
Tanto isso é correto, que na União Soviética
sob a direção de Gorbachev (1986-1991), a Nomenklatura que dirigia o
aparato do partido e do Estado foi tachada “de direita”, por recusar as
reformas simbolizadas pela “perestroika” e pela“glasnost”, que
acabaram por levar à derrocada do edifício arquitetado em 1917.
Tudo
isso ocorreu pela própria ambigüidade do lema adotado pela esquerda surgida da
Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Diz-se que a
liberdade econômica, baseada na propriedade privada, provocaria uma
desigualdade econômica, social e política, tornando, assim, antagônicos, os termos
liberdade e igualdade.
Foi
nessa direção que avançou a formação da esquerda, pelo menos até 1848,
quando Marx e Engels publicaram o Manifesto Comunista.
O Manifesto fez uma
radiografia da história da humanidade até chegar ao capitalismo, concluindo que
as contradições entre exploradores e explorados, dominadores e dominados,
caracterizam a história dos homens. Nesse sentido, os proletários teriam uma
função histórica especial, considerando que sua localização estratégica no
capitalismo lhes possibilitaria destruí-lo e sedimentar as bases de uma
sociedade sem exploração.
A
proliferação dos movimentos constituídos por proletários, em diversos países,
ainda no século passado, levou a que fosse construída uma coordenação, que
recebeu a denominação deAssociação Internacional dos Trabalhadores, também
conhecida como I Internacional, que buscou organizar internacionalmente os
trabalhadores para a derrubada do capitalismo.
A I
Internacional obedecia a uma máxima, de autoria de MARX, que buscava
integrar todos os grupos: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos
próprios trabalhadores”. Mas o que se viu, todavia, foi o partido dito da
classe operária passar a falar e a agir em nome dos trabalhadores, o Comitê
Central falar em nome do partido e o Secretário-Geral falar em nome de todos.
Cronologicamente,
chegou-se então à Comuna de Paris, quando o exército francês deixou a
cidade fugindo das tropas alemãs chefiadas por Bismarck. Aproveitando-se do
vazio deixado, os proletários de então iniciaram a criação de um novo Poder. A
primeira medida da Comuna de Paris foi a substituição do Exército
profissional por milícias populares, e a substituição da Polícia pelo
autocontrole da própria sociedade.
Para demonstrar o seu internacionalismo, um
operário alemão - originário justamente do país com o qual a França estava em
guerra - foi designado Ministro do Trabalho da Comuna. Não demorou para
que essa primeira experiência de socialismo fosse derrubada por uma ação
conjunta dos exércitos francês e alemão.
A
partir daí, uma discussão, até os dias de hoje, tomou conta da esquerda:
reforma ou revolução? Transformação gradual do capitalismo em socialismo ou
ruptura violenta com o Estado capitalista? Os dois métodos são considerados
marxistas. O primeiro descrito no Manifesto Comunista, e o segundo, 20 anos
depois, em O Capital. O método gradual e intervencionista teve em
Antonio Gramsci o seu mais brilhante defensor.
Quando
da I Guerra Mundial, essas diferenças entre transformação gradual e ruptura
violenta se concretizaram numa divisão formal dentro da esquerda, e a II
Internacional, ou Internacional Socialista - que havia sucedido
a I Internacional devido ao aprofundamento das divergências entre
comunistas e anarquistas - dividiu-se entre os que passaram a ser chamados de
social-democratas, e os comunistas, que após a tomada do poder na Rússia,
fundaram a III Internacional.
Consolidava-se,
assim, a cisão entre os revolucionários da III Internacional e os
reformistas da II Internacional, divisão que persiste nos dias atuais.
Carlos
I. S. Azambuja é Historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário