sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Jaime Lerner “Nas favelas também é possível dar qualidade de vida”



Silvia Gómez

O urbanista e arquiteto, ex-prefeito de Curitiba, que revolucionou o Brasil com suas ideias, é um fã de Buenos Aires. “Planejar uma cidade é como fazer malabarismos com pratos chineses”, diz, nesta entrevista ao jornal Clarín.
Buenos Aires, 12 de outubro de 2014


Jaime Lerner nasceu em Curitiba, capital do Paraná, no Brasil. Assim que se formou como arquiteto e urbanista começou uma série de viagens que o levaram a conhecer dezenas e dezenas de cidades ao redor do mundo.


As cidades são seu lugar preferido. E ao contrário do que muitos portenhos poderiam pensar e sentir, Lerner acredita que é justamente em Buenos Aires – e em outras megalópoles – onde as coisas boas acontecem. Ele foi três vezes prefeito de Curituba e duas vezes governador do Paraná.

Além disso, presidiu diversos institutos profissionais e recebeu vários prêmios ao longo de sua carreira. E, entre outras coisas, promoveu o primeiro corredor de ônibus do mundo, nos anos 1970.

Na recente visita a Buenos Aires para participar do fórum “Democracia e Desenvolvimento” – organizado pelo Grupo Clarín – Jaime Lerner deixou muitas de suas ricas opiniões e uma visão pluralista sobre a evolução das cidades. Do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo “até nas favelas é possível dar qualidade de vida”, disse.

- O senhor disse que a cidade é o último refúgio da solidariedade. É complicado imaginar isso em Buenos Aires.
- É que a solidariedade é uma coisa dos moradores, é difícil de encontrar em outros lugares, é na cidade onde é possível melhorar a vida das pessoas. As administrações centrais que não são sensíveis às cidades não serão sensíveis às pessoas.


- A Organização Mundial da Saúde estima que 70% da população mundial morará nas cidades em 2050.
- É provável, mas essas cifras não necessariamente vaticinam um desastre, ao contrário, a cidade não é um problema para um país, ela é a solução, porque se a vida da cidade melhorar, a vida do país melhora.


- E como o senhor vê Buenos Aires nesta visita?
- Buenos Aires é uma cidade que me interessa muito. Para conhecê-la melhor eu tenho o hábito de me hospedar sempre em bairros diferentes. Mas desta vez a mudança rutilante que eu vi foi na Área Central, onde o pedestre ganhou um espaço muito importante. Agora o que falta é que as pessoas voltem a residir nessa zona, o que terminará revitalizando-a.


- Uma das grandes mudanças foi a implementação do corredor de ônibus, uma obra que no começo gerou muita polêmica.
- Devemos nos preparar para as mudanças e também para as críticas. O corredor de ônibus é uma ideia simples e propõe uma solução importante. Por exemplo, em Curitiba nós não tínhamos recursos financeiros para desenvolvê-lo, então apostamos em uma equação de responsabilidade social: o Estado definiu os percursos e os privados investiram na frota. E depois pagávamos as empresas que o exploravam por quilômetro rodado.


- O corredor da avenida 9 de Julio em Buenos Aires foi criticado não só porque transformou a avenida, mas porque seu trajeto é parecido com o da linha C do metrô.
- Isso não é um problema, ao contrário, gera-se uma combinação entre as paradas do metrô e as do corredor de ônibus. Os metrôs em Buenos Aires são antigos e o conceito era construir muitas estações. Isso aconteceu também em outros lugares do mundo. Hoje as estações são mais espaçadas porque é caríssimo construir uma rede de metrô.


- Mas o metrô não é a solução para os problemas de trânsito que as cidades enfrentam?
- Penso que se trata de um falso debate. O metrô demanda muito tempo de obra e é muito caro. Não há necessidade de sacrificar gerações de cidadãos por um custo tão alto. Quando Londres e Paris desenvolveram suas redes de metrô, a construção era muitíssimo mais barata. Há 60 anos se debate se vale a pena desenvolver a linha da 2ª Avenida em Manhattan. Hoje ela custaria US$ 4 bilhões.


- O senhor aborda algo dessa filosofia relacionada com os investimentos no livro Acupuntura Urbana.
- Exato. Porque o processo de planejamento urbano leva muito tempo, mas às vezes uma pequena intervenção cria uma nova energia que ajuda a melhorar a cidade. A cidade é um sonho coletivo e para mudá-la é necessário diagramar uma ideia, fazer uma proposta. E entender que às vezes essa ideia pode não ser aceita. Aconteceu comigo quando começamos com a ideia do corredor de ônibus.


- Em regiões como as nossas, onde não há possibilidades de contar com grandes investimentos, é possível inovar e melhorar as cidades?
- É claro que sim. Inovar é começar e, sobretudo, não esperar muitos recursos. A criatividade começa quando se tira um zero do orçamento e a sustentabilidade começa quando são tirados dois zeros. Quando eu fui governador do Paraná tivemos o desafio de limpar a nossa baía, mas não contávamos com financiamento nem com dinheiro. Então recorremos de novo à equação social e chegamos a um acordo com os pescadores: comprávamos o lixo deles. Se o dia era ruim para pescar, eles zarpavam mesmo assim, porque pescavam lixo. Quanto mais eles pescavam, mais a nossa baía ficava limpa e mais peixes chegavam. Não quero dizer que tudo seja simples de resolver, mas cada cidade deve colocar sua imaginação para trabalhar.


- Em Puerto Madero, o bairro mais novo de Buenos Aires, houve dinheiro e grandes investimentos.
- Eu vi a transformação de Puerto Madero. No entanto, para equilibrar, é necessário que existam mais moradias para setores menos ricos. Fazer o planejamento é como fazer malabarismos com pratos chineses: se tiver muitos escritórios, é preciso fazer o prato da moradia girar, ou o dos comércios, ou o das instalações sanitárias. Quanto mais pratos estiverem girando, melhor.


- Nas antípodas de Puerto Madero estão as favelas. É possível urbanizá-las ou melhorá-las?
- Levar infraestrutura não é difícil, a chave é não tocar muito no que já está construído. No Brasil, onde as favelas são construídas em morros ou no fundo dos vales, levamos a água e a luz através dos corrimãos das escadas. É preciso usar a tecnologia mais simples, intervir o menos possível. E novamente inovar. Por exemplo, para evitar o drama sanitário gerado pelo lixo em uma favela, o Estado poderia comprar esse lixo e os moradores o levariam até um ponto de coleta. Assim, nas favelas também é possível dar qualidade de vida.

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