Para a urbanista Raquel Rolnik, o legado urbanístico que a Copa do Mundo vai deixar para o País não será significativo
Tidos pelo poder público como uma vitrine para o País e
uma oportunidade de investimentos, os grandes eventos que serão
realizados no Brasil acabaram servindo de estopim para uma série de
reivindicações, que eclodiram nas agora conhecidas como jornadas de
junho.
Essas reivindicações seguem se desdobrando, causando
dor de cabeça aos governantes e perplexidade aos estudiosos. No centro
da questão, por sediar a final da Copa do Mundo e as Olimpíadas e fazer
parte do imaginário estrangeiro do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro e
os seus 6 milhões de habitantes servem de laboratório, e se veem entre
as promessas de uma cidade melhor e a realidade caótica de má qualidade
dos serviços públicos e obras aquém do anunciado.
Para a urbanista Raquel Rolnik, professora da
Universidade de São Paulo e relatora especial do Conselho de Direitos
Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia
Adequada, que acompanha de perto o processo desde 2009, a principal
discussão que se coloca é o direito à cidade e a necessidade de se
investir em uma cidade realmente para todos. "Não é comprar casa,
comprar moto. Tem uma dimensão publica essencial que é a urbanidade e
que precisa ser resolvida", afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Terra: A cinco meses da Copa, que tipo de legado o evento deixa para a cidade do Rio de Janeiro?
Raquel Rolnik: O legado urbanístico que a Copa do Mundo vai deixar não é significativo. Alguns projetos viários e de infraestrutura relacionados com os deslocamentos necessários para o evento, como BRTs, novas vias de ligação com os estádios e entre aeroportos e zonas hoteleiras e estádios, estão sendo feitos, mas essas não eram as prioridades de mobilidade.
Não há outros legados do ponto de vista urbanístico que
possam ser mencionados. Ações esperadas, como a despoluição da Baía de
Guanabara e a melhoria das condições de saneamento gerais da cidade, não
foram realizadas. Por outro lado, para a implantação desses projetos de
infraestrutura foi necessário remover comunidades e assentamentos que
se encontravam naqueles locais há décadas sem que uma alternativa
adequada de moradia tenha sido oferecida. Para as pessoas diretamente
atingidas, ao invés de um legado, a Copa deixa um ônus.
Terra: Essas remoções foram feitas de forma irregular?
Raquel: Os procedimentos adotados durantes as remoções não correspondem ao marco internacional dos direitos humanos, que inclui o direito a moradia adequada, nem respeitam a forma como elas devem ocorrer. O direito a informação, a transparência e a participação direta dos atingidos na definição das alternativas e de intervenção sobre as suas comunidades não foi obedecido.
As pessoas receberam compensações insuficientes para
garantir seu direito à moradia adequada em outro local e, em grande
parte dos casos, não houve reassentamento onde as condições pudessem ser
iguais ou melhores daquelas em que se encontravam.
Nos casos em que
aconteceu algum tipo de reassentamento para o Minha Casa Minha Vida,
esse se deu em áreas muito distantes dos locais originais de moradia,
prejudicando os moradores no acesso aos locais de trabalho, meio de
sobrevivência e a rede socioeconômica que sustenta na cidade.
Terra: Isso tem alguma relação com a Copa ser
realizada em um país em desenvolvimento. Em outras nações que receberam o
campeonato esse processo se deu de uma forma diferente?
Raquel: Aquilo que se incide de uma forma diferenciada sobre o Brasil e que podemos estender para outros casos, como a Índia na organização dos Commonwealth Games, e também da África do Sul na Copa do Mundo, é a existência de assentamentos informais de baixa renda consolidados. Essas comunidades são as mais vulneráveis as violações aos direitos de moradia, o que não quer dizer que em outros países isso tenha sido respeitado.
Terra: Desde junho, milhares de pessoas saíram
às ruas em protesto tanto contra a qualidade e o preço do transporte
quanto contra os gastos com os megaeventos. O grito "não vai ter Copa"
se tornou uma bandeira comum a diversos grupos. O que essas
manifestações expressam e o que podemos esperar para 2014?
Raquel: Me parece que a sociedade brasileira tem demonstrado o seu descontentamento em relação ao modelo de crescimento econômico e de inclusão social que estamos vivendo. Esse modelo, baseado na ampliação do acesso ao consumo, não enfrentou e não resolveu a questão da cidade para todos.
Ou seja, não se criou um modelo de desenvolvimento urbano
que rompa com a ideia de uma cidade excludente, para poucos. As
manifestações tem um conteúdo bastante claro de reivindicação de
direitos, especialmente do direito à cidade, expresso através do direito
ao espaço publico e ao serviço publico de qualidade, entre outras
questões.
Terra: Você comentou que as obras de transporte que estão sendo realizadas não seriam as mais necessárias. O que seria uma prioridade para o Rio?
Terra: Você comentou que as obras de transporte que estão sendo realizadas não seriam as mais necessárias. O que seria uma prioridade para o Rio?
Raquel: Toda a relação com a população da Baixada Fluminense é absolutamente prioritária, assim como o eixo Niterói-São Gonçalo, que são os locais que enfrentam os maiores gargalos de mobilidade e que beneficiariam o maior número de habitantes.
Terra: O Rio sofre com o crescimento da
especulação imobiliária, que se reflete nos preço dos imóveis e na alta
do custo de vida. Qual o efeito disso a longo prazo na cidade?
Raquel: Talvez o Rio seja o local onde isto esteja acontecendo com maior intensidade, mas a especulação também afeta outras cidades. O efeito é a expulsão dos setores de menor renda das áreas mais urbanizadas, com acesso a serviços, oportunidades etc.
Há um descolamento em direção a
periferias desqualificadas, sem urbanidade, com impactos enormes sobre a
mobilidade e as condições de vida da população. Além de gerar, e isso
já está claro em São Paulo e no Rio, um aumento na quantidade de pessoas
morando na rua e sem teto.
Não há um censo, mas nós já observamos que
há um número cada vez maior de pessoas que não tem condições de morar em
local algum. Esses números são alarmantes. É a população que hoje está
ou vivendo nas ruas ou nas ruas promovendo ocupações e protestos.
Terra: Quais os principais desafios do Rio?
Raquel: O Rio, assim como outras metrópoles do Brasil, é uma cidade partida. O maior desafio é a inclusão territorial, fazer uma cidade que seja realmente para todos. Não é comprar casa, comprar moto.
Tem uma dimensão
pública essencial que é a urbanidade e que precisa ser resolvida. Tenho
acompanhado o tema dos megaeventos desde que apresentei um relatório
temático ao conselho de direitos humanos da ONU em 2009 fazendo uma
espécie de overview da questão no mundo com foco na moradia.
A
partir daí o conselho votou uma resolução definindo claramente que a
preparação dos megaeventos deveria levar em consideração e respeitar o
direito a moradia para todos. Acredito que os procedimentos ao longo
desses anos, devido a própria organização das populações atingidas, aos
comitês em torno da Copa, à sensibilidade dos meios de comunicação para
reportar esse tema, estão melhorando.
Nos primeiros casos que vi no Rio
de Janeiro, o trator já ia derrubando as casas com as coisas das pessoas
dentro. Houve aumento no valor dos benefícios, acabou de sair uma
portaria do governo federal em relação a essa questão, mas isso ainda é
insuficiente em relação aos desafios que temos nesse campo.
Terra Brasil
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