segunda-feira, 21 de abril de 2014

Anistia, sim! - DENIS LERRER ROSENFIELD


O Estado de S.Paulo - 21/04

Chamou particularmente a atenção nas últimas semanas a profusão de notícias e artigos rememorando o golpe (ou contragolpe, conforme a perspectiva) de 1964. É bem verdade que havia uma razão para isso, eis que se trata dos 50 anos desse evento. Não é menos verdadeiro, porém, que os militares estão sendo objeto de um cerco, em que não está somente em pauta uma melhor apuração da tortura, mas, sobretudo, a própria instituição militar. Não seria apenas um necessário exercício histórico de memória, mas uma operação política com alvo determinado: a revogação da Lei da Anistia.

Há, ademais, uma série de iniciativas parlamentares com vista, explicitamente, a essa revogação - restrita, evidentemente, aos artigos que dizem respeito à violência cometida por alguns grupos militares, sem referência alguma à violência perpetrada pela chamada luta armada, empreendida por organizações de esquerda. Vale para uns, não vale para outros.

A transição democrática no País foi um exemplo para o mundo, tendo se realizado sem traumas nem eclosão de violência. São inúmeros os exemplos no planeta em que a saída de regimes autoritários ou ditatoriais se deu pela luta armada e mesmo pela guerra civil. Não é o caso do Brasil, que fez uma transição pactuada entre os próprios militares democratas, a oposição, sobretudo personificada no MDB, e os egressos do partido do governo, a Arena, que vieram a fundar o PFL. Seu instrumento central foi a Lei da Anistia, que alcançou todos os envolvidos em atos de violência anteriores. Tratou-se, naquele então, de um grande acordo nacional, maciçamente apoiado pela sociedade brasileira, aprovado pelo Congresso Nacional e, mais recentemente, validado pelo Supremo Tribunal Federal.

A anistia é uma espécie de pacto que torna viável um novo começo. Se não há um perdão estendido a todas as partes, elas continuam se envolvendo em toda sorte de disputas, recorrendo à violência como um dos seus instrumentos. E o futuro se torna refém de um passado não resolvido e estranhamente presente. A partir do momento em que uma sociedade decide voltar-se para seu futuro, não sendo mais refém de contenciosos pretéritos, ela deve dar-se uma anistia generalizada, para que todos os que se envolveram em lutas se sintam seguros. Daí em diante a violência deixa de ser instrumento da luta política, que passa a pautar-se por regras republicanas produzidas por uma espécie de consenso coletivo, o qual em nosso país se concretizou numa Assembleia Constituinte.

Anistia não significa esquecimento, mas aprendizado do passado visando a um recomeço. Todos os fatos devem ser apurados, sejam de que lado forem. Isso faz parte da História de um país. Quanto mais uma nação se conhece, melhores são as condições de um futuro que não repita os erros do passado. Para que isso ocorra, contudo, a narrativa histórica deve ser fiel aos eventos pretéritos, sem escolha ideológica nem descarte dos fatos que incomodam os que fazem tal narrativa. A tortura deve ser apurada, do mesmo modo que os crimes cometidos pela esquerda. O que não pode é essa narrativa tornar-se um faroeste ideológico, com mocinhos da esquerda e bandidos da direita.

Note-se que a esquerda "revolucionária", hoje tão decantada, ficou totalmente à margem desse processo. E não só isso: ela foi completamente derrotada na luta armada, não teve apoio popular algum, tendo sido uma operação militar de intelectuais e estudantes despreparados, porém ideologicamente bem apresentados. Atualmente, procura-se envernizar essa esquerda, que não tinha nenhum compromisso com a liberdade e a democracia. Seus integrantes posam de combatentes da democracia, quando nada mais eram do que instrumentos de implantação do comunismo/socialismo no País. Seu objetivo era instituir a "ditadura do proletariado" - que, sendo ditadura, não pode, é evidente, ser democrática!

Um dos episódios mais retomados nos últimos meses como de desrespeito dos militares aos direitos humanos é o da guerrilha do Araguaia, os atores revolucionários sendo apresentados como combatentes da democracia. Ora, eles eram maoistas e seguiam as diretrizes dessa forma de marxismo asiático. Seu objetivo, claramente, consistia em criar no Brasil um Estado totalitário, aos moldes de Mao Tsé-tung. Alguns eram da linha albanesa, variante ainda mais mortífera do maoismo. Para eles, a democracia seria "burguesa" e, portanto, deveria ser completamente destruída. Nesse sentido, o que os militares fizeram ao aniquilá-la foi simplesmente evitar que o totalitarismo maoista se instalasse entre nós. Liberticidas tornam-se combatentes da liberdade!

A presidente Dilma Rousseff, por sua vez, tem sido dúbia em suas declarações. De um lado, reconhece a importância da Lei da Anistia, considerando-a irrevogável; de outro, dá liberdade aos seus ministros para que lutem por sua revogação. Ministros devem seguir a posição da presidente, não lhes cabendo contrariá-la. Para tanto podem renunciar às suas funções. Se um parlamentar petista se manifesta contra a Lei da Anistia, é um direito dele numa sociedade que se caracteriza pela liberdade de expressão. Não é o caso dos ministros, que devem seguir orientações.

O grande problema da revisão da Lei da Anistia está no fato de que isso seria uma quebra de contrato: a quebra de um contrato institucional que se encontra na raiz da democracia brasileira. Não se pode, 35 anos depois, dar o dito pelo não dito, como se a palavra que uma sociedade engaja consigo mesmo nada valesse. Tal medida não só produziria instabilidade institucional, como também seria uma péssima sinalização para o futuro. Se acordos políticos podem ser arbitrariamente revogados, não há por que fazê-los, muito menos cumpri-los.

Na verdade, é uma volta da vingança sob a forma do politicamente correto. Mais ainda, tal medida constituiria uma ameaça à própria democracia.
 

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