O Estado de S.Paulo - 21/04
NOVA YORK "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões." (Folhas de Relva, de Walt Whitman)
O vídeo granulado de uma câmera de segurança foi reprisado aqui uma semana inteira. Um homem alto apaga a luz de um escritório e, antes de sair, se atraca num beijo passional com uma mulher mais baixa e loura. O homem era o deputado calouro da Luisiana Vance McAllister, uma figura opaca e medíocre que se elegeu em novembro passado numa vaga plataforma de direita cristã e valores de família. A louraça, o leitor já adivinhou, não era a Mrs. McCallister, mãe dos cinco filhos do deputado. Escândalo. Inúmeros monólogos dos comediantes de fim de noite. A mulher, assessora do deputado, perdeu o emprego e o marido. Chegaram a pedir para McAllister renunciar. Ele regurgitou piedades e deve manter o cargo e o salário, ainda que politicamente castrado no futuro próximo.
Ah, a ridícula santimônia americana, dirão. Se fosse na França, não seria manchete. Sim, a sensação causada pela foto de François Hollande de moto indo passar a noite num apartamento com a atriz Julie Gayet não provocou o terremoto que teria sacudido Washington. Mas a cena inspirou outra acusação. Afinal, o contribuinte francês pagava para manter Valérie Trierweiller como primeira-dama no Eliseu e Hollande já tinha arrumado outra desde a época da eleição.
O deputado beijoqueiro e o presidente francês têm algo em comum. Ambos são acusados de hipocrisia. Quanto mais as figuras públicas empacotam suas palavras e seu comportamento no papel celofane do marketing, maiores as chances de se tornarem alvo da acusação. A era digital multiplicou as oportunidades de embaraço, na medida em que quase tudo o que se faz e se diz em público pode ser googlado para aferir a coerência.
Na conhecida passagem do Novo Testamento, Jesus salva uma mulher adúltera da morte por apedrejamento e acusa os fariseus de hipocrisia por não estarem livres de pecado: "Atirem a primeira pedra".
Um filósofo canadense tem argumentado que a hipocrisia não é exclusiva dos moralistas nem dos que têm poder para julgar ou decidir o destino dos outros. Somos todos hipócritas, diz o professor de filosofia e romancista Clancy Martin, sem a indignação que costuma acompanhar o adjetivo, que equivale a chamar alguém de fraudulento.
Uma das mais comuns reivindicações morais que fazemos para nós mesmos é a ideia de que o hipócrita é sempre o outro. "Nada necessita de mais reforma do que os hábitos dos outros", dizia Mark Twain, como lembrou Martin num ensaio recente. A hipocrisia causa mais furor quando descobrimos que fomos enganados com as armas do santarrão.
Quando Lula instrui Dilma a defender a Petrobrás contra uma inexistente conspiração privatista e sabemos que a companhia foi dilapidada para benefício privado por seus guardiões estatistas, o sangue ferve. A pilhagem da Petrobrás parece doer mais sob a piedade petista.
A hipocrisia é condenada desde a Antiguidade, mas, lembra Martin, que o mais celebrado texto literário sobre o tema é a peça Tartufo, ou o Impostor que Molière escreveu no século 17. O poder de Tartufo foi logo confirmado pela censura ao texto imposta por Luís XIV. Na peça, o personagem Cléante é o contraponto sincero ao impostor piedoso do título. Cléante diz que a verdadeira natureza da maioria dos homens nunca é exposta.
Parte integral da nossa admiração por figuras públicas é a convicção de que elas praticam o que pregam. Imagine, propõe Clancy Martin, se alguém um dia revelar que o pacifista Mahatma Gandhi saía à noite pelas ruas de Nova Délhi esbofeteando policiais britânicos.
O fato é que nosso cérebro é programado para o autoengano, o mecanismo analisado no belo livro homônimo de Eduardo Giannetti da Fonseca, em 1997. A hipocrisia é um fenômeno evolucionário. Para sobreviver, precisamos nos contradizer. Em termos crus, o que motiva alguém a sobreviver à competição brutal no trabalho não é o que motiva a mãe a aconchegar um bebê, mas os dois impulsos são necessários.
Vladimir Putin pode invadir a Ucrânia e ser ótimo pai porque em cada um dos dois papéis está usando convicções incompatíveis.
A hipocrisia requer mais do que o autoengano, ela precisa de um outro. "Todo homem é sincero a sós", dizia Emerson no século 19. Somos mais tolerantes com a nossa inconsistência do que a dos outros. Psicólogos e neurocientistas hoje acreditam que a hipocrisia é parte integral da sobrevivência social porque ela serve de couraça para conquistar obstáculos.
Clancy Martin não defende a hipocrisia e sim o cuidado em acenar com a acusação. Subir no cavalo branco e localizar o hipócrita apenas no outro é uma forma de hipocrisia, seja na Grécia antiga ou na Brasília de 2014. "Atire a primeira pedra" continua a ser um bom argumento cautelar. Mas não na defesa dos saqueadores da Petrobrás.
NOVA YORK "Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões." (Folhas de Relva, de Walt Whitman)
O vídeo granulado de uma câmera de segurança foi reprisado aqui uma semana inteira. Um homem alto apaga a luz de um escritório e, antes de sair, se atraca num beijo passional com uma mulher mais baixa e loura. O homem era o deputado calouro da Luisiana Vance McAllister, uma figura opaca e medíocre que se elegeu em novembro passado numa vaga plataforma de direita cristã e valores de família. A louraça, o leitor já adivinhou, não era a Mrs. McCallister, mãe dos cinco filhos do deputado. Escândalo. Inúmeros monólogos dos comediantes de fim de noite. A mulher, assessora do deputado, perdeu o emprego e o marido. Chegaram a pedir para McAllister renunciar. Ele regurgitou piedades e deve manter o cargo e o salário, ainda que politicamente castrado no futuro próximo.
Ah, a ridícula santimônia americana, dirão. Se fosse na França, não seria manchete. Sim, a sensação causada pela foto de François Hollande de moto indo passar a noite num apartamento com a atriz Julie Gayet não provocou o terremoto que teria sacudido Washington. Mas a cena inspirou outra acusação. Afinal, o contribuinte francês pagava para manter Valérie Trierweiller como primeira-dama no Eliseu e Hollande já tinha arrumado outra desde a época da eleição.
O deputado beijoqueiro e o presidente francês têm algo em comum. Ambos são acusados de hipocrisia. Quanto mais as figuras públicas empacotam suas palavras e seu comportamento no papel celofane do marketing, maiores as chances de se tornarem alvo da acusação. A era digital multiplicou as oportunidades de embaraço, na medida em que quase tudo o que se faz e se diz em público pode ser googlado para aferir a coerência.
Na conhecida passagem do Novo Testamento, Jesus salva uma mulher adúltera da morte por apedrejamento e acusa os fariseus de hipocrisia por não estarem livres de pecado: "Atirem a primeira pedra".
Um filósofo canadense tem argumentado que a hipocrisia não é exclusiva dos moralistas nem dos que têm poder para julgar ou decidir o destino dos outros. Somos todos hipócritas, diz o professor de filosofia e romancista Clancy Martin, sem a indignação que costuma acompanhar o adjetivo, que equivale a chamar alguém de fraudulento.
Uma das mais comuns reivindicações morais que fazemos para nós mesmos é a ideia de que o hipócrita é sempre o outro. "Nada necessita de mais reforma do que os hábitos dos outros", dizia Mark Twain, como lembrou Martin num ensaio recente. A hipocrisia causa mais furor quando descobrimos que fomos enganados com as armas do santarrão.
Quando Lula instrui Dilma a defender a Petrobrás contra uma inexistente conspiração privatista e sabemos que a companhia foi dilapidada para benefício privado por seus guardiões estatistas, o sangue ferve. A pilhagem da Petrobrás parece doer mais sob a piedade petista.
A hipocrisia é condenada desde a Antiguidade, mas, lembra Martin, que o mais celebrado texto literário sobre o tema é a peça Tartufo, ou o Impostor que Molière escreveu no século 17. O poder de Tartufo foi logo confirmado pela censura ao texto imposta por Luís XIV. Na peça, o personagem Cléante é o contraponto sincero ao impostor piedoso do título. Cléante diz que a verdadeira natureza da maioria dos homens nunca é exposta.
Parte integral da nossa admiração por figuras públicas é a convicção de que elas praticam o que pregam. Imagine, propõe Clancy Martin, se alguém um dia revelar que o pacifista Mahatma Gandhi saía à noite pelas ruas de Nova Délhi esbofeteando policiais britânicos.
O fato é que nosso cérebro é programado para o autoengano, o mecanismo analisado no belo livro homônimo de Eduardo Giannetti da Fonseca, em 1997. A hipocrisia é um fenômeno evolucionário. Para sobreviver, precisamos nos contradizer. Em termos crus, o que motiva alguém a sobreviver à competição brutal no trabalho não é o que motiva a mãe a aconchegar um bebê, mas os dois impulsos são necessários.
Vladimir Putin pode invadir a Ucrânia e ser ótimo pai porque em cada um dos dois papéis está usando convicções incompatíveis.
A hipocrisia requer mais do que o autoengano, ela precisa de um outro. "Todo homem é sincero a sós", dizia Emerson no século 19. Somos mais tolerantes com a nossa inconsistência do que a dos outros. Psicólogos e neurocientistas hoje acreditam que a hipocrisia é parte integral da sobrevivência social porque ela serve de couraça para conquistar obstáculos.
Clancy Martin não defende a hipocrisia e sim o cuidado em acenar com a acusação. Subir no cavalo branco e localizar o hipócrita apenas no outro é uma forma de hipocrisia, seja na Grécia antiga ou na Brasília de 2014. "Atire a primeira pedra" continua a ser um bom argumento cautelar. Mas não na defesa dos saqueadores da Petrobrás.
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