Planejamento de Brasília privilegiou o transporte individual e superlotou a cidade de carros
Para especialistas, projeto da cidade dificulta o transporte público e o deslocamento de pedestres...
Ser cortada ao meio por uma rodovia é uma das provas que mostram que
Brasília foi pensada para o carro. Considerada a meta-síntese do Plano
de Metas, de Juscelino Kubistchek, que apostava na indústria
automobilística como motor do desenvolvimento brasileiro, a cidade chega
aos 54 anos de idade sofrendo com sérios problemas de mobilidade
urbana. É como se fosse uma senhora com pouco mais de meio século e à
beira de um “infarto” em consequência de problemas de circulação.
Apesar de muitos problemas serem reflexos do projeto de Lúcio Costa, o
urbanista não é culpado pelo cenário caótico em relação à mobilidade,
uma vez que projetou a capital em 1957, para ser construída em três
anos, e não previa a explosão demográfica descontrolada e o crescente
incentivo aos meios de transporte individual, que extrapolou o limite de
carros que as grandes cidades podem suportar.
No entanto, para a arquiteta, urbanista e professora da FAU-UnB
(Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília) Sylvia Ficher, o
problema de Brasília e de toda a região metropolitana do Distrito
Federal não é o excesso de carros, mas a falta de ruas. Segundo ela, a
lógica do projeto do Plano Piloto é toda baseada em vias expressas: só
há grandes avenidas e pequenas ruas locais que formam trama incompleta.
No processo de expansão urbana em cidades do DF, o mesmo sistema foi
mantido, sem muita variedade de tipos de vias, diferente das cidades
tradicionais em que o sistema de circulação é mais complexo.
— Se eu quero sair da Asa Sul para Taguatinga, só tenho um caminho que é
a EPTG [Estrada Parque Taguatinga]. Daqui para o Setor de Rádio e TV
Sul, só tenho a W3. Então o sistema está sempre jogando todos os carros
nessas poucas vias arteriais, que ficam entupidas.
Para explicar o urbanismo, a professora faz a comparação com o sistema de circulação sanguínea.
— Se você espetar qualquer lugar do corpo com um alfinete vai sair
sangue. Se for atingido um vaso sem importância vai sair uma gota. Mas,
se você furar uma grande artéria, vai sangrar até morrer.
Uma situação cotidiana que pode exemplificar a hemorragia descrita pela
metáfora da professora é a batida de um carro em uma árvore no Setor
Policial Sul no último dia 9 de abril. Só o acidente causou
engarrafamento em toda a EPTG até Águas Claras, incluindo as vias pouco
importantes da cidade, impedindo que os carros conseguissem acessar a
via expressa que liga a região ao Plano Piloto.
— Qualquer coisinha fora do previsto para completamente o trânsito de
Brasília e gera um efeito em cadeia. Um acidente engarrafa o Setor
Policial Sul, a EPTG, a minha rua em Águas Claras, os carros na garagem
no meu prédio e até o meu elevador, brinca o especialista em políticas
públicas de transportes e pesquisador da UnB, Artur Moraes.
Para resolver o problema, Moraes descarta as mudanças nas vias
públicas, como ampliação ou inversão de sentido como medidas para
melhorar o trânsito.
— Isso não funciona mais, você faz a mudança hoje e daqui um ano está tudo engarrafado de novo.
DF já tem mais carros do que condutores habilitados
Sylvia Ficher defende uma revisão cuidadosa de toda a trama viária do
DF, abrindo a malha, fazendo as ligações entre vias expressas, médias, e
as pouco importantes. Segundo ela, é muito importante interligar as
cidades que não têm sua articulação viária autônoma do Plano Piloto.
— A trama incompleta compromete o transporte público, já que não há
ruas para os ônibus passarem, criando áreas que não são servidas pelos
coletivos. São como tecidos necrosados onde o sangue não chega. As
ligações são difíceis: da W3 à L2, não há passagem com facilidade, os
ônibus nem conseguem passar por esses lugares.
Por causa disso, mesmo usando o ônibus, muitas vezes o pedestre é
obrigado a andar grandes distâncias para completar seu caminho. Aliás, o
deslocamento a pé também é um problema no DF devido à escala
quilométrica e à urbanização de baixa densidade demográfica, com áreas
urbanas dispersas, pouco contínuas e cheias de vazios.
Para melhorar a vida dos pedestres, a professora defende intervenções
para equilibrar a relação de tratamento entre eles e os carros, que
sempre são privilegiados nas questões de mobilidade urbana. Além de
resolver os problemas nas calçadas, Sylvia sugere a instalação de
semáforos de pedestres inclusive nas grandes avenidas da cidade.
— Por que não pode haver semáforo de pedestres no Eixo Rodoviário? Por
que o pedestre é obrigado a passar por um túnel subterrâneo sujo,
fedido, perigoso e o carro fica com o caminho melhor? Por que para o
automóvel eu dou uma via expressa e o pedestre precisa andar igual a um
tatu por baixo da terra? Então se coloca semáforo, o pedestre cruza com
segurança e o mundo não acaba.
Os ciclistas também não são privilegiados no Distrito Federal. As
ciclovias são alvo frequente de críticas. De acordo com o pesquisador
Artur Moraes, os percursos em zigue-zague indicam que a bicicleta ainda é
vista como veículo de passeio e não como meio de transporte.
— Por que o carro anda em linha reta e o ciclista precisa se esforçar muito mais para andar fazendo curvas?
Além disso, de acordo com o presidente da ONG (organização não
governamental) Rodas da Paz, Jonas Bertucci, as ciclovias apresentam
descontinuidade nos trajetos, falta de sinalização, e em grande parte
não têm iluminação. O coordenador do Fórum de Mobilidade por Bicicleta
no DF, Paulo Alexandre Passos, diz que o projeto das ciclovias foi
licitado no governo passado a partir de uma pesquisa que foi feita na
cidade pelo DER (Departamento de Estradas de Rodagem) para saber de onde
elas saíam e chegavam, usando a bicicleta.
— As ciclovias que não dão em nada são dois trechos, um executado e o
outro não. Parece que está desconectada, mas é porque não está pronta.
Precisamos ver isso. Se a ciclovia já está terminada, é uma questão. Se
está em obra é outra questão.
Problemas em ciclovias do DF são motivos de revolta e piada no Facebook
Porém, a professora Sylvia Ficher acredita que no DF a bicicleta não é a
melhor das alternativas, pois apenas funciona bem como meio de
transporte em escalas pequenas, de até 10 km.
— Agora se fala muito sobre o transporte por bicicleta, mas uma pessoa
que mora em Brazlândia, por exemplo, não tem condições de ir pedalando
para o Plano Piloto, porque são 45 km de distância. Ida e volta são 90
km, isso seria treinamento de esportista profissional.
Fonte: CHICO MONTEIRO portal R7 DF - 21/04/2014 - - 10:58:26 BLOG do SOMBRA
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