Joel Pinheiro da Fonseca
Em
seu discurso de posse, Dilma falou que não pode dar passos atrás, e nem
tirar direitos. Que os direitos devem ser sempre mais.
Ao dizer isso, a presidente ecoa as convicções de muita gente
bem-intencionada.
Já eu, que suspeito das boas intenções como que por
instinto, penso que a criação de direitos — isto é, coisas boas que a
lei determina que sejam estendidas a todos — é um obstáculo para a
qualidade de vida geral.
Entendo que esse é o modo petista de medir o sucesso: pelo esforço gasto; pelo papel gasto. Se está lá no papel que o salário mínimo subiu, ou que domésticas agora têm direitos trabalhistas, isso é bom em si, posto que é o justo; e tudo que está fora disso é inaceitável, mesmo se o salário mínimo maior não fizer os trabalhadores mais ricos, e mesmo se as novas leis de domésticas tiverem dificultado muito encontrar postos de trabalho nessa função.
O efeito que o discurso de direitos tem na mentalidade é também deletério. Se algo é um direito, ele deveria estar vigorando para todos os casos. Se não está, então uma injustiça foi feita. E se uma injustiça foi feita, temos que encontrar o culpado: alguma classe que não contribui como deveria, alguma instância do governo que é corrupta ou lenta, o egoísmo da cultura em geral, "todos nós que jogamos papel de bala no chão" etc.
Isso serve para gerar raiva e indignação, sentimentos que levam à
impotência, posto que nada podemos fazer contra as gritantes injustiças
de todo um sistema. Em nada ajudam a encontrar soluções criativas que
melhorem efetivamente aquilo que consideramos ainda insatisfatório.
Encontrar culpados e bater o pé no chão para que "algo seja feito"
roubam os esforços que deveríamos dedicar a fazer algo.
O direito também fossiliza nossa concepção sobre como o mundo deve ser.
Direitos trabalhistas eternizaram relações de trabalho que estão cada
vez mais datadas. Mas como o estado não é capaz de aceitar seus
próprios limites, ele precisa exigir que todas as outras relações se
pautem pelos critérios que ele estabeleceu. O resultado cultural disso é
gente jovem em pleno século XXI sonhando com carteira assinada ou — o
que é a lógica dos direitos levada a seu extremo — o funcionalismo
público. Trabalho assegurado, bem remunerado, fácil, de baixa
intensidade e com amplo tempo livre.
O mesmo vale para outros campos: o direito à educação nos internalizou a
ideia de que todos necessitam de 11 a 15 anos de estudo formal em salas
de aula, com conteúdos pré-determinados pelo estado e sendo submetidos a
constantes avaliações, seguindo um modelo muito particular de educação
que se universalizou como sendo o único possível.
O direito à saúde nos fez todos adotar a ideia de que serviços de
tratamento devem estar prontamente disponíveis e gratuitos a todas as
pessoas. O que, com o aumento da tecnologia e da longevidade,
revela-se uma impossibilidade técnica.
E, mais do que isso, associou-se "direito à saúde" a tratamento, e não à
prevenção ou à busca de uma vida saudável. Se esses crescerem em
importância na cultura, a velha ideia do direito à saúde irá se
enfraquecer — principalmente agora que até o próprio governo federal
encara os planos de saúde privados como o melhor jeito de diminuir seus
próprios custos com os cuidados à população.
O direito legal tenta materializar uma instância fictícia da nossa
imaginação: o dever ser. As pessoas "devem" ter saúde, educação, lazer,
cultura etc. Mas ele não faz nada para criar e manter esses bens
desejados socialmente. Nada além de instilar um vago sentimento de
obrigação, justamente o pior tipo de motivador da conduta.
Pensando nisso, minha dica para 2015 a todos que querem um mundo melhor é
que gastem menos tempo lutando para colocar direitos no papel, menos
tempo exigindo que direitos que já existam sejam concretizados, e mais
tempo pensando, criando, produzindo e espalhando as coisas boas que
queremos ver sendo difundidas.
Que o eterno "dever ser" ceda espaço para um "é" cada vez melhor.
Na Bahia, ainda existia um supermercado estatal
"Não
há sentido em tirar dinheiro da saúde e da educação para sustentar um
supermercado".
É com essas palavras, racionais, simples, límpidas, que o
governador eleito da Bahia, Rui Costa,anuncia a privatização (se parcial ou total, ainda não se sabe) da rede de supermercados Cesta do Povo, única rede de supermercados estatal do Brasil.
A estatal foi criada, vejam só, por Antônio Carlos Magalhães nos anos 1970. A esquerda privatizando a estatal da direita.
Esquerda e direita não descrevem a realidade, apenas nomeiam grupos rivais em luta pelo poder. E em face de um supermercado estatal que só no ano passado custou 15 milhões de reais aos cofres públicos, não há partidarismo que discorde: é preciso vender.
Quando o governador diz que a rede não tem como competir com a agilidade
e liberdade de negociação das empresas privadas, ele está dizendo a
mais pura verdade. O Cesta do Povo tem um sistema pra lá de antiquado
para encontrar e admitir novos fornecedores, e adota uma política de
preços que segue conveniências políticas, mas que, ao mesmo tempo, não
oferece preços muito mais baixos que a concorrência. Por que a
diferença?
O Cesta do Povo, como a maioria das empresas estatais, vê-se numa
encruzilhada: por um lado não pode ser apenas mais uma empresa
maximizadora de lucro (pois pra isso o estado não é necessário); por
outro, precisa de mecanismos que impeçam que os recursos públicos que o
sustentam sejam desviados em esquemas de corrupção.
A empresa não tem um dono, não tem acionistas e não tem doadores
voluntários que se sentiriam lesados caso gastasse mal seu dinheiro, e
que portanto têm todo o incentivo para torná-la mais eficiente. Em vez
disso, ela conta apenas com os procedimentos burocráticos de qualquer atividade estatal,
que por um lado são engessantes e não permitem mudanças bruscas ou
inovações sem longas diligências e licitações, e por outro são
facilmente burláveis.
Ao mesmo tempo, ninguém ali dentro tem incentivos para melhorar a
empresa, torná-la mais eficiente, inovar. Se ela der lucro ou prejuízo,
a vida de seus gestores não muda em nada. E já que é bem mais fácil
ser ineficiente…
"O Cesta do Povo não é capaz de concorrer com as redes privadas de
supermercado. As grandes do setor têm agilidade na hora de negociar e
definir preços, muito diferente de uma empresa pública", justificou
Costa.
A rede chegou a fechar em meados da década passada, e foi reaberta pelo
governador Jaques Wagner, também do PT, em 2007, que encontrou aquela
massa falida e apostou que ela era viável se gerida com mais eficiência e
menos corrupção. Agora o sonho acabou. Para o contribuinte baiano, o
pesadelo.
O lampejo de lucidez de Rui Costa foi além do mero reconhecimento de que
a rede não tem condições de se viabilizar no mercado; ele toca, talvez
sem que o próprio perceba, em um ponto mais importante: o da prioridade
do gasto estatal.
Vamos aceitar por um segundo a premissa utópica de que o estado serve,
ou visa a servir, o bem comum. As pessoas dizem isso e se contentam com
um estado que promove — e gasta recursos com — uma série de causas e
atividades boas. Em um mundo de recursos escassos (dica: como o nosso),
só isso não é o suficiente. Que algo seja bom, desejável, não é
critério suficiente para concluir que o estado deva investir naquilo.
Precisamos ir uma pergunta além: aquele gasto traz o melhor retorno
possível em termos de bem comum? O real ali investido produz o máximo
bem para o maior número de pessoas? Se não, que seja cortado.
O estado da Bahia, que já sofre com uma segurança pública em frangalhos e
com desempenhos muito ruins na educação (mesmo para a média
brasileira), não pode se dar ao luxo de esbanjar recursos para subsidiar
um supermercado.
Se aceitarmos essa lógica — e parece impossível não aceitá-la —, nossa
forma de encarar o governo muda. Não é porque algo é desejável que ele
deve ser subsidiado com dinheiro público. Não basta ser bom; tem que
saber utilizar da melhor maneira possível os recursos escassos. E isso o estado já demonstrou que não sabe fazer.
Pensando assim, pode ter certeza de que há muitos "Cestas do Povo" por esse Brasil aguardando nosso corte.
Joel Pinheiro da Fonseca é mestre em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem.
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