domingo, 11 de janeiro de 2015
( O Globo, hoje) A Petrobras criou uma rede de empresas para executar obras de grande
porte sem se submeter a fiscalização mais rigorosa de órgãos de
controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). As chamadas
sociedades de propósito específico (SPEs) são um instrumento legal,
existente para captação de recursos no mercado por meio de empresas
independentes da companhia. Auditoria do TCU, porém, alerta que o modelo
adotado pela estatal pode criar precedentes e resultar numa “expansão
descontrolada”.
Demonstrações contábeis a partir de 2005 mostram que a Petrobras já
constituiu 24 SPEs, com investimentos de pelo menos US$ 21,9 bilhões, ou
R$ 59 bilhões — muitos deles para obras como gasodutos, plataformas,
refinarias e transporte de óleo. Auditoria sigilosa apontou que em uma
das SPEs, para construir a rede de gasodutos Gasene, há indícios de
superfaturamento de até 1.800%, como revelou O GLOBO.
Ao lançar mão de uma empresa privada a estatal se vê livre do
escrutínio a que é submetido o restante do governo federal. Nos debates
sobre a fiscalização dos gastos públicos, a Petrobras costuma argumentar
que os seus negócios têm caráter privado e, por isso, não devem ser
submetidos ao crivo de órgãos como o TCU e a Controladoria-Geral da
União (CGU).
A Petrobras só começou a informar detalhes contábeis das SPEs em
2005, depois que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que
regula o mercado de capitais, editou uma norma com essa determinação
para empresas SAs. Parte desses projetos da estatal foi estruturada no
fim da década de 90 e no início dos anos 2000, nos governos de Fernando
Henrique Cardoso. A prática prosseguiu nas gestões de Lula e Dilma
Rousseff. Cinco SPEs permanecem independentes da estrutura formal da
estatal e ainda não foram incorporadas a subsidiárias.
Investigações recentes em parte desses negócios, porém, mostram o
total controle por parte da Petrobras e o emprego de recursos públicos
nas obras. É o caso da rede de gasodutos Gasene, entre Rio de Janeiro e
Bahia, construída a partir da constituição de uma SPE e incorporada por
uma subsidiária da estatal — a Transportadora Associada de Gás (TAG) —
em janeiro de 2012. O BNDES confirmou ao GLOBO que é a TAG quem paga o
financiamento feito para a construção do gasoduto. Os recursos
empregados são da ordem de R$ 4,5 bilhões.
A ofensiva da Petrobras sobre o TCU, no caso do Gasene, consistiu em
reforçar o caráter privado do negócio. No curso da auditoria que mostrou
uma série de irregularidades no empreendimento, o ex-presidente da
Petrobras José Sérgio Gabrielli afirmou que “os recursos alocados para o
investimento são exclusivamente privados, não havendo qualquer
participação de recursos da Petrobras.”
O ex-presidente da empresa contratada para fazer o gasoduto, que já
admitiu ter sido apenas um “preposto” na função, usou um argumento na
mesma direção: “A transportadora não tem de se submeter aos regramentos
legais da administração pública, por se tratar de entidade de direito
privado”, afirmou, ao ser cobrado sobre a falta de informações sobre os
preços usados nas obras. Ele também argumentou ao TCU, em relação à
cobrança de explicações sobre um superfaturamento superior a 1.800% em
determinados trechos da obra, que não havia a obrigação de apresentar as
justificativas previstas na Lei Orçamentária de 2008. Todos os
argumentos, até agora, foram rejeitados pela equipe técnica do tribunal.
No documento da Petrobras que subsidiou a decisão de se criar a SPE
dos gasodutos, os gerentes de três áreas da estatal argumentam que o
modelo é o mais apropriado “em razão das restrições de orçamento de
investimentos” e devido às “metas de resultado primário”. A empresa
criada tem por objetivo captar recursos para a obra, mas tem todas as
garantias da Petrobras para o investimento, inclusive a obrigação de a
estatal quitar empréstimos tomados em caso de insucesso no projeto.
RECURSO CONTRA FISCALIZAÇÃO
Há poucos dias, a
Petrobras também recorreu contra a determinação do TCU para que envie
documentos básicos sobre a construção do Gasene. O tribunal deu 30 dias,
contados a partir de 9 de dezembro, para que a presidente Graça Foster
entregasse um detalhamento de cada serviço no trecho entre Cacimbas (ES)
e Catu (BA), onde foi detectado o superfaturamento, e a identificação
de todos os responsáveis por aprovar as propostas de preços. A estatal
contestou, no recurso, o envio da auditoria para a força-tarefa da
Operação Lava-Jato no Paraná. Os papéis já estão em poder da Polícia
Federal.
A construção de outro gasoduto, o Urucu-Coari-Manaus, no Amazonas,
seguiu um modelo muito parecido, com a constituição de uma SPE para
investimentos de US$ 1,4 bilhão. O TCU apontou diversas irregularidades
nas obras, como dispensas ilegais de licitação, pagamentos adiantados
sem a execução dos serviços e falta de detalhamento dos preços. Também
faltava autorização da Agência Nacional do Petróleo (ANP) para que a SPE
constituída construísse o gasoduto. A autorização havia sido concedida à
TAG, subsidiária da Petrobras. Mais uma vez, a defesa recorreu à falta
de vínculo entre estatal e empresa privada criada.
No TCU, diversos acórdãos já trataram de obras públicas tocadas por
SPEs de estatais. O entendimento prevalecente até agora é de que o
tribunal tem atribuição para investigar SPEs ligadas a empresas
públicas. Em entrevista ao GLOBO, o novo ministro-chefe da CGU, Valdir
Simão, afirmou não ter opinião consolidada a respeito da fiscalização
das SPEs: — Não sei se a gente tem algo aqui na CGU sobre isso. Também não
tenho convicção de que SPEs afastam nossa atuação. Na empresa, na SPE,
de fato, você pode ter um afastamento.
Mas ainda não tenho como emitir
opinião sobre isso. O GLOBO enviou perguntas à Petrobras sobre a estruturação das SPEs e
as estratégias para evitar a fiscalização de órgãos de controle. Não
houve resposta até a conclusão desta edição.
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