Correio Braziliense
Publicação: 02/04/2014 17:00
Enchentes, secas extremas, tufões, terremotos. Gente morrendo de calor, outras sucumbindo a doenças infecciosas. Plantações devastadas, espécies animais sumindo do globo. O que parece cena de filme catástrofe já está, de fato, ocorrendo no mundo. O alerta veio do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU responsável por elaborar relatórios que tracem os cenários atuais e futuros do planeta frente ao aumento de temperatura no globo.
Um dos autores do documento, recém-divulgado em Yokohama, no Japão, é o brasileiro Carlos Nobre. Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o cientista climático foi nomeado, no ano passado, para o Painel de Alto Nível para Sustentabilidade Global, conselho que assessora diretamente o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. O texto que ajudou a compor deverá influenciar o selamento de um acordo climático mais enfático em 2015, quando ocorre a Conferência das Partes de Paris, a COP-21. Até lá, os países-membros das Nações Unidas ainda terão o encontro de Lima, daqui a sete meses, para discutir políticas de mitigação e adaptação.
O Grupo de Trabalho 2 do IPCC, cujo relatório foi divulgado agora, apontou os principais desafios para as diversas regiões do planeta, enfatizando a necessidade de gerenciar os riscos antes que seja muito tarde. Em entrevista ao Correio, Nobre destaca a metodologia, que tornou mais fácil visualizar a contribuição das mudanças climáticas para a dinâmica do planeta. O cientista explica que, no que se refere às ameaças aos sistemas humanos, é possível reverter alguns impactos com a adoção de políticas de redução da vulnerabilidade social. Contudo, o secretário do MCTI lembra que o mesmo não vai ocorrer em relação a sistemas naturais. A ciência ainda desconhece estratégias de adaptação que evitem o rigor dos impactos climáticos sobre determinados hábitats, como os oceanos: “Para milhões de espécies do planeta, a vida pode não ser tão fácil”, alerta.
Na avaliação de Carlos Nobre, o Brasil está no rumo certo em relação às recomendações feitas pelo IPCC. O país é o único entre os desenvolvidos a reduzir emissões de CO2, graças à queda do desmatamento. Mas o cientista adverte que a tendência positiva poderá se reverter caso se descuide das políticas de combate ao desflorestamento: “Essa é uma política que tem de ser implementada permanentemente”, diz.
As
últimas edições das Conferências das Partes (COPs) frustraram pelos
resultados modestos. O senhor acredita que o relatório do IPCC servirá
de instrumento de pressão para que o encontro de Lima seja mais
expressivo?
Acredito que sim, não só agora, mas também em
Paris, no ano que vem. O relatório do Grupo de Trabalho 2 traz um
referencial conceitual mais forte, mais poderoso.
Ficou mais fácil a
comunicação desse relatório. Ele está em uma linguagem sintética e fácil
de entender. Por exemplo, aparece um diagrama que liga o risco com a
capacidade de combater aquele risco, com a adaptação. Ficou mais simples
enxergar a mudança climática com relação aos geradores de risco, que
são uma união de forças: uma é a ameaça climática, a outra é a
vulnerabilidade, a pobreza, a inequidade, além da exposição.
O risco é o
produto dessas três coisas. Está mais fácil entender o peso das
mudanças climáticas. Ficou muito pedagógico. Tudo foi elaborado em
função desse conceito de gerenciamento de risco.
O relatório, inclusive, mostra que existem estratégias que podem combater esses riscos.
Isso,
algumas. É muito interessante olhar alguns setores e ver que o espaço
da adaptação para sistemas humanos é muito grande. Sem adaptação, na
maioria dos cenários (com previsão de aumento de temperatura) para 2º e
4ºC, você tem um risco muito alto. Quando se coloca a adaptação, o
risco cai para médio e até para baixo.
Mas, em alguns setores, como os
sistemas oceânicos, o conhecimento científico não consegue estabelecer
medidas que diminuam significativamente o risco. São os limites da
adaptação. Em algumas áreas, há limites de adaptação, principalmente
quando tem a ver com sistemas naturais, como ecossistemas terrestres,
zonas polares…
Quando tem a ver com sistemas humanos, quase todos os
impactos previstos você consegue pensar em uma série de estratégias de
adaptação, que são ou do lado do desenvolvimento, pelo qual você reduz
muito a vulnerabilidade, ou pelo lado da redução da exposição também.
Então esse é um aspecto bem interessante nesse documento.
Também assustador, não?
Também assustador, não?
É
assustador. Se você olhar uma das tabelas do relatório, da velocidade
em que árvores, plantas, animais, insetos etc. podem buscar as zonas
climáticas do equilíbrio, a média de quilômetros por década que uma
árvore consegue seguir o clima é 1km.
Quer dizer, você tem o clima
mudando, e as árvores naturalmente vão buscar o ótimo climático, mas uma
população de árvores só consegue migrar 1km por década. Quando você
olha o cenário mais conservador, que praticamente é muito difícil de
atingir, no qual a temperatura aumentaria 1,5ºC — ela já registrou
elevação de 1ºC, então a diferença seria de 0,5ºC, quase uma
estabilização —, esse cenário, que parece muito difícil, é o único que
permitiria às árvores se adaptarem.
E em um cenário pior?
E em um cenário pior?
Já
no outro cenário, em que a temperatura aumentaria uns 2ºC, 2,5ºC, as
árvores já não se adaptariam, não conseguiriam acompanhar a mudança
climática. Elas e as plantas herbáceas ficariam para trás. Isso
significa um risco muito grande, uma ameaça.
E, para esse tipo de
situação ecológica, ainda não existem soluções. A ciência e a tecnologia
vão ter de avançar muito para começar a desenhar soluções para isso.
Em termos humanos, é possível reduzir os riscos com a diminuição da
exposição e também com o desenvolvimento, com a diminuição da
vulnerabilidade que vem da pobreza, da falta de educação, da
desigualdade de gênero…
Mas, para as outras milhões de espécies do
planeta, a vida pode não ser tão fácil assim, e ainda carecemos de
estratégias de adaptação.
Em comparação com o documento de 2007, os impactos previstos para o Brasil estão maiores, menores ou estáveis?
O
relatório de 2014 é muito mais detalhado e avaliou a literatura
científica sobre os impactos regionais, principalmente para os países em
desenvolvimento e para a América do Sul. Ainda assim, (o volume de
informações) é pequeno perto desse conhecimento que existe para a
América do Norte, a Europa e a Austrália.
Ainda temos um conhecimento
científico pequeno, proporcionalmente falando, com relação a impactos.
Também temos muito menos experiência com relação a colocar medidas de
adaptação às mudanças climáticas no planejamento e na resposta a todos
esses desafios. Mas não se compara o que conhecemos hoje com o que
conhecíamos há oito anos.
Então, como nosso conhecimento é muito maior, é
preciso ter cuidado para não parecer que os impactos são muito
maiores. Tem aquela história do número de roubos ser hoje maior no
estado de São Paulo, mas parte disso é porque agora você pode fazer o
boletim de ocorrência pela internet.
Ou seja, a gente não sabe se
aumentou o número ou se as pessoas que não iam à delegacia agora têm
essa oportunidade. Voltando ao clima, temos uma documentação científica
muito maior dos impactos na América do Sul. Houve um aumento
gigantesco no conhecimento sobre os impactos no Brasil.
Realmente tínhamos muito pouco até 2006, 2007, contavam-se nos dedos os estudos completos. Agora, nós temos algumas centenas. Então, a prova de que já estão acontecendo impactos e que outros vão acontecer é muito maior.
Houve alguma revisão sobre o risco de savanização da Amazônia?
Realmente tínhamos muito pouco até 2006, 2007, contavam-se nos dedos os estudos completos. Agora, nós temos algumas centenas. Então, a prova de que já estão acontecendo impactos e que outros vão acontecer é muito maior.
Houve alguma revisão sobre o risco de savanização da Amazônia?
Não,
isso não mudou muito. Continuam a ter várias evidências do processo de
savanização — não de toda a Floresta Amazônica, mas de algumas partes
dela. E essas informações continuam lá (no relatório do IPCC).
O que se
tem de entender é o seguinte: existe uma regra com que você deve
avaliar os estudos científicos feitos naquele período. O que aconteceu é
que, no período anterior, tinham sido publicados os primeiros
trabalhos que mostravam o risco de savanização. Então, deu-se um certo
destaque. Já no período subsequente, 2007-2013, o assunto amazônico que
mais mereceu atenção foi a alternância de extremos: em 2005, uma
megasseca; em 2009, uma megaenchente; em 2010, uma megasseca; em 2012,
uma megaenchente…
Então, em um curtíssimo intervalo, sete anos, nós
tivemos as quatro maiores anomalias climáticas dos últimos 110 anos da
Amazônia, as duas mais severas secas (2005 e 2010) e as duas maiores
inundações (2010 e 2012). Isso, logicamente, a partir de 2005, chamou
muito a atenção da comunidade científica. Houve dezenas de dezenas de
artigos científicos que foram revisados e uma enorme ênfase em entender
o que está acontecendo na região.
Os artigos que falam do processo de
savanização continuam no relatório, mas, na hora de selecionar os
pontos principais para o sumário, esse ponto (da alternância de
extremos) foi o que chamou atenção. Então não é que em 2007
identificou-se que havia o perigo de a Floresta Amazônica, por causa
das mudanças climáticas, passar por um processo de savanização e, em
2014, esse risco não existe mais.
Esse risco existe, e os artigos estão
lá, mas o que vem para o sumário é o que tem mais destaque naqueles
sete anos da literatura científica.
De forma geral, o Brasil já está seguindo as recomendações de adaptação apresentadas no relatório do IPCC?
Não só o Brasil está seguindo como está liderando essa questão globalmente. Na questão de ecossistemas, está liderando em várias dimensões. Na de mitigação global, é o único país em desenvolvimento a reduzir emissões, por causa da acentuada redução de desmatamento na Amazônia e, pelo menos nos registros que nós temos, também uma diminuição no desmatamento do cerrado. Isso é uma grande notícia.
Além
do mais, para a Amazônia, é uma diminuição das ameaças. Quanto mais
fragmentada for a vegetação, mais ela será vulnerável à savanização. A
queda no desmatamento diminuiu muito o risco de savanização. Por isso, é
muito importante que essa política pública bem-sucedida dos últimos
oito anos não perca prioridade, que ela seja sempre revigorada.
O
esforço contra o desmatamento tem de ser contínuo, não dá para
descuidar um único mês, um único ano. Nesse sentido, o Brasil está no
caminho certo. Poucos países em desenvolvimento podem dizer que estão
reduzindo emissões. É lógico que isso também é uma medida muito
importante para aumentar a resiliência.
Vai nas duas direções: diminuir
as emissões e aumentar a resiliência no ecossistema, que são os
sentidos da mitigação e da adaptação. O Brasil é certamente um país que
tem feito isso. Vai se ver isso mais detalhadamente no Grupo de
Trabalho 3: a redução de desmatamento da Amazônia, marginalmente,
também diminui o risco para as outras florestas tropicais do planeta,
porque diminui as emissões de carbono.
Agora, essa é uma política que
tem de ser implementada permanentemente. Não existe um momento em que
você diz: “Pronto, agora não precisa fazer mais nada”. A gente pode
dizer que, nessa política, estamos inflexionando a curva das emissões
em todo o trópico, não só no Brasil. Porém, ainda não inflexionamos a
curva dos combustíveis fósseis.
Então, olhando o cenário global, nós
pelo menos enxergamos uma tênue luz no fim no túnel na questão da
alteração da vegetação, mas ainda procuramos essa luz no uso dos
combustíveis.
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