quinta-feira, 8 de maio de 2014

Brasil do PT: O fim da propriedade privada. O boom das invasões.


Por Morris Kachani
08/05/14 06:10
MTST


De agosto para cá, São Paulo está vivendo um boom de ocupações de sem-teto como há mais de três décadas não se via. A mais recente delas ocorreu no último sábado, no Parque do Carmo, a apenas 3 km da arena do Itaquerão. Duas mil famílias ocupam uma área de 150 m2 e pedem que o terreno, que pertence à Viver Incorporadora e Construtora, seja incluído no Plano Diretor como área de interesse social.


A ocupação é comandada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), que coordena cerca de 12 operações similares na cidade. Guilherme Boulos, 31, graduado em filosofia na USP, tendo depois feito um curso de especialização em psicanálise lacaniana, é o coordenador do movimento. Guilherme é filho de Marcos Boulos, professor da USP, um dos principais especialistas em doenças infecciosas e parasitárias do país, integrante do corpo técnico da secretaria de Saúde do Estado. Casado com uma militante sem-teto, Guilherme hoje mora em Campo Limpo. As duas filhas, de dois e quatro anos, vão à creche do bairro.


Nesta entrevista, Boulos compartilha sua visão estratégica sobre a questão da moradia e o aumento do número de ocupações, que somam mais de 100 de agosto para cá, de acordo com ele. A especulação imobiliária, a Copa, o sistema político e um olhar crítico sobre os programas do governo federal como o Minha Casa, Minha Vida, estão sob sua mira.


Nunca foi tão intenso o ritmo de ocupações na cidade como nos últimos meses. O que está acontecendo?
Primeiro é preciso retornar um pouco na história. A partir de 2003, com o Lula, você tem um crescimento econômico. Mas essa história de achar que o crescimento econômico é bom pura e simplesmente é que é o problema. O crescimento econômico tem efeitos colaterais pesados.
Um deles é a especulação imobiliária urbana. E essa especulação foi se tornando um barril de pólvora, as pessoas não conseguem mais pagar aluguel, e assim vão sendo mandadas para mais longe. O cara que morava em Itaquera e que agora foi pra Ferraz de Vasconcelos, leva uma hora a mais pra ir e voltar por dia. O posto de sáude que era ruim ficou pior, a creche não tem mais, e o cara vai ficando nervoso.

Aí vem junho de 2013 e mobilizações pelo país todo. Qual foi o recado deixado? Na nossa avaliação, foi que quando o povo se mobiliza e vai pras ruas, tem resultado. Afinal, a passagem abaixou.
A partir de julho e agosto começam a pipocar ocupações nas cidades brasileiras de forma espontânea. Não foram os movimentos que previram isso. Os movimentos foram levados, inclusive.

O discurso da direita mais cretina diz “isso é culpa do Haddad”, e os mais paranóicos dizem “isso são os movimentos petistas se rebelando contra o Haddad”. Não tem nada a ver com o Haddad. A gente pegou o momento. Acontece que teve uma convulsão social e abriram-se as comportas das ocupações. Só na cidade de São Paulo são mais de 100 ocupações de julho de 2013 para cá.
Na capital, em torno de 12 estão sob nossa coordenação. Tem outros movimentos que fazem, principalmente no centro de São Paulo, mas o MTST é o maior. Só nas ocupações do MTST são cerca de 15 mil famílias.

Qual seu nível de interlocução com a gestão Haddad?
Com relação a Serra e Kassab, consideravelmente melhor. Por ser um governo que dialoga com os movimentos e mais comprometido com políticas progressistas, como as faixas exclusivas de ônibus ou a cota de IPTU progressiva, que foi enterrada pelo Judiciário.

O que há para ser dito sobre a Copa do Mundo?
No âmbito da especulação, é importante reforçar que a Copa agravou esse processo. Tem um relatório da urbanista Raquel Rolnik que faz um estudo detalhado da especulação imobiliária no mundo inteiro: quanto valorizou na África do Sul, quanto valorizou em Seul, em Barcelona. Não adianta: megaevento traz especulação imobiliária. Então, Copa e Olimpíadas estão gerando esse processo de expulsão, de aumento da segregação urbana, da criação de muros na cidade.
O que são as UPPs no Rio de Janeiro?A UPP gerou especulação imobiliária brutal, a UPP não acaba com o tráfico, não gera segurança para a sociedade – Amarildo que o diga. As UPPs são parte de um processo de controle militar do território em que a segregação precisa ser contida.
A Copa e as Olimpíadas são a expressão disso. A gente até usa o bordão: a Dilma fala em Copa das Copas, mas é a Copa das Tropas, porque é a Copa com maior efetivo militar da história.

Houve uma intenção de se fazer uma ocupação a poucos km do estádio da Copa?
Não é uma questão de intenção. A Copa gerou uma especulação imobiliária grande, que por sua vez gerou uma demanda social. Em Itaquera a valorização nos últimos 5 anos foi de 175%. Mais do que a média da cidade. O Campo Limpo também teve uma valorização grande, algo em torno de 200%. Foram regiões que começaram a ser colonizadas pelo mercado imobiliário.
Aí, o ingênuo pode pensar: “É bom para o bairro chegar infra-estrutura”. É o caramba,  porque quando chega a infra-estrutura ali o trabalhador mais pobre é expulso. Ele continua fugindo da infra-estrutura porque não tem condição de pagar aluguel.
Com isso as pessoas mais pobres não conseguem mais morar no Campo Limpo, foram expulsas para fora da cidade – Taboão, Embu, Itapecirica, etc.
Essa é a lógica de formação da cidade. Jogar o pobre cada vez para mais longe, para periferias mais distantes. Um processo de higienização, de limpeza social – Higienópolis é um exemplo que carrega isso no nome.


Os nomes que vocês dão para as ocupações são emblemáticos. Copa do Povo, Nova Palestina, Faixa de Gaza.
Esses nomes foram definidos em assembléia. O movimento leva sempre 3 propostas para a assembléia e faz votação de nomes. Já rodaram vários: Carlos Lamarca, Anita Garibaldi, Rosa Luxemburgo, Che Guevara, naturalmente. João Cândido, Chico Mendes, Novo Pinheirinho.


Você é filho da classe média paulistana. Como foi para você, passar a morar em Campo Limpo?
As pessoas precisam ser coerentes, viver aquilo que elas acreditam. Se não, não é uma verdade. O que eu procuro fazer é ser coerente com o que eu acredito. Eu vivo com o que é suficiente para eu viver bem. Tenho minha família, duas filhas, esposa, trabalho.


Qual o perfil das famílias que participam das ocupações?
O público que participa de ocupação não é, essencialmente, gente que estava morando nas ruas. Essa é uma visão mistificada. O público consiste em  gente que estava num barraco, numa encosta, numa área de risco. Gente que mora de favor, no fundo da casa de um parente. O cara conseguiu na década de 1970 a sua casa num loteamento clandestino, ou numa ocupação, no período da explosão das periferias em São Paulo. Aí o filho dele casou, mas não tem dinheiro pra comprar casa e ergueu um comodozinho no fundo. Aí o filho dele tem filho, e o negócio vai ficando crítico. Estamos falando de famílias inteiras morando em um só cômodo, por exemplo.


Houve uma elevação do poder aquisitivo dessa camada da população.
De fato houve, com o Bolsa Família e aumentos progressivos do salário mínimo. Agora, essa elevação de renda está essencialmente baseada no endividamento, na medida em que não veio junto com mecanismos de controle do mercado.
Ela foi só uma ideia de ascensão pelo consumo. O que o Bolsa Família deu com uma mão o aluguel tomou com outra. Então, o rentismo financeiro impediu que isso significasse distribuição de renda.
Faltou ao governo petista uma política de regulação e contenção de mercado. O mercado imobiliário em particular, que incide sobre a vida de milhões de pessoas, não teve regulamentação. Você não tem uma lei do inquilinato que controla o reajuste de aluguel, e isso é o básico. Essa lei existiu no Brasil até a ditadura militar.
Então não estou falando em revolução socialista, embora em última instância a defenda. Não é isso que nós estamos cobrando do governo. Estamos cobrando o mínimo: regulação básica do mercado pelo Estado. Você tem medidas do Estatuto das Cidades que não são aplicadas porque o capital imobiliário controla a política.


Qual é a sua visão crítica sobre o Minha Casa Minha Vida?
Nós temos que ser justos nesse sentido. O MCMV é o maior programa habitacional feito na história do país. O diferencial positivo do MCMV é que ele tem uma grossa fatia de subsídio. Para resolver o déficit habitacional tem que ter um subsídio importante. Isso o MCMV trouxe.
No entanto o MCMV não foi feito para resolver o déficit habitacional. O MCMV foi feito para resolver o problema das construtoras, que estavam com risco de falência depois da crise do subprime nos EUA em 2008. Não é à toa que a crise estoura em 2008 e o MCMV é lançado em 2009.
E tem um problema. Só há MCMV na puta que o pariu, lá no fundão. É que eles remuneram o mesmo valor por terreno. Os valores pagos pela MCMV às construtoras são fixos. Você recebe o mesmo, se construir no Tatuapé ou em Ferraz de Vasconcelos… Então você faz um caixote lá no fundão e joga as pessoas para morarem lá.


Que acha das construtoras?
As construtoras financiaram 55% das campanhas dos partidos em 2010, são elas quem hoje definem a política urbana das cidades.
As grandes empreiteiras, que a gente pode chamar de 4 irmãs – Camargo Corrêa, Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez –, são o maior câncer nacional. Elas são a válvula que alimenta o esquema de financiamento de campanha eleitoral e de captura do Estado pelo setor privado. A vanguarda disso.


É legítimo invadir um terreno que não lhe pertence?
Primeiro temos que diferenciar ocupação de invasão. Invasão é você estar na sala do seu apartamento jogando baralho e alguém chutar a sua porta e invadir sua casa, em que você mora. Ocupação são grandes lotes, terrenos, prédios abandonados e ociosos, usados unicamente para especulação. O movimento só ocupa lugares em situação de abandono. Nós não fazemos invasão.


Qual o perfil dos proprietários de terrenos ociosos?
O que existe são donos que deixam os prédios e terrenos vazios esperando uma operação urbana que vai valorizá-los, para venderem por muito mais. É uma lógica perversa. Nós não achamos isso legítimo e achamos que tem que ter desapropriação, inclusive porque muitos deles estão endividados.
Nós não achamos que um especulador tenha direito a um grande ressarcimento. A lei de desapropriação no Brasil, hoje, é flácida. O cara muitas vezes gosta de ser desapropriado. É bom para o proprietário porque se paga o preço de mercado, à vista. Quem não quer isso? Paga bem.


Os proprietários em geral são os incorporadores ou herdeiros?
Muitas vezes são os incorporadores, nas áreas mais valorizadas. Mas tem também herdeiro. Poder público já não tem mais quase nada.


Num plano teórico, qual é o status do déficit habitacional hoje em SP e o que deveria ser feito em termos de reforma urbana?
O déficit habitacional brasileiro hoje está em torno de 7 milhões de famílias. O do Estado de SP, em torno de 1,5 milhão. Para combater o déficit habitacional é preciso ter uma política de combate ao mercado imobiliário. Não dá só pra construir moradia, é como ficar enxugando gelo.
18 milhões de pessoas se cadastraram no MCMV, e um milhão e meio de casas foram entregues. Ainda assim, o déficit habitacional aumentou 1 milhão. Então você tem que ter uma política de mudança de lógica. Por exemplo, no reajuste de aluguel: o teto tem que ser índice inflacionário. Tem que intervir no mercado.


Em termos práticos, você tem algum alinhamento com algum partido ou liderança?
Nenhum. O MTST tem autonomia em relação aos partidos políticos. É claro que somos um movimento de esquerda e temos simpatia por partidos que defendem posições mais à esquerda, como o PSOL principalmente. Mas tem gente do PT também que defende posições próximas à nossa. Em termos de leitura, sou alinhado com os filósofos mais à esquerda, como Marx.

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