| 07 Maio 2014
Midia Sem Mascara
Estamos entorpecidos, narcotizados moral e espiritualmente, tanto que
dá sono só de ler essas palavrinhas, como se a mera menção despertasse
um fiscal chato com a única finalidade de estragar prazeres.
Acho que todos conhecem a história de Narciso, não? Apaixonado por suas selfies, nada mais fez de sua vida senão contemplar-se no Instagram, até nele mergulhar e morrer. Dizem que isso é mito e muito antigo, coisa de grego. Só se for a parte do mergulhar e morrer (se bem que…) porque, no mais, Narciso segue vivo, firme e forte, com o perfil ativo no Facebook e em todo canto da internet. Narciso, hoje, é legião.
Uma
de suas características principais, segundo o filósofo Louis Lavelle,
que escreveu um livro a respeito, do qual tomei de empréstimo o título
acima, é procurar mais aquilo que o agrada do que aquilo que ele é.
Cientistas sociais, psicólogos, especialistas de toda ordem, estudam,
pesquisam, analisam, teorizam, discutem, há tempo o narcisismo e as
redes sociais, terreno fértil para sua propagação, e seus estudos
costumam demonstrar que muitos tendem a se sentir mal, tristes,
sozinhos, depressivos, invejosos, quando veem os amigos nas redes
sociais publicando fotos de festas, viagens, férias, e por aí vai.
Claro, naquele momento, é mais agradável ser eles do que eu.
Parece
coisa de adolescente, e é – Narciso, aliás, tinha 16 anos. Mas hoje em
dia a adolescência esticada é um fato, e os 16 anos de Narciso devem
equivaler aos 42 anos na atualidade. É uma epidemia, portanto.
Seria
o caso de perguntar em que ponto o amor-próprio se torna doença e
volta-se contra si mesmo. Mas acredito que quando se torna mania
publicar selfies logo que consumado o ato sexual (#AfterSex), ou sua
variante a mostrar como ficou seu cabelo depois (#AfterSexHair), ou para
mostrar sua roupa e expressão facial quando se está num funeral
(#funeral), enfim, quando chegamos a isso, algo me diz que aquele ponto
já foi ultrapassado faz tempo e falar de limites seria até interessante,
mas tão produtivo quanto analisar o pênalti perdido por Zico na Copa de
1986.
Na
verdade, embora quando se fale de narcisismo logo venha à mente
vaidade, seu significado tem mais a ver com entorpecimento, que vem da
origem grega do seu nome, narkhé. E é essa, parece-me, a marca
registrada do narcisismo do nosso tempo, que já se fez antigo e, pelo
visto, perdurará bastante. Estamos entorpecidos, narcotizados moral e
espiritualmente, tanto que dá sono só de ler essas palavrinhas, como se a
mera menção despertasse um fiscal chato com a única finalidade de
estragar prazeres. É proibido proibir, e beijinho no ombro a quem
discorda.
No
fim, o destino de todo Narciso é não ser amado, nem por si mesmo, e é
essa dor que entorpecemos com nossa fabricada espontaneidade e rígido
controle de qualidade da imagem que passamos aos outros nas redes
sociais. Como somos parecidos por lá, já reparou? Além de Narcisos,
também somos Eco, a ninfa condenada pela deusa Hera a somente repetir o
que os outros diziam, por ser muito tagarela. Ela se apaixonou por
Narciso, mas não podendo expressar seu amor, terminou sendo rejeitada,
isolando-se do mundo nas montanhas, onde se transformou em rochedo, mas
continuando até hoje a ecoar, a repetir palavras que parecem, mas não
são suas. Por que mesmo você entrou na onda das selfies?
Publicado no jornal Gazeta do Povo.
Publicado no jornal Gazeta do Povo.
Francisco Escorsim, advogado e professor, é coordenador do Instituto de Formação e Educação de Curitiba (IFE).
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