Leonardo Sakamoto
Demorei mais tempo do que deveria para falar do caso da ocupação do cais Estelita, em Recife.
É que, no fundo, sempre achei que o poder público não seria tão ignorante e violento a ponto de tentar matar um dos movimentos mais significativos que apareceram nos últimos anos.
Mas, em um ato covarde, aproveitando-se do jogo do Brasil na Copa do Mundo contra o México, a reintegração de posse foi posta em marcha usando armamento “menos letal''. Qualquer estrela-do-mar com QI suficiente para levantar um bracinho que visse a desocupação criminosa do Estelita se perguntaria contra quem o Estado travava uma guerra.
O movimento de ocupação do cais José Estelita - uma área do tamanho de dez campos de futebol que está prestes a ser transformado em altas torres residenciais e comerciais em pleno centro histórico da capital pernambucana – não quer que tudo fique como está, como um monumento ao passado.
Pelo contrário, ele entende a dinâmica da cidade e quer o lugar vivo e pulsante, um retrato do que é a cidade. Mas Recife não são apenas as torres altas, de vidro e concreto, de Boa Viagem.
É mais complexa, diversa, plural e rica do que isso. Portanto, nada mais justo o pleito do movimento: de que a decisão sobre o uso daquela área seja feita de forma pública, democrática e coletiva, respeitando não apenas o seu entorno, mas também os desejos da população.
Mas no projeto, há previsão de espaço para parque e institutos culturais. Então, por que não inserir também habitações populares? Ou centros comerciais menores? As grandes cidades estão passando por um processo acelerado de gentrificação, de encarecimento do custo de vida e de expulsão dos mais pobres para longe.
Grandes empreendimentos têm o potencial de catalisar esse processo ou de retarda-lo. Mas ao invés de pensar na qualidade de vida da maioria da população, o que sempre é posto em jogo é o ganho de alguns poucos.
Mas aí você, que não mora em Recife, se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, japs?
Tudo, porque o mesmo processo está acontecendo do lado da sua casa e, talvez, você nem perceba. Tempos atrás, citei um anúncio interessantíssimo aqui no blog, que havia sido publicado em páginas de jornais sobre um novo empreendimento imobiliário na Zona Sul de São Paulo.
Ou seja, não era às margens do rio Capibaribe, mas do Pinheiros. Apresentando mudanças urbanas em cidades como Nova Iorque e na própria capital paulista, levadas a cabo pelas empresas envolvidas nesta nova horta de prédios, ele saudava o progresso.
Sem entrar no mérito sobre as mudanças positivas e negativas pelas quais passou o bairro da Vila Olímpia, adorei a sinceridade do “contendo apenas pequenas casas e antigos galpões industriais''. Pequenas casas que, feito ervas daninhas, devem ser retiradas para permitir a marcha inexorável do progresso?
Quando a ocupação de determinados espaços interessa às classes que detém o poder econômico, elas elaboram mitos e criam heróis. Para impor seus objetivos por meio do aparelho jurídico e administrativo do Estado, são construídos suportes de legitimação que mostrem que os seus próprios interesses são, na verdade, interesses de todos e, principalmente, daqueles que vão pagar o pato.
Ou seja, fazem você acreditar que o que é bom para eles é bom para você. Parte dos projetos urbanos em marcha na cidade de São Paulo, no Rio de Janeiro e em Recife fazem parte dessa lógica.
No campo, a construção desse suporte ideológico culminou em slogans como “Terra sem homens para homens sem terra”, utilizado pelos verde-oliva, mas que estava presente já nos discursos de Getúlio Vargas. O slogan tinha o objetivo de transmitir a ideia de que a Amazônia é um grande deserto verde, desabitado.
Contudo, uma olhadinha rápida demonstra a falácia presente na utilização desses discursos, uma vez que terras almejadas pelos novos empreendimentos agropecuários e extrativistas eram e são, na verdade, habitadas por populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, posseiros e colonos.
O que esse slogan encobre é que a Amazônia não é e nunca foi um vazio e que a imagem de “deserto verde” é uma construção que serve às forças econômicas interessadas em ocupar a região.
Afinal de contas, como todos sabemos, se é um deserto, não tem ninguém. E passar por cima de “ninguém'', não é crime. Certo? Terra sem homens para homens sem terra. Bairro com apenas pequenas casas e alguns galpões para gente sem bairro. Só não explicam que não é qualquer “gente'', mas apenas aquela que tem dinheiro no bolso.
Já citei o ensaio “O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento'', de Marshall Berman aqui, mas vale retomar, pois cai como uma luva. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo do texto não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês.
A mentalidade que fomenta Fausto (“destruir para criar”) é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).
No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos.
Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar que há maldade no mundo, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade crescesse. Caem os limites morais.
O desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.
Ele não inclui, não compartilha. Ele afirma e impõe.
As lembranças da desocupação forçada do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), dos incêndios nas favelas de São Paulo ou da desocupação do imóvel da Telerj, no Rio de Janeiro, irão durar na cabeça da maioria da população até que prédios bonitos fiquem prontos no lugar. Tudo em nome de uma visão deturpada e excludente de progresso e do futuro.
Falar sobre a política higienista urbana no Brasil é chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão aqui, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras, como planos diretores. Ao mesmo tempo, quando são abertas as contas das eleições, vemos - novamente – a influência do cimento na eleição de muita gente.
O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infra-estrutura e erguer moradias, girando a economia. Só que “esqueceu'' de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, a busca por áreas urbanas para a incorporação leva à expulsão de outros grupos, normalmente os mais pobres.
Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e a sociedade seria ouvida.
Nesse caso, Estelita poderia ter um destino decidido de forma coletiva.
O bom é que, em se tratando do dinheiro de cimento, o poder público nunca me decepciona, sendo ele PSB, PSDB, PT, federal, estadual ou municipal, em qualquer lugar. Quem ganha, o mantém a tiracolo. Ou, melhor: quem ganha continua no bolso dele.
Por conta da desocupação do Estelita, o cineasta Marcelo Pedroso compartilhou na rede o multipremiado curta “Em Trânsito'', sobre o modelo de desenvolvimento econômico de Pernambuco. Vale a pena assistir:
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