Em longa análise sobre o discurso de posse de Dilma Rousseff em janeiro
de 2011, o blogueiro Josias de Souza, da Folha de São Paulo compara o
mesmo com o discurso de ontem, da oficialização da candidatura da
petista. Vale a pena ler.
Ao discursar na convenção do PT,
neste sábado (21), Dilma Rousseff pronunciou 47 vezes palavras ou expressões
com o significado de recomeço ou de ajuste.
Considerando-se que o
pronunciamento ocupou 17 páginas, o conceito de correção de rumos foi evocado,
em média, 2,7 vezes por folha.
Dilma mencionou 17 vezes o
vocábulo ‘transformação’, duas das quais no infinitivo, uma no plural e uma no
gerúndio. Citou 12 vezes a palavra “reforma”. Repetiu sete vezes a expressão
“novo ciclo”. Referiu-se uma vez a “novo salto”. Falou em “mudança” cinco
vezes, duas no plural. Por fim, utilizou cinco vezes o verbo “melhorar”.
Tomado isoladamente, o discurso
revelou o esforço notável de uma governante com a popularidade em queda para
ajustar o vocabulário ao desejo de mudança manifestado por 74% do eleitorado,
segundo o Datafolha. Comparado à peça que Dilma leu no Congresso Nacional no
dia de sua posse, em 1º de janeiro de 2011, o texto se torna matéria prima para
a oposição —uma espécie de autodenúncia de tudo o que não foi feito.
A três meses da eleição, a
presidente repetiu na forma de promessas compromissos que assumira na posse e
que não conseguiu executar. Fez isso sem pronunciar nenhuma frase que pudesse
ser entendida como uma autocrítica. Ao contrário. Em algumas passagens de sua
fala, Dilma culpou terceiros pelos malogros do seu governo.
No discurso da posse, Dilma
afirmara que a reforma política era “tarefa indeclinável e urgente” de sua
gestão. Acenara com “com mudanças na legislação para fazer avançar nossa jovem
democracia, fortalecer o sentido programático dos partidos e aperfeiçoar as
instituições, restaurando valores e dando mais transparência ao conjunto da
atividade pública.”
Na bica de encerrar o mandato,
Dilma salta o mea-culpa e admite que a “tarefa indeclinável e urgente” de três
anos e meio atrás é uma obra por realizar. Ela já não avoca para si toda a
responsabilidade. Prefere dividir o esforço com o povo: “Não vejo outro caminho
para concretizar a reforma política do que a participação popular, mobilizando
todos os setores da sociedade por meio de um Plebiscito.”
No dia da posse, Dilma arrancara
aplausos de deputados e senadores ao declarar que, “no plano social, a inclusão
só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos
serviços essenciais. Este é um passo, decisivo e irrevogável, para consolidar e
ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população.”
A presidente do discurso
inaugural, considerava “tarefa indispensável” do seu governo liderar “uma ação
renovada, efetiva e integrada dos governos federal, estaduais e municipais, em
particular nas áreas da saúde, da educação e da segurança, vontade expressa das
famílias brasileiras.”
Nos lábios da Dilma deste sábado,
o compromisso de melhorar os serviços públicos, antes “decisivo, irrevogável e
indispensável”, virou um objetivo impalpável a ser obtido num futuro incerto,
no bojo de um ambicioso ‘Plano de Transformação Nacional’. Desde que
governadores e prefeitos deixem de ser um estorvo para as boas intenções do
governo federal.
“Um Plano de Transformação
Nacional desta envergadura, só pode se concretizar com uma ampla reforma, capaz
de redefinir os papéis dos entes federados”, disse Dilma, antes de transferir
para as instâncias inferiores as culpas pelo insucesso de Brasília: “Não é por
acaso que alguns dos serviços públicos que apresentam mais deficiência são os
que têm interface entre os governos federal, estaduais e municipais.”
Dilma enfatizou: “É preciso
reestudar e redefinir novos papéis e novas funções para os entes federados,
porque a complexidade crescente dos nossos problemas exige esta mudança.” Ela
enganchou uma reforma na outra: “É importante que a redefinição do pacto
federativo integre o âmbito da grande reforma política que o Brasil necessita.
Esta reforma é fundamental para melhorar a qualidade da política e da gestão
pública.”
Vendida pela propaganda de 2010
como supergerente, a Dilma do dia da posse falava em “consolidar o Sistema
Único de Saúde”. Dizia isso num tom tão peremptório que a coisa parecia
simples. “Será outra grande prioridade do meu governo”, ela declarava. “Vou acompanhar
pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo
brasileiro”, ela prometia. “Quero ser a presidenta que consolidou o SUS,
tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo”, ela
sonhava.
Sob essa Dilma em início de
jornada, o SUS trataria sua clientela como nunca antes na história desse país.
Os hospitais públicos proveriam “todos os instrumentos de diagnóstico e
tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de
fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde.”
A presidente de então empregaria
“a força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço prestado e o
respeito ao usuário.” Ela estabeleceria “parcerias com o setor privado na área
da saúde, assegurando a reciprocidade quando da utilização dos serviços do
SUS.”
No discurso da nova Dilma, o
sonho da saúde perfeita virou um pesadelo do qual a candidata à reeleição tenta
acordar. Transformou-se também numa nova promessa: “A reforma dos serviços
públicos dará atenção especial à melhoria da qualidade da saúde”, informou a
presidente aos convencionais petistas. Misturando programas deflagrados sob
Lula a iniciativas adotadas na sua gestão, Dilma ainda tentou remediar o
fiasco:
“Fizemos o Samu, as Upas, os medicamentos
gratuitos do ‘Aqui Tem Farmácia Popular’, a Rede Cegonha e o Mais Médicos, um
programa estratégico que fortalece o SUS”, disse a recandidata. Na sequência,
reconciliando-se com o óbvio, ela admitiu: “Temos nos esforçado muito, mas os
serviços de saúde precisam sofrer, ainda, uma transformação mais profunda para
ficar à altura das necessidades dos brasileiros.”
Dilma sofreu um choque de
realidade também na área educacional. No dia da posse, ela dizia que, a
despeito dos avanços obtidos nesse setor, “só existirá ensino de qualidade se o
professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da
educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso
com a educação das crianças e jovens.”
Nessa época, Dilma sustentava que
“somente com avanço na qualidade de ensino poderemos formar jovens preparados,
de fato, para nos conduzir à sociedade da tecnologia e do conhecimento.” Pois
bem. A candidata à reeleição agora fala em “novo ciclo”. Mas com objetivo
velho. “Este novo ciclo fará o ingresso decisivo do Brasil na sociedade do
conhecimento, cujo pilar básico é uma transformação na qualidade da educação”,
discursou Dilma na convenção deste sábado.
Considerando-se as palavras
ex-gerentona, a sala de aula ideal, que parecia roçar-lhe o nariz em janeiro de
2011, perdeu-se nos desvãos da ineficiência da engrenagem governamental. “E não
adianta ficar dando voltas”, declarou a neo-Dilma. “A transformação da Educação
só se consolida com a valorização plena e real do professor —com melhores
salários e melhor formação”, ela acrescentou, como se tratasse do tema pela
primeira vez.
A três meses e meio das eleições,
Dilma reposicionou-se em cena: “Já começamos a fazer isso e vamos acelerar
muito mais quando ingressarem os 75% dos royalties do petróleo e os 50% do
excedente em óleo do pré-sal. Todos destinados à Educação.”
A oradora só esqueceu de
mencionar o seguinte detalhe: nas previsões mais otimistas, o óleo do pré-sal
jorrará em escala comercial apenas num ponto longínquo do calendário, nos
arredores de 2020. Quer dizer: a “valorização plena e real do professor” é
coisa para o segundo ano do mandato do sucessor do próximo presidente da
República.
Há duas Dilmas também na área
mais importante, a econômica. A Dilma do discurso da posse escorava a superação
da miséria do país em “um longo ciclo de crescimento”. Falava coisas assim: “É
com crescimento que serão gerados os empregos necessários para as atuais e as
novas gerações. É com crescimento, associado a fortes programas sociais, que
venceremos a desigualdade de renda e do desenvolvimento regional.”
A Dilma atual, gestora de um PIB
miúdo e declinante, já não fala de crescimento com tanto entusiasmo. Ela
prefere discursar sobre as desculpas. Nessa matéria, a candidata põe a culpa no
mundo: “Quando eu assumi o governo, o mundo era um. Pouco tempo depois, o mundo
era outro.”
Acrescentou: “A verdade é que a
crise econômica e financeira internacional ameaçou não apenas a estabilidade
das maiores economias do mundo, mas boa parte do sistema político e econômico
mundiais, ao aumentar o desemprego, abolir direitos e semear a desesperança.”
Depois de desenhar essa
conjuntura de fim do mundo, Dilma se absteve de mencionar o Pibinho. Discorreu
sobre a maneira “competente'' como administrou o Apocalipse financeiro. “O
Brasil, dessa vez, não se rendeu, não se abateu, nem se ajoelhou!”, disse (o
ponto de exclamação consta da versão escrita do discurso. “O Brasil soube
defender, como poucos, o mais importante: o emprego e o salário do trabalhador
–e foi o país que melhor venceu esta batalha!” Mas como sustentar a tese de que
o salário se manteve a salvo das oscilações inflacionárias?
Munida de autocritérios, Dilma
disse aos petistas que a aclamaram como candidata oficial do partido: “Pela
primeira vez em nossa história, o trabalhador não pagou o preço da crise.
Enquanto no resto do mundo a crise devorou, desde 2008, 60 milhões de empregos,
aqui foram criados 11 milhões de postos de trabalho com carteira assinada.” De
resto, afirmou a candidata, o governo “manteve a política de valorizaçãoo do
salario mínimo” e reajustou o Bolsa Família “acima da inflação.”
A Dilma da posse reiterava o
compromisso de “manter a estabilidade econômica como valor absoluto.” Ela dizia
que “já faz parte de nossa cultura recente a convicção de que a inflação
desorganiza a economia e degrada a renda do trabalhador. Não permitiremos, sob
nenhuma hipótese, que esta praga volte a corroer nosso tecido econômico e a
castigar as famílias mais pobres.”
Hoje, informam as pesquisas, a
percepção do eleitorado sobre o aumento da carestia é um dos elementos que roem
a popularidade do governo e o volume de intenções de voto de Dilma. Ao que a
candidata responde: “O povo quer mais e melhor —e nós e também.” Ironicamente,
Dilma só fala de economia no plural. Ela não toma o seu período de governo
isoladamente. Refere-se aos “últimos onze anos”, como se a sua gestão e os oito
anos de Lula, espécie de presidente emérito, formassem um único mandato
hipertrofiado.
Foi “o mais longo período de
inflação baixa da história brasileira”, declarou Dilma, pulando o fato de que a
taxa inflacionária distanciou-se do centro da meta oficial, que é de 4,5% ao
ano. Mantém-se teimosamente acima dos 6%, com tendência de furar o teto da
meta, de 6,5%, até o final de julho. Como não pode modificar o passado nem
reverter o presente, Dilma trata do futuro, a única fase do tempo que não pode
ser conferida ou cobrada.
“Temos, agora, uma oportunidade
rara na história'', ela discursou. “Criamos as condições para defender os
grandes resultados de um ciclo extraordinário e, ao mesmo tempo, temos força
para anunciar o nascimento de um novo ciclo de desenvolvimento”. Em meio à
pompa da convenção, Dilma soou como se não tivesse receio de tropeçar nas
circunstâncias.
“Este novo ciclo manterá os dois
pilares básicos do nosso modelo —a solidez econômica e a amplitude das políticas
sociais —e trará avanços ainda maiores na melhoria da infraestrutura e dos
serviços públicos, na qualidade do emprego, no desenvolvimento tecnológico e no
aumento da produtividade da nossa economia.”
O lema da nova campanha de Dilma
é “Mais Mudanças, Mais futuro.” Ela antevê “grandes batalhas” até o dia da
eleição. Pediu ajuda à militância petista. “Se na eleição do presidente Lula a
esperança venceu o medo, nessa eleição a verdade deve vencer a mentira e a
desinformação. O nosso projeto de futuro deve vencer aqueles cuja proposta é
retornar ao passado”, afirmou.
Dilma se referia, evidentemente,
às duas presidências tucanas de FHC. Para ela, o Brasil dessa época não
produziu senão arrocho, alienação do patrimônio público e endividamento
externo. Muita gente dirá que, no discurso da candidata do PT, a mentira e a
desinformação prevalecem sobre a verdade. Dilma se livraria da polêmica se, em
vez de recuar até a era tucana, estacionasse no início do seu próprio governo.
Se o Brasil de 2014 tivesse 10% das maravilhas daquele país esboçado no
discurso de janeiro de 2011, Dilma seria uma adversária dura de roer.
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